Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 53: Motivos

Este era um ponto muito popular cem anos atrás. Miguel já tinha vindo ali algumas vezes com Teresa e com sua mãe — lembranças que surgiam com um gosto agridoce. Era um pedacinho do Lago Norte, de frente para o Lago Paranoá, onde a água se estendia como uma placa de vidro azul-escuro prestes a engolir o sol do crepúsculo.

Logo o sol iria se pôr. E, diferente das áreas mais verticalizadas de Neo Alvorada, esse pedaço antigo da cidade preservava muito do charme de antes: casas baixas, árvores que ainda tinham espaço para crescer, um silêncio suave que não lembrava em nada o núcleo urbano tomado por painéis holográficos.

Havia drones — sempre havia — cruzando o céu, alguns da polícia, outros entregando comida, e seus rotores deixavam um zumbido discreto que parecia parte natural da paisagem. Mesmo assim, aquele mar de LED e neon tão característico da capital era bem menor por ali; um bairro nobre tinha o luxo do silêncio.

Cezar estendeu uma garrafa de cerveja para Miguel, sem cerimônia.

Ele aceitou — não porque gostasse, mas porque achava melhor acompanhar o coroa na bebida. A garrafa era pesada e fria, condensando na mão. Miguel a abriu com facilidade e arremessou a tampa metálica no chão; logo algum mini-robô passaria recolhendo tudo, como sempre fazia.

Tomou um gole sem hesitar. O álcool praticamente não fazia efeito nele — exceto em doses absurdas — do mesmo modo que venenos — se houvesse algum — dificilmente seriam um problema real. O organismo dele era uma fortaleza de aperfeiçoamentos, algo tão vantajoso quanto condenado a sempre lembrar de onde vieram tais vantagens.

Por um tempo, os dois ficaram ali, lado a lado, encarando o lago repintado de dourado. A brisa era leve, carregando um cheiro quase mineral da água e o distante aroma de árvores úmidas.

— Alguns dias atrás perguntei ao seu líder qual era seu verdadeiro objetivo. — A voz de Cezar saiu tranquila, como se estivesse apenas comentando o clima. — O que acha que ele respondeu?

Miguel não precisou pensar muito.

— Conhecendo o Victor… imagino que tenha dito algo sobre dar um lar para todos os seus companheiros.

Cezar sorriu de canto, confirmando com um aceno lento.

— Ele disse algo bem parecido. — O grisalho tomou um gole demorado, os olhos ainda fixos na linha do horizonte. — Mas e você, Miguel? Qual é o seu verdadeiro objetivo?

Era claro como dia. Não existia espaço para hesitação.

Algo dentro dele respondeu antes mesmo que sua boca se movesse.

— Encontrar a minha mãe.

— Sua mãe? — Cezar franziu o cenho, visivelmente surpreso. A sobrancelha arqueada, ele tomou outro gole de cerveja enquanto esperava mais alguma coisa sair da boca de Miguel.

— Hm. Minha mãe sempre foi uma mulher muito ocupada, mas… ainda assim arranjava um jeito de me levar com ela no trabalho. Até que, um dia, acho que o serviço exigia atenção demais. Ela me deixou com meu avô e… — seus olhos correram rápido pelo lago, como se procurassem alguma resposta ali — eu nunca mais a vi desde então. Meu foco agora é encontrá-la.

O vento soprou mais frio, levantando pequenas ondulações no Paranoá.

— E o que fará depois que concluir seu objetivo? — perguntou Cezar sem tirar os olhos da água.

— Quem sabe? — Miguel girou a cerveja na mão, distraído. — Quando eu a encontrar… bem, poderei fazer praticamente tudo o que eu quiser.

— E se não conseguir encontrar sua mãe? — insistiu Cezar, agora mais sério.

— Vou procurá-la até meu último suspiro — Miguel respondeu sem hesitar. — Mas se até lá não encontrar, ainda assim… vou ter criado um lar pra mim e para as minhas mulheres. No fim das contas, meu objetivo é me reunir com a minha família. Ter um monte de filhos e viver em paz.

Cezar tremeu de leve, rindo sentado no gramado — não do conteúdo, mas da naturalidade com que Miguel dizia aquilo.

— Você é bem focado… mas versátil. — Ele girou a cerveja entre os dedos. — Nunca vi alguém nesse meio com um sonho assim. Quase todos querem ser os maiores, os mais fortes. Até Victor, que também fala em lar para os dele, carrega um outro tipo de ambição. Ele vive essa vida como destino. Você, por outro lado… trata isso como uma fase.

E era exatamente isso.

Se Miguel não tivesse cruzado o caminho da Crimson Wolf, teria encontrado outro viés para seguir. Ele não perdia tempo imaginando “o que teria sido”. O destino — ou o que quer que fosse — já o tinha colocado ali. Questionar alternativas era um luxo inútil.

— Mas pra alcançar o que deseja vai precisar de poder — continuou Cezar. — E pelo visto você não está preocupado com isso. Não sei se isso é confiança extrema… ou prepotência.

Ele tragou o ar frio. — No dia em que atingir seus objetivos, vai simplesmente deixar sua alcateia?

— Claro que não. — Miguel sorriu pequeno. — Mas provavelmente vou ser mais um membro reserva. Ainda vou ajudar meus amigos, mas minha prioridade sempre vai ser minha vida e da minha família. Se um dia tiver que escolher entre eles e eu… escolherei minha casa sem pensar duas vezes.

Cezar tomou o último gole. A garrafa escorregou da mão dele e rolou até bater nas pedras que separavam o gramado da areia.

— Metas bem definidas… prioridades mais ainda. — Ele soltou uma risada de canto. — Tem mesmo só 17 anos? Que tipo de vida teve pra pensar assim?

Miguel soltou um suspiro curto.

— Que tipo de vida, hein…? Se eu disser que recebi amor e carinho na medida do possível, mesmo passando pelo inferno… você acredita?

— …

Miguel terminou sua cerveja também. Em vez de simplesmente deixá-la cair, apoiou a garrafa na lateral, inclinou e empurrou com precisão. Ela deslizou pela grama, bateu nas pedras, deu uma pirueta no ar e caiu de pé na areia — torta, mas equilibrada.

Cezar abriu um sorriso de incredulidade.

— Porra… isso foi foda.

Miguel só riu. Se dissesse que era sorte, pareceria falsa modéstia.

Mas então, seu riso se apagou.

— Cezar… — a voz ficou gelada, o tom sério. — Alguém entrou em contato com você recentemente… com segundas intenções?

O grisalho era esperto. Captou exatamente o que Miguel estava perguntando — e por quê.

Ele não respondeu de imediato. Puxou o charuto, acendeu, tragou fundo. A fumaça subiu como um véu pesado. O frio do início da noite pareceu ficar mais intenso, como se algo tivesse se enroscado ao redor dos dois.

— Hm. Recebi uma carta. Escrita à mão. — Ele manteve o olhar no horizonte. — Pensei que fosse dos Black Quill, mas eles entregam informação pessoalmente, então não fazia sentido. Abri mesmo assim. O conteúdo dizia que você tinha matado meu sobrinho. Com tantos detalhes… por um momento, até considerei.

— Mas? — Miguel perguntou, sem qualquer medo. Sabia que não havia hostilidade em Cezar.

— Mas eu já tinha investigado vocês no dia da morte do Hugo. — O olhar dele se estreitou. — Vocês também foram atacados. Quase morreram. Especialmente Victor e… você.

Uma tensão atravessou Miguel por dentro. Dependendo do quanto Cezar tivesse descoberto, seria fácil perceber que o ferimento que ele sofreu naquele dia teria matado qualquer humano normal. E daí para deduzir o Primordium… era um passo curto demais.

Cezar, porém, não avançou. Sabia exatamente onde parar. Um homem inteligente entende que, ao forçar demais, só afasta quem deveria aproximar.

— Além disso — continuou —, todos os atacantes eram homens do meu sobrinho. A ação foi precisa, coordenada, pegou vocês desprevenidos. Só que… Hugo não tinha essa capacidade. Ou seja: alguém o usou para atacar vocês e o descartou no mesmo dia. E agora, talvez essa mesma pessoa esteja tentando me colocar contra você.

Miguel relaxou um pouco.

Era isso que tornava Cezar um dos cabeças de Neo Alvorada. Discernimento.

— Eu penso o mesmo. — Miguel cruzou os braços. — Só não faço ideia de quem seja ou do motivo.

Cezar fez um leve aceno de cabeça.

— No mínimo, alguém com recursos acima dos meus. Talvez algum figurão de megacorporação. Um filho da puta com tempo de sobra pra brincar desse jeito. — Outra tragada. — Para alguém assim se interessar pelo seu grupo… fico me perguntando o que vocês escondem.

Inevitável que essa pergunta surgisse. Miguel sabia disso desde o início.

— Realmente temos alguns segredos. — Ele sorriu de canto. — Assim como o senhor.

Cezar deu um tapa firme nas costas dele, soltando uma gargalhada grande e sincera.

— Você me dá calafrios, pivete. Mas gosto de você. Já falei com seu líder. Ele não me deu uma resposta clara, mas… quando vocês subirem alguns degraus, serão bons aliados. Se não forem… — deu um meio sorriso — vai ser uma pena. Minha querida Alice vai ficar triste de perder um amigo.

Miguel assentiu sem medo.

Independentemente do caminho que Victor escolhesse, ele o apoiaria. Sempre. E, até lá, talvez já estivesse forte o suficiente para enfrentar alguém como Cezar, se fosse necessário.

♦♦♦

Como qualquer outro distrito da luz vermelha, este era um território onde o brilho não servia para iluminar — mas para cegar. Letreiros pulsavam como corações artificiais, respirando numa cadência inquieta. Vermelhos saturados, magentas venenosos, ciano que piscava em espasmos — tudo refletido no asfalto úmido, numa poça de cores que parecia viva demais para ser só luz.

As garotas eram parte da paisagem tanto quanto os neons. Não apenas “expostas”, mas curadas, como vitrines humanas para um mercado disposto a pagar pelo que fosse mais reluzente. Corpos redesenhados com implantes cintilantes, tatuagens luminescentes serpentando pela pele, olhos substituídos por lentes que mudavam de cor conforme o humor do cliente.

Havia modelos mais discretos também — meninas apoiadas em paredes sujas de propaganda holográfica, fumando cigarros que exalavam vapor mentolado misturado com glitter sintético.

O cheiro era uma mistura previsível e desconfortável: ozônio das placas queimando, perfume barato demais, suor e lubrificantes aromatizados evaporando no ar quente. E por trás disso, sempre a trilha eletrônica — graves que tremiam no estômago, sintetizadores agudos demais, batidas que lembravam tique-taques acelerados.

Depois de terminar seus assuntos com Cezar, e com o grisalho lhe passando alguns conselhos, Miguel seguiu para seu próximo destino. O dia estava mesmo corrido — mas a partir do momento em que entrou naquele reduto, a correria mudou de natureza. Ali tudo parecia impaciente, faminto.

Ele mandou mensagem pra Samira avisando que chegaria tarde, mas quem respondeu foi Victoria, claramente tendo sequestrado o celular dela no apartamento.

“O que foi, tá comendo alguma puta na rua?”

Abaixo uma foto dela fazendo bico, deitada de costas na cama deles.

Miguel riu sozinho. Não era o caso, embora a ironia de estar justamente ali deixasse a piada com gosto de verdade inconveniente.

“Obviamente que não. Tenho um trabalho a fazer. E você, vai dormir com a gente hoje?”

A resposta surgiu no Orkit em questão de segundos, como sempre quando Vic estava animada:

“Yep! Consegui adiantar meu lado e tô mais livre, então vai rolar uma noite bem quente hoje!”

Logo abaixo, apareceu uma foto… bem quente. Miguel se inclinou para o lado, escondendo a tela do fluxo de gente que atravessava a calçada. Uma onda de tesão bateu nele com força — uma excitação bem diferente daquela de ver o corpo dela pessoalmente.

A foto tinha o toque típico de Vic: divertida, sacana, irresistível.

“Te deixei animado, não deixei! Manda foto de como ficou ao ver minha fotinha!”

Miguel soltou o ar pelo nariz, meio rindo, meio impaciente.

“Desculpe, já estou no meio do trabalho…”

A réplica veio rápido:

“Aff… tá então. Mas depois me manda foto do seu pau! Hehe. Esse tipo de excitação é diferente do normal!”

Miguel guardou o celular, sentindo o sorriso desaparecer aos poucos enquanto retomava o foco no que precisava fazer.

Quando chegou ao ponto certo, o brilho dos letreiros pareceu se tornar hostil. O tipo de lugar onde as sombras serviam mais para esconder clientes do que criminosos.

Miguel não era um psicopata que tratava vida ou morte como equações. Desde que aceitou o acordo com Julia, carregava um peso constante no estômago. Tirar uma vida a sangue frio não fazia parte do seu instinto.

Mas os documentos entregues por ela contavam outra história.

Como da vez anterior, havia notas sobre cada alvo — atividades, crimes, detalhes que denunciavam monstros com rosto de gente. Nada ali era de um “bom samaritano”.

E Miguel suspeitava que os pedidos de morte nem eram de Julia: alguém contratava, e os Black Quill apenas intermediavam.

As cartas tinham um “eu” carregado de ressentimento, justificativas quase emocionais. E, para Miguel, isso tornava o ato mais digerível.

Se fosse para tirar a vida de alguém que só vivia com seus defeitos humanos comuns, teria recusado. Mas aqueles nomes… não havia nada de comum neles.

Estacionou a moto num beco estreito, onde o gotejar de um fluido escuro caía de um ar-condicionado velho como se o prédio estivesse sangrando óleo.

Sem retirar o capacete, aproximou-se do puteiro Lolita — um nome que já entregava a natureza perversa por trás das paredes.

Logo na entrada, algo dentro dele arrebentou.

— Olá, tio! Bem-vindo! Já tá sabendo das promoções dessa semana?

A garota devia ter a idade de Alice. E os neons refletidos no rosto dela davam a impressão de que alguém tinha pintado a infância com cores que não pertenciam a ela.

Foi combustível suficiente para endurecer o coração de Miguel.

Ele tocou de leve nos cachos da menina, oferecendo algumas cédulas.
— Tire uma noite de folga, tudo bem?

O brilho nos olhos dela não deveria existir ali. E quando ela começou a se virar para os becos laterais, ele segurou seu braço com cuidado.

— Por aí não. Vai pra longe. Longe mesmo.

Ela assentiu com medo, como quem entende instintivamente que algo ruim estava prestes a acontecer.

Assim que sumiu, Miguel sacou sua nova arma — a LEMI-END, corpo negro com circuitos vermelhos pulsando como vasos sanguíneos artificiais.

O primeiro segurança percebeu a ameaça. Nem teve tempo de dizer palavra. A bala atravessou sua testa e abriu seu crânio como vidro fraturado.

A luz neon lambia o sangue no chão como se aquilo fosse só mais uma parte da decoração do distrito.

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