Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 51: Fim do descanço

— Então foi assim que aconteceu... não dá pra te culpar tanto. Tudo bem, o que tá feito, tá feito — disse Céline, apoiando o queixo na mão enquanto a luz azulada da tela dava um brilho frio ao rosto dela. — Lucy ainda tá aqui. Vai ficar mais alguns dias conosco pelo estado dela, hehe, você deixou uma marca inesquecível. Ah, e já começamos o novo corpo da Mia. Em duas semanas vocês já vão poder voltar a se amar de novo.

Miguel desviou o olhar, coçando a bochecha, meio envergonhado. Assentiu, murmurou algo parecido com um agradecimento e encerrou a ligação.

A cozinha estava silenciosa, exceto pelo estalar dos ovos ainda chiando no fundo da panela quente. Ele os serviu, pegou torradas crocantes e uma caneca de café fumegante. O cheiro amargo preenchia o ar — algo familiar, quase reconfortante. Equilibrou tudo nos braços e foi para seu quarto.

— Sam, tá na hora de acordar — chamou, entrando no quarto.

A luz suave da manhã atravessava a janela e batia no edredom amarrotado, onde Samira estava completamente afundada. Ela resmungou, virou de costas e puxou o cobertor até o topo da cabeça. Miguel riu baixinho, deixou os pratos no criado-mudo e enfiou o corpo sob o edredom, o calor morno envolvendo os dois.

Ele deslizou até a barriga exposta dela e mordeu.

— Ah! Hahaha! Para! Eu já acordei! Já acordei! — ela se retorcia, metade rindo, metade tentando escapar de suas mordiscadas e dos dedos dele cutucando suas costelas.

— Não é porque não tem aula que pode dormir até virar fóssil — provocou.

— A culpa é sua — ela resmungou, corada, escondendo o rosto atrás do braço.

— Minha?

— Quem me deixou acordada quase a noite inteira foi você…

Miguel abriu a boca, mas só conseguiu soltar um suspiro derrotado e uma risadinha.

Samira puxou o rosto dele com as mãos, uniu seus lábios aos dele e entrelaçou as pernas na cintura dele, lenta, quase preguiçosa.

— Mas já tô descansada… — murmurou, puxando a camiseta dele com intenção bem clara.

Miguel respirou fundo, sentindo o corpo pedir o contrário, mas mesmo assim balançou a cabeça.

— Depois. Hoje eu tenho muito trabalho e preciso sair cedo.

Ela fez um biquinho dolorido de se ver — mas cedeu. O beijo demorado quase o fez desistir da própria responsabilidade.

♦♦♦

A antiga estação 108 Sul tinha cheiro de ferrugem úmida, mofo e abandono. As lâmpadas quebradas pendiam como ossos pendurados, e cada passo ecoava pelo corredor cheio de rachaduras. No subsolo, o ar era ainda mais pesado: água escorria pelas paredes, formando poças onde ratazanas enormes faziam barulho, gordas como cachorros de rua bem alimentados.

Ali, em meio ao concreto morto, estavam apenas Miguel e Julia.

Ela parecia deslocada daquele cenário… ou talvez fosse o cenário que parecia pequeno demais pra ela. Vestida de preto absoluto — couro, metal, tecido grosso — com um estilo entre gótico e industrial, sua pele pálida quase brilhava nas sombras azuladas. Os olhos cinzentos tinham o vazio calculado de alguém que sempre observa e nunca se apega ao que vê.

Os dois se sentaram num banco corroído pelo tempo, cada um em uma ponta. Julia sempre mantinha essa distância. Talvez fosse hábito. Miguel não a conhecia bem o suficiente.

— Vinte mil. — disse ela, sem floreio, encarando o vagão velho onde alguns mendigos se amontoavam em volta de uma fogueira improvisada.

Miguel soltou o ar devagar. Era caro demais, mas não havia alternativa.

— Pela sua cara… acho que não tem isso agora — ela disse com um sorriso lento, enigmático. — Então? O que oferece?

Miguel passou a mão nos cabelos, pensou alguns segundos e respondeu:

— Aquela proposta que fez naquele dia. Agora eu tô disposto a colaborar.

Julia inclinou levemente a cabeça, como um predador analisando uma mudança inesperada.

— Curioso. Você recusou quando envolvia sua mãe, mas aceita por causa da namorada. Para alguém obcecado em encontrá-la, sua lógica parece… estranha.

Miguel não piscou. Ele sabia que Julia guardava algo importante sobre ele — sabia desde o primeiro momento em que a viu. Era uma sensação primitiva, um pressentimento vindo do fundo do estômago: aquela garota não era normal.

Não só era perigosa… ela era, até agora, o ser mais poderoso que ele conheceu desde que acordou.

Nem Victor, nem Cezar, nem Angela, nem as irmãs Beaulieu entravam no mesmo nível. Julia, mesmo sem o Primordium, irradiava uma presença que esmagava qualquer comparação. Era uma calmaria tão profunda que chegava a ser ameaçadora. Todos os seus instintos, toda sua experiência o alertava do quão forte essa garota era.

E Miguel, com uma lucidez quase resignada, sabia que tentar entender ou controlar aquilo era pura perda de energia.

— Samira tá comigo agora. É bem diferente de ter só pistas sobre a minha mãe — respondeu, firme.

Era a resposta perfeita, mas Julia apenas assentiu, como se não acreditasse — e ao mesmo tempo não se importasse.

— Certo. — Ela tirou outro envelope do blazer e o atirou para ele. — Mate essas pessoas e eu te dou o que pediu.

Miguel folheou. Duas mulheres. Cafetinas da Zona Norte. Informações detalhadas. Ele absorveu tudo rapidamente e devolveu.

Julia pegou os documentos e os jogou no barril em chamas ao lado. Os papéis se contorceram, escureceram, viraram cinza. Era o ritual dos Black Quill.

Só quando tudo virou pó ela voltou a falar:

— Quando terminar, me liga. Eu passo o próximo local.

Miguel assentiu. Julia virou as costas primeiro. A estação parecia ficar mais escura quando ela se afastou.

Os dois seguiram para direções opostas, cada um carregando uma sombra diferente.

♦♦♦

Miguel estacionou a moto ao lado da van no Lar dos Casados. O ronco do motor ecoou pelo beco estreito, misturando-se ao cheiro de fritura velha que vinha do restaurante da esquina. Dois carequinhas da Gangue do Machado surgiram quase instantaneamente, como sentinelas alerta.

— Chefe — cumprimentaram ao mesmo tempo, dando aquele passo para frente típico de quem reconhece autoridade.

Atualizaram-no das últimas movimentações, rápidas e diretas, como bons soldados.

Ao entrar, Miguel precisou de um segundo para absorver a cena.

O saguão estava cheio.

Vários homens — e algumas poucas mulheres — aguardavam espalhados pelo hall. Alguns em fila na recepção improvisada, outros jogados nos sofás gastos, conversando baixinho, como se o lugar fosse uma mistura de motel comunitário e consultório espiritual.

O ar tinha outro perfume agora — nada daquele pó velho misturado a essências baratas. Havia um toque cítrico, delicado, um floral leve que se espalhava com o cheirinho doce das velas aromáticas que Luna insistia em deixar acesas. Era como se o lugar tivesse ganhado uma nova pele, respirando diferente.

Antes que ele pudesse processar mais, uma voz animada cortou o ambiente:

— Miguel!

Andressa praticamente saltou na direção dele. A garota parecia outra pessoa: nada daquela vibe de puta desesperada que precisava exibir cada pedaço de si que carregava quando se conheceram. Agora lembrava uma jovem moça de estilo fofo, com um moletom rosa enorme engolindo metade do corpo e pantufas ridículas nos pés. Com seus 19 anos, era pura energia.

— Lembrou que tem casa? — provocou, já o abraçando.

Miguel retribuiu o abraço, sentindo o calor leve do corpo dela se encostar ao seu. De relance, notou alguns clientes trocando olhares nada amigáveis… ciúmes mal disfarçados. Andressa percebeu também, deu uma risadinha maliciosa e se afastou só um pouco.

— Hoje tá uma loucura! — disse, orgulhosa. — Já atendi quatro clientes só de manhã! E tem mais seis pra tarde. Espero dar conta, hehehe!

— Não exagera — Miguel advertiu, puxando a bochecha dela de leve, arrancando um resmungo fofo. — Cuida do corpo primeiro. E passa isso para as outras. Nada de desespero por causa da demanda. Quanto maior a procura… mais alto o preço. Não o contrário.

— Sim, chefe! — fez continência teatral, o moletom balançando. Depois, segurou o braço dele e puxou com aquele jeito familiar. — E ó… nem todas transaram com todos os que atenderam. Tem vindo muito cliente só pra conversar. Pra desabafar. Pra se sentir vivo, sei lá, você entende mais disso.

Miguel assentiu. Fazia sentido. Ele já esperava esse tipo de inversão — o Lar dos Casados estava virando algo… diferente.

— Vocês já almoçaram? Estou morrendo de fome.

— Eu tava indo comprar agora! O que quer comer?

— Muita carne. Batata. Brócolis. Arroz. Feijão.

— Beleza, chefe! Ah — ela ficou na ponta dos pés, puxou o cabelo dele e sussurrou: — Tem uma dama bem estressada… e com saudade.

É claro que Andressa perceberia.

Miguel só respirou fundo e perguntou:

— Luna tá trabalhando demais?

— Demais? — Andressa fez um gesto largo. — Muito é pouco. Você jogou tudo nas costas dela! Humpf. Ainda bem que o Leo ajudou na reforma do primeiro andar. Ele saiu pra almoçar agora há pouco.

Eles trocaram mais algumas palavras, pequenas coisas do dia a dia, até Miguel seguir para o terceiro andar, rumo à sala da gerência.

O caminho até lá virou quase uma pequena procissão.

As garotas paravam para cumprimentá-lo — umas com um aceno rápido, outras com abraços apertados, cheias de afeto. Cada gesto atraía olhares dos clientes aguardando o horário de almoço das meninas. A presença dele criava um certo campo gravitacional… algo entre respeito, curiosidade e aquela aura silenciosa de “chefe de verdade”.

E o visual delas também chamava atenção.

Poucas usavam roupas realmente sensuais naquele momento. O charme, porém, parecia maior justamente por isso. Menos pele à mostra, mais estilo. Mais controle. Um gesto de cabelo, uma postura, um olhar calculado — tudo isso deixava o ambiente mais elegante do que um puteiro comum, onde a sensualidade é explícita e cansativa.

Aqui, havia algo… delicado sem ser infantil e sensual sem ser apelativo.

Um erotismo sutil, trabalhado, quase artístico.

Miguel sabia que isso era uma das razões pelas quais o Lar dos Casados estava bombando.

Luna fora uma das primeiras pessoas que conheceu depois de escapar do laboratório com Mia — e isso deixara uma marca discreta, porém profunda, no coração dele. Desde aquela época, os dois funcionavam de um jeito estranho e natural: ele com a cara de pau de sempre; ela cedendo às sonsices dele como quem já desistiu de resistir.

Às vezes Miguel se perguntava se aquilo era paixão.

Mas desde que finalmente estivera com Mia, depois de superar o luto por Teresa, ele parecia mais aberto ao mundo. Talvez fosse uma tentativa inconsciente de compensar a saudade, ou apenas um impulso de viver — afinal, ninguém sabia se teria outro amanhã.

Para ele, a resposta era simples: viver.

Miguel não se prendia ao que poderia ter acontecido. Gostava da vida como ela era — bonita, trágica, imprevisível. O presente e o futuro sempre pareciam mais honestos do que o passado.

E, de certo modo, o destino parecia favorecer sua filosofia. Se perder Teresa deixava um arrependimento que picava o fundo do peito, por outro lado… nesta era, sonhar com sete esposas já não era tão absurdo quanto teria sido um século antes.

Quando eu encontrar minha mãe e ela ver minhas mulheres, vai ficar orgulhosa. Sorriu sozinho ao pensar nisso e empurrou a porta da gerência.

Luna estava ali — óculos quadrado, acessório esse que nunca a viu usar antes, coque ruivo meio torto, expressão séria que se quebrou ao vê-lo. Seus olhos se encontraram, e algo quente passou por dentro dele, como um choque suave. Miguel conteve o impulso e levantou a mão num cumprimento preguiçoso.

— Yo, Luna! Desculpa te dar tanto traba—

Um grampeador cortou o ar vindo na direção dele.

Miguel desviou com facilidade, abrindo um sorriso amarelo. Luna, por sua vez, sorriu radiante, como se nada tivesse acontecido, e caminhou até ele.

— Finalmente posso ouvir sua voz irritante! — disse ela, empurrando a testa dele quando ele tentou abraçá-la.

— Por que tá com raiva?

— Quem disse que estou com raiva?

Uma tesoura passou rente ao rosto dele. Miguel inclinou a cabeça e apenas observou enquanto Luna ria, brincando com o objeto antes de jogá-lo de volta na mesa.

— Como foram os últimos dias? — perguntou ele.

— Ah, você quer dizer esse final de semana em que eu fiquei atolada de trabalho enquanto você se divertia com minha irmã… com a Vic… e com a princesinha da segunda família mais poderosa do país?

Caramba. A fofoca viajou mais rápido do que eu previa.

— Bem… eu só pude ir tranquilo porque sabia que podia contar com você. — Ele disse isso com a cara mais lavada do mundo.

Luna gargalhou, aquela risada curta que sempre precedia algo perigoso. Ela puxou sua pistola personalizada decorada com cerejeiras.

Ei! Aí já é demais!

Miguel avançou num reflexo. Desarmou-a sem cerimônia e a agarrou pela cintura, jogando-a no sofá. Luna arregalou os olhos — surpresa, chocada. Mas havia algo no olhar dela, no lábio entreaberto, que Miguel entendeu de imediato.

Ele avançou e a beijou.

Luna correspondeu, rendendo-se por alguns segundos intensos, até empurrá-lo de volta com força demais. Seu corpo tremia. O olhar dela estava tomado por um medo real.

— Miguel… isso é…

Miguel permaneceu em silêncio, atento à hesitação dela.

— Eu… eu não…

Sem conseguir completar a frase, Luna se levantou e saiu quase correndo do escritório.

Miguel ficou ali, apenas observando a porta se fechar. Ele já tinha uma ideia do motivo.

Jogou-se no sofá com preguiça e suspirou.

Infelizmente tenho coisas demais pra resolver… Luna vai ter que esperar um pouco.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora