Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 46: A solidão dos gênios parte 1

Miguel não conseguia lembrar da última vez em que acordara tão tarde. O visor do celular marcava 13:14. Notificações pipocavam sem parar — mensagens de amigos, anúncios aleatórios, o inferno habitual do feed.

Sorriu ao ver a foto que Pietro postara com Nina: os dois colados na cabine da roda-gigante, ela beijando sua bochecha enquanto ele corava, uma cena que seria rara até alguns dias atrás.

Leo tinha enviado outra mensagem exigindo que voltasse logo — encontrara um rodízio novo, dessa vez de pizza.

Tomara que a gente não seja expulso desse também, Miguel digitou.

Seria uma merda! — Leo respondeu quase instantaneamente.

Mas não dá pra culpar o dono. A gente comeu o quê? Uns sessenta smash burger?

Sei lá. Eu ainda queria mais e ele nos expulsou! Corno maldito.

Miguel riu enquanto verificava o resto das mensagens. Uma em específico o pegou de surpresa — e o fez sorrir de forma maliciosa. Respondeu à mensagem de Luna, “Tô com saudade da sua voz irritante”:

Também estou com saudade do seu perfume.

Descarado, sim. Mas provocar Luna tinha um sabor próprio. Não era o mesmo tipo de desejo que sentia por Mia, Vic e Samira — era uma admiração especial, envolta por aquele mistério que Luna nunca deixava ninguém tocar. Miguel tinha um bom palpite sobre seu passado e se ele estivesse certo, passaria a admira-la ainda mais, mas ela evitava falar disso a qualquer custo.

As irmãs Sui eram complicadas.

Ainda assim, ele não seria capaz de odiar Luna ou Samira. Gostava de ambas. E, bom… se um dia acabasse ficando com as duas…

— Que sorriso sem vergonha é esse, hein? — Céline entrou no quarto carregando uma bandeja de prata e arqueou uma sobrancelha. — Tá vendo pornô, é?

— Não é isso — Miguel negou, ainda sorrindo.

— Difícil acreditar vendo esse pinto duro.

Ele olhou para baixo. O volume na calça denunciava. Corou, empurrando discretamente a ereção para o lado e se escondendo com o edredom.

— Isso é só tumescência peniana noturna—

— É claro que eu sei disso, meu bebê. — Céline riu baixo, os ombros tremendo enquanto se aproximava. Ela usava a mesma camisola de cetim da noite anterior; devia ter acordado só um pouco antes para buscar o café… ou seria melhor dizer almoço?

— Tô falando com uma amiga — Miguel mostrou o celular sem hesitar. Para ela, nunca precisava esconder nada; era sua terceira mãe.

Céline lançou um olhar rápido e abriu um sorriso zombeteiro.

— Amiga, é? Ela também vai entrar na vara?

Miguel travou por meio segundo. Um mini-AVC.

— Luna Sui… então é a irmã mais velha da Sam… ah, seu safado! Quer ter as duas, né?! Igualzinho à mãe! Vocês dois são incorrigíveis!

— Humpf! Fala isso, mas você foi a primeira a se confessar. A Lise durou bem mais ao charme da minha mãe, mas no fim, também caiu.

Miguel viu tarde demais o brilho assassino no olhar de Céline. Ela largou a bandeja no criado-mudo e engatinhou até ele com um sorriso doce demais para ser seguro. Em seguida, se jogou sobre ele, as mãos delicadas apertando seu pescoço com carinho questionável.

— Seu pestinha! É claro que eu me confessei primeiro! A Lise, com esse orgulho de irmã mais velha, jamais admitiria que queria a Sara, então eu tive que dar o primeiro passo! Mas todo mundo sabe que a Lise era quem mais estava apaixonada! E além disso — a culpa é toda da sua mãe! Aquela súcubo! Ela que nos corrompeu, enganou nós duas e agora, até hoje, é a única dona dos nossos corações!

Miguel mal respirava, mas sorria, rindo com dificuldade enquanto ela desabafava como uma adolescente apaixonada.

— Ah… tô com fome. Vamos comer logo — Céline o soltou, o puxando pela orelha.

Os dois se sentaram no chão, lado a lado, dividindo a bandeja com pães, manteiga, café, leite, frutas, torradas, roscas. Céline falava como cúmplice criminosa, apontando para o celular de Miguel.

— Não assim… com essa tal Luna, é melhor agir como você estava agindo no começo. Não lembra do que a gente ensinou todos esses anos?

— Você quer dizer o “manual celestial para enganar e pegar qualquer gatinha que quiser”?

Céline caiu na gargalhada.

— Isso mesmo! E qual era a regra mais importante?

“Evitar a todo custo machucar o coração de alguém. O amor vem em primeiro lugar, sendo o principal pilar! Tudo bem passar a piroca em todas, mas nunca forçar, machucar, ou enganar só por benefício próprio.”

— “Ou então arrancaremos seu pinto!” Não esqueceu dessa parte, né?

Miguel engoliu seco. Estava fudido. Precisava conquistar Lucy — idealmente casar com a garota — mas, mesmo usando manipulação estratégica, jamais poderia feri-la. Principalmente emocionalmente. Isso não contrariava a regra máxima: manipulação boa era permitida.

Uma gota de suor escorreu por sua têmpora.

— Eu e a mana criamos o manual pra impedir que você acabasse igual à sua mãe — Céline continuou —, fazendo um monte de maluco se apaixonar, frustrando todo mundo, e ainda pior, deixando gente obcecada atrás dela mesmo sabendo que nunca ficariam juntos. Lembra do Caim e Abel?

— Esses não eram os nomes deles — Miguel riu.

— Mas o apelido da mana era perfeito! O mais velho matou o mais novo por ciúme, e no final, Sara o matou como punição — e por saber que ele iria nos ferrar. E ainda teve as trigêmeas! Se ela não parasse as três, teriam se matado com aquelas facas… sua mãe realmente colecionou um bando de maluco.

Memórias bizarras, trágicas e cômicas ao mesmo tempo. Longínquas o suficiente para rirem hoje.

— Mas no fim… — Céline ergueu o dedo, triunfante. — Só eu e a mana somos donas do coração dela. Tirando você, é claro.

E era verdade. Entre centenas de amantes, só duas pessoas realmente entraram no coração de Sara: as irmãs Beaulieu. Agora suas segundas mães.

— Não pretendo me aventurar tanto quanto ela — Miguel cruzou os braços, erguendo o queixo. — Meu desejo é ter apenas sete esposas.

Ele não duvidava que conseguiria. Mas suas atuais aprovariam? Bem… ele tinha o “manual celestial” a seu favor.

Todas, claro, precisariam se dar bem. Não queria repetir a tragédia das trigêmeas ou outros casos ainda piores que ocorreram com sua mãe.

— Nesse caso, faltam só mais três. Se incluirmos essa Luna, apenas mais duas — Céline contou nos dedos.

— Não… — Miguel pousou a mão no coração, sereno. — Teresa ainda vive aqui.

As covinhas de Céline afloraram num sorriso luminoso.

— Hm. — Ela encheu a caneca dele de café e pegou uma rosquinha de leite para si.

A tarde correu tranquila. Os dois, “mãe” e filho, sentados no chão, tomando café e rindo enquanto Miguel flertava com Luna — que jamais desconfiaria da cumplicidade daquela dupla.

♦♦♦

Miguel não encontrava Samira e Vic em lugar algum. Uma das empregadas, com aquele sorriso cúmplice de quem sabe mais do que diz, comentou que elas estavam no pomar com Éloise. Céline também havia se afastado, tomada por algum assunto urgente.

Ele soltou um riso curto, baixo — era óbvio que estavam tentando deixá-lo sozinho com Lucy.

E foi atrás dela.

Não que acreditasse ser capaz de conquistar a garota que, muito provavelmente, queria esganá-lo desde ontem. Mas precisava ao menos tentar consertar alguma coisa.

Lucy estava recolhida no canto da sala de estar, sentada diante do piano. O olhar dela vagava longe, sem foco, apagado — distante do brilho petulante e elétrico que sempre carregava. Uma mão repousava solta ao lado do corpo; a outra tocava as teclas como quem esquece o próprio gesto no meio do caminho.

Miguel caminhou sem pressa, pisando macio, quase sem produzir som. Como fizera no xadrez, não pediu licença nem anunciou sua presença. Simplesmente se aproximou da janela e se sentou ao lado dela.

Lucy deu um gritinho curto, quase um soluço de susto. Olhou para ele atônita, as bochechas disparando em vermelho, e por um segundo seus olhos oscilaram entre o rosto dele e sua virilha que tentava não encarar de jeito nenhum.

Miguel não disse nada. Mantinha a postura ereta, o semblante sereno. Apenas estendeu a mão e pressionou suavemente as teclas.

— …

A melodia nasceu devagar. Notas limpas, claras, deslizando umas sobre as outras em uma harmonia impecável. E, pouco a pouco, o mundo ao redor cedeu: o silêncio da sala ficou mais denso, a luz filtrada pelas janelas pareceu repousar sobre eles, e Miguel, sem perceber, afundou no próprio ritmo.

Entrou naquele raro ponto de concentração absoluta — onde nada existe além do som que se cria.

Cada tecla, ao ser tocada, deixava escapar um fragmento de algo que ele não sabia nomear, mas reconhecia como se fosse parte de si desde sempre.

A sala desapareceu.

Lucy desapareceu.

O presente se dissolveu como névoa.

E, ao invés disso, veio a lembrança.

O toque delicado dos dedos de sua mãe guiando os dele, corrigindo posições com uma paciência gentil. A voz suave dela, calorosa, elogiando cada pequeno avanço. O perfume — leve, familiar, o tipo de cheiro que prende o coração por toda a vida.

Não era música.

Era afeto em movimento.

Era saudade pulsando entre as notas.

Era o eco de um amor que sobrevivia mesmo através das ruínas, mesmo através do destino cruel que pairava sobre ambos.

Ele se entregou, sem reservas...

A melodia avançou até o fim, mais completa e plena do que jamais fora. Quando seus dedos enfim cessaram, Miguel retornou devagar ao próprio corpo, como quem volta de um mergulho profundo.

Respirou.

Sorriu.

E então, ao olhar para o lado, viu Lucy…

— Huuuhh! Huuuhhh…

Ela chorava como uma criança perdida.

— É bonita, não é? — ele murmurou, limpando com o polegar uma lágrima que escorria pela pele quente dela.

Lucy nem reagiu ao gesto — tão tomada estava pela emoção.

— …huu… qu-quem… a criou…? Eu nunca ouvi nada… nada parecido…

— Minha mãe — disse Miguel, num tom quase reverente. — Na época, ela ainda não tinha terminado. Me deu o dever de a completar um dia… mas até hoje eu não tinha conseguido.

A música nascera da saudade de Sara — da distância da família, do perdão que ela queria oferecer aos pais mas nunca tivera oportunidade. Talvez só por estar exatamente nesse instante, nessa época distante daquela, Miguel tivesse encontrado o pedaço que faltava.

Uma lágrima escorreu pelos cantos dos olhos dele.

Lucy, sem pensar, tocou suavemente seu rosto. O gesto era tão sutil, tão repentino, que o fez piscar em surpresa. E foi só então que ela percebeu o que estava fazendo. Recuou rápido, ficando de pé, longe dele, limpando o choro às pressas, vermelha, tensa, envergonhada.

— Você me odeia tanto assim? — ele perguntou, com calma. Dissimulado.

— Sabe que eu não te odeio! — a voz dela saiu alta demais; corou na mesma hora. — Mas você é irritante! Eu não consigo te entender! E além disso… quero que me diga: quem é você de verdade? Por que alguém fora das grandes famílias teria o Primordium?

Ele engoliu a situação com um ar resignado. Fazia sentido ela suspeitar. Além disso, ele tinha consciência que a aposta que fez era de extremo risco, por isso já tinha pensado em contramedidas.

— Como descobriu? — Miguel perguntou com calma. Já tinha sua teoria, mas manter o ritmo da conversa sob controle era essencial — e, nesse campo, ele estava anos luz à frente de Lucy.

— Porque essa é a única explicação pra eu ter perdido pra você no xadrez! — ela apontou pra si mesma, inflada de convicção. — E como você nem tentou negar… e ficou calmo daquele jeito… tô certa, não tô?

Miguel quase perdeu a postura.

Aquilo… aquilo não tinha nada de lógica. Era puro ego. Era tão absurdo que doía. E ela tinha dito com tanta certeza que ele simplesmente desistiu de argumentar — sentiu que qualquer tentativa só pioraria a situação.

A suposição dele era muito mais racional, quase científica.

E ela chega nessas conclusões por puro narcisismo?

Ele se sentia traído.

— Pensando bem — continuou Lucy, franzindo o cenho — aquele soco que eu te dei ontem… devia ter quebrado seu nariz e uns dentes. No mínimo. Era pra você estar todo costurado. Mas essa sua cara sonsa tá inteirinha. Como se nada tivesse acontecido. Essa regeneração… até entre os herdeiros principais eu nunca vi algo assim.

Lucy parecia cada vez mais desconfiada.

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