Volume 2
Capítulo 50: Consequências
O hall de entrada da mansão tinha aquela elegância silenciosa de fim de tarde: luz âmbar filtrada pelos vitrais altos, o aroma leve de flores frescas misturado ao cheiro limpo de madeira encerada.
Empregadas alinhadas ao longo das colunas murmuravam despedidas formais; alguns seguranças, mais descontraídos, davam acenos e sorrisos cúmplices para Miguel, convidando-o para “tomar umas” qualquer dia. O piso polido refletia a cena inteira como um lago estático — perfeito demais para combinar com a tempestade interna de Miguel.
As irmãs Beaulieu finalmente soltaram Miguel depois de longos minutos o apertando num abraço sufocante. Os rostos delas estavam inchados, olhos vermelhos… ainda assim não queriam deixá-lo ir. Logo migraram para Samira e Victoria, as noras queridinhas da casa, aplicando o mesmo ritual pegajoso de afeto.
O cair da noite já batia à porta, tingindo a mansão com sombras elegantes. Era hora de voltar para Neo Alvorada.
Apesar de corrido, o fim de semana tinha sido um descanso merecido. Pelos olhares de Samira e Victoria — impacientes, vibrando em antecipação contida — Miguel percebia que as duas mal podiam esperar para voltar aqui depois.
As despedidas se acumulavam como ondas… exceto por uma única ausência.
— Onde está aquela princesa mimada? Não vai nem se despedir dos amigos? — Céline fez um bico indignado, braços cruzados, postura impecável mesmo irritada.
— Vou lá puxar ela pela orelha se precisar! — Éloise ameaçou, já inclinando o corpo para sair marchando pelo corredor.
— Talvez ela só esteja cansada — Miguel respondeu com uma neutralidade ensaiada, cada músculo treinado para não denunciar nada. Mas, mesmo assim, todas as mulheres ao redor levantaram a mesma “antena mental” e o encararam com desconfiança pura.
— …Oh…? Por acaso sabe de algo que não sabemos? — Éloise avançou, estreitando os olhos como uma caçadora sentindo cheiro de presa.
Miguel manteve a expressão lisa, tão lisa que podia usá-la como espelho.
— Brinquei demais com ela mais cedo. Ela deve estar cansada. Acho que é só isso.
— Heh… — Céline zombou, com aquela graça venenosa. — Cansada? Ela? Mi… já foi melhor em mentir. O que você está escondendo?
Miguel sentiu o chão se abrir. O hall, tão espaçoso, de repente parecia pequeno demais.
— Não estou mentindo. Só… precisamos ir. Se demorarmos muito, vamos perder o trem das 18:30…
E então aconteceu.
Um vulto castanho atravessou o saguão — quase escorregando no piso encerado — e o coração de Miguel congelou.
Lucy apareceu correndo: descalça, o enorme cabelo amêndoa desgrenhado, pijama torto, ainda marcada pelo sono. A visão contrastava com o ambiente impecável da mansão, e até os empregados deram passos discretos para trás, chocados com a cena.
Ela pulou nele como um míssil guiado, agarrando seu pescoço com força.
— Mestre! Você ia fugir sem se despedir de mim! Você é tão malvado!
Silêncio. Um silêncio tão absoluto que fazia eco.
— Logo depois de me fazer sua mulher!
Dois seguranças tossiram ao mesmo tempo. Uma empregada deixou cair discretamente o pano que segurava, outra teve que ser segurada pelas companheiras. Um mordomo fechou os olhos por um segundo como quem renuncia ao próprio destino.
Miguel empalideceu enquanto sentia seu espírito deixar o corpo.
— Hehehe… como esperado do mestre… me usar assim e depois me descartar… hummm…
ESSA MALUCA DO CARALHO!
Ele gritou por dentro, em desespero puro.
— Mas agora eu sou completamente sua, mestre. O senhor já é meu dono. Eu vou até os confins do mundo~ Mesmo sendo descartada… ah… ainda tá doendo um pouquinho… mas foi tão bo—
Ele tampou a boca dela com a mão, apavorado. O gesto firme só piorou: Lucy corou violentamente, soltando um gemido abafado que deixou metade da ala de empregados ruborizada e a outra metade petrificada.
— Mi… — a voz de Céline soou logo atrás, doce demais, perigosamente doce.
Um riso curto, quase musical. Mas os olhos… vazios como a lâmina de uma guilhotina.
— Lucy, querida, que tal deixar seu mestre ir? — Éloise tentou soar racional, mas cada palavra saía enviesada. — Vocês vão se ver de novo. Mi tem outros assuntos.
— Mas… eu…
— Você é a princesinha da família Leite, lembra? Tem obrigações. Não quer trazer problemas para o seu mestre, quer?
Lucy baixou a cabeça, rendida. Mas antes de ir… lançou-se mais uma vez em Miguel, roubando um beijo apaixonado que arrancou um pequeno “oh meu Deus” de alguma empregada ao fundo.
— Hihihi… não demora, mestre!
Miguel ficou paralisado. Os empregados desviavam os olhos, desconfortáveis; o mordomo fez uma reverência curta como se pedisse desculpas em nome da casa; até a iluminação parecia ficar mais fria.
— Miguel… — Éloise o chamou, suave como seda… mas tão ameaçadora quanto um testamento sendo aberto. — ... o que mais posso dizer... Bom trabalho…
Ele engoliu em seco. Sim, tinha ido longe demais. E agora teria que lidar com o resultado daquele desastre emocional ambulante chamada Lucy.
O descanso que Céline lhe dera naquele fim de semana — aquele alívio doce que parecia ter tirado toneladas das costas — voltava agora multiplicado por dez.
Afinal… ele acabara de se envolver com a joia mais preciosa da segunda família mais poderosa do país.
Se isso vazasse...
Ele expulsou tais pensamentos.
— Isso aí, bom trabalho, Mi — Vic deu um tapinha no ombro e segurou sua mão. Sem julgamento, só gentileza. — Vamos?
Miguel respirou fundo. Samira entrelaçou seus dedos no outro lado, oferecendo um sorriso tranquilo, um pequeno porto seguro no meio da tempestade.
A vida era irônica demais.
E assim o trio seguiu atrás de Angela — completamente estupefata, caminhando como um autômato — que os guiava até a saída com passos curtos e alma ausente.
♦♦♦
A respiração do hall parecia presa num vidro.
— Eu vou levar a Lucy de volta, mana. — Céline tentou conduzir a menina para o segundo andar, mas…
— Não. Lucy precisa ver isso. — Éloise falou sem elevar o tom, porém seu olhar… já não era o olhar gentil que só Miguel e as noras conheciam.
Céline empalideceu.
— Mana…
— Ela tem que entender, Line! — a voz de Éloise cortou como lâmina fina. Não havia raiva. Não havia hesitação. Apenas decisão.
Lucy olhava de uma irmã para a outra, completamente perdida. A respiração curta denunciava o pressentimento feroz que subia por sua espinha — algo grande estava prestes a acontecer, algo enorme, algo irreversível.
Nenhum empregado se atreveu a sair. Nenhum segurança sequer piscou.
Todos sabiam: ninguém abandona o salão quando uma sentença está para cair.
O ar era gélido — não só frio, mas frio de câmara mortuária.
Até os seguranças mais experientes tentavam esconder a tremedeira nas mãos.
— Respondam com clareza. — Éloise falou baixo, mas sua voz encheu o salão como um trovão contido. — Todos aqui viram e ouviram aquilo… não viram?
Os empregados assentiram em uníssono. Alguns hesitaram, como se dessa hesitação dependesse o resto de suas vidas — e de fato dependia.
Éloise suspirou fundo, cansada. Um suspiro que parecia carregar anos de memórias: risadas com aqueles empregados, jantares, viagens, confidências, fidelidade compartilhada…
Doía nela.
Doía de verdade.
Mas Miguel era sua prioridade máxima. Sempre seria.
E depois do que tinham testemunhado minutos atrás… não havia espaço para indulgência.
— Lucy… — ela começou, com esforço. — ... Miguel fez de você sua mulher. Aquilo que você disse mais cedo… é realmente o que parece?
Até ela se engasgou com a própria pergunta.
Lucy tremeu. Depois assentiu, pálida.
— Nós—
— Não precisa dizer mais nada. — Éloise a cortou, firme. Fechou os olhos por um instante, como se buscasse forças num poço já esvaziado. — Lucy… você entende o quanto isso é grave?
— Eu… — a voz dela quebrou. Só agora o pânico real tomou forma. Ainda assim… Éloise viu. Não havia arrependimento.
Havia medo — medo do que viria — mas não arrependimento.
E isso tornava tudo ainda mais impossível.
Ela não só fizera… aquilo…
Como falara diante de várias testemunhas.
O salão inteiro continuava à espera.
Petrificado.
— Ouça bem, Lucy. Você não é mais criança. Precisa entender o peso de cada decisão que toma… ainda mais com a posição que ocupa. — Éloise virou-se lentamente para seus empregados, encarando cada rosto querido, cada amigo de tantos anos. Uma dor funda emanava de seu olhar. — Sinto muito, meus companheiros… mas como todos aqui sabem…
Ela inspirou.
E pronunciou a sentença.
— … apenas os mortos guardam segredos.
Lucy empalideceu de vez. Arregalou os olhos.
— N–não—!
Mas antes que pudesse sequer completar uma frase, o corpo dela foi selado pelas mãos de Céline. Sensação, voz, movimento — tudo apagado num único gesto. Lucy debatia-se, chorando em silêncio, completamente desesperada.
Um dos mordomos — o mais velho, o mais leal — deu um passo à frente. Seus olhos brilhavam com lágrimas, mas ele sorria. Um sorriso terno, paternal.
Ele segurou as mãos de Éloise como se ela fosse a própria filha.
— Não chore, minha pequena. Foi uma honra trabalhar para as senhoras todos esses anos.
Éloise desabou em lágrimas. Mas não desviou o olhar.
Ela não tinha esse direito.
— Por favor, senhora… — o velho disse, firme. — Cuide das nossas famílias.
Ela assentiu.
Faria isso. Jurava que faria.
E então aconteceu.
Diante de Éloise.
Diante de Céline.
Diante de uma Lucy em desespero absoluto, tentando gritar sem voz.
Todos os empregados e seguranças — pessoas que serviram a família por décadas — retiraram discretamente as armas ocultas sob o uniforme.
Nenhum hesitou.
Nenhum chorou alto.
Nenhum pediu clemência.
Todos cumpriram a última ordem.
E o hall da mansão, tão belo e tão perfeitamente decorado, tornou-se silencioso demais.
Silencioso como um túmulo recém-fechado.
♦♦♦
O laboratório parecia ainda mais silencioso depois do que acontecera no hall.
O ar tinha cheiro de desinfetante, metal frio e uma nota doce de polímeros sintéticos recém-aquecidos.
— Como ela está? — Éloise perguntou, sem levantar os olhos das telas.
— Ainda chorando e se culpando. — Céline deu de ombros, apoiando-se na bancada de aço. — Bom… pelo menos ela entende a posição em que se encontra agora.
Os dedos de Éloise tamborilaram na mesa, inquietos.
— Para o bem ou para o mal, isso ter acontecido tão rápido nos poupa problemas futuros. — Céline continuou. — Infelizmente perdemos muitos amigos… mas agora, Lucy é praticamente uma garantia ao Miguel. Viu o quanto aquela maluquinha estava transtornada por ele.
Éloise soltou um riso curto, seco, quase um suspiro.
— Céus… como as coisas foram acabar assim… — Ela massageou a testa com o indicador. — Imagine a cara da Ingrid se descobrir que a filha é uma masoquista apaixonada por um garoto que nem da elite é.
— Não quero nem pensar nisso. — Céline fez uma careta, cruzando os braços. — Éloise… Ingrid nos mataria primeiro e faria perguntas depois.
— Pois é. — A irmã mais velha balançou a cabeça. — Mas não temos tempo para esse tipo de preocupação agora. Não tem mais volta. Já temos tudo que precisamos. Vamos trazer nossa filhota de volta. Aliás, Line… você não esqueceu de pedir aquilo, né?
— Claro que não. — Céline puxou a cadeira e se levantou, andando até a mesa central.
Mia estava ali.
Ou o que restava dela.
O corpo androidizado jazia imóvel, peito aberto, órgãos sintéticos destruídos, circuitos queimados, estrutura colapsada. Era impossível recuperar aquele chassis.
Mesmo assim, havia uma estranha serenidade na expressão imóvel da menina, como se apenas dormisse após um longo dia.
— Vai chegar em dois dias — Céline informou. — Se tivéssemos pedido pro Adrian, teria chegado ontem… já teríamos entregue para o Mi.
— É. — Éloise torceu a boca. — Mas isso só chamaria atenção. E atenção é exatamente o que não queremos agora.
Ela virou o corpo de Mia de lado com cuidado respeitoso, como se ainda precisasse ser gentil.
Céline, já com bisturi na mão, aproximou-se e fez um corte preciso na nuca: primeiro horizontal, depois um traço vertical subindo até o topo do crânio.
O mundo pareceu ser engolido por um clarão.
Um azul reluzente varreu o laboratório, refletindo nos pisos metálicos e nas paredes de vidro reforçado.
Lá dentro, exposto na cavidade craniana, pulsava o cérebro de Mia.
Parecido com o de um humano, mas vivo como um organismo de outro mundo: reluzia em um azul ftalocianina vibrante, e através de sua superfície translúcida, formas serpentinas nadavam como micro criaturas luminescentes — milhões delas — dançando num lago silencioso.
Era belo.
Era estranho.
Era vivo.
— Ela deve estar sonhando… — Éloise murmurou, tocada. — Espero que sejam sonhos bons.
Céline guardou o cérebro com extremo cuidado dentro de uma maleta especial, que se fechou com travas magnéticas.
Ao fundo, dois robôs entraram no laboratório.
Um recolheu o antigo corpo de Mia para descarte, ergueu-o com suavidade mecânica e deixou o recinto sem ruído.
O outro trouxe uma pilha de materiais sintéticos — entre eles um enorme bloco gelatinoso, semelhante a um pedaço gigante de tofu pálido.
— Por enquanto, parece só um cubo de comida desprezível… — Céline comentou, colocando as luvas. — Mas em pouco tempo, vai virar um corpo impecável. Melhor que o anterior. Mais forte.
— Então vamos começar. — Éloise respondeu, com a firmeza de quem já não tinha o luxo de hesitar.
As máquinas despertaram com um zumbido grave, e luzes holográficas tomaram o espaço.
O renascimento de Mia tinha começado.
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