Volume 2
Capítulo 44: Precisa descansar
— Meu pequenino Miguel… — A voz chega até mim como um toque leve, quase flutuando no calor tranquilo desse dia. — Às vezes me arrependo de ter criado você desse jeito.
Minhas pálpebras pesam. Tento abrir os olhos, mas a exaustão me prende. A cabeça repousa sobre as coxas dela, e o carinho nos meus cabelos me mantém flutuando nesse estado entre vigília e sono.
Hoje não foi meu corpo que cansou — foi minha mente. Estou tão esgotado que minha consciência falha em pequenos cortes. Ainda assim, sinto tudo: o calor da pele dela, o clima úmido da floresta, a sombra fresca repousando sobre nós, o cheiro do gramado e das flores. Araras e passarinhos ao longe, macacos pulando pelos galhos. Meus sentidos estão nítidos, mas eu… eu quase não estou aqui.
— Você sempre foi tão precoce. — O beijo na testa me atravessa como um alívio simples e direto. — Aprendendo sem parar, pensando sem parar… criando teorias, mergulhando em tudo com aquela fome que só você tinha. E por não conviver muito com outras crianças, tudo o que fazia era estudar, treinar, refletir…
Consigo sentir o arrependimento dela.
Mãe… eu não me arrependo da vida que tive.
Eu fui feliz. Você estava comigo. Sempre.
Mesmo nas épocas ruins que passamos, nos dias difíceis. Quando quase morremos tantas vezes, mesmo quando eu chorava ou estava com medo. Eu não me arrependo de nada disso.
Quero dizer isso, mas só consigo respirar devagar.
— Eu sei o que está pensando, meu pequenino. — A voz dela se torna ainda mais macia, quase um canto. — Alguém tão apaixonado pela vida nunca iria se arrepender do próprio destino. Você herdou isso de mim… mas talvez não compreenda completamente o peso dessa consciência tão elevada.
Ela continua acariciando meus cabelos. Minha cabeça afunda mais nas coxas dela, como se meu corpo estivesse desistindo.
— Nas últimas semanas você e Teresa têm ajudado tantas famílias refugiadas… — Ela suspira. — Não é algo que um garoto de dezesseis anos deveria carregar. Mas você carregou. Porque é especial. Porque é confiável.
Sinto o peito apertar.
— Até os adultos confiaram em você. E você não falhou. Mas, me diga… quanto isso te desgastou? Teresa percebeu antes de você. Quanto você tem dormido? Menos de três horas por noite? Quantas patrulhas? Quantas tarefas?
E então tudo faz sentido.
As olheiras.
A cabeça pesando.
O jeito aflito de Teresa, sem saber como falar comigo.
A culpa aperta o estômago.
— Descansar não é só… aquilo que você e a Teresa têm feito pra aliviar a cabeça. — Ela desliza a mão pela minha têmpora. — Você precisa desligar. Dormir. Nem percebeu o quanto esgotou a Teresa também, percebeu? A coitadinha veio reclamar que você só a procurava pra isso. Mal conversavam. Mal existiam juntos. Eu devia te dar uma surra.
Droga.
Eu preciso me desculpar com ela.
— Escute, meu pequenino… você é especial, sim. É maduro, racional. As pessoas confiam em você porque você nunca hesita. Mas por causa disso, todos esquecem que você ainda é um garoto. — Ela ajusta minha cabeça no colo. — E você mesmo esquece.
O torpor vai engolindo meus pensamentos. É um sono pesado, inevitável.
— Descanse. Durma. Seu corpo aguenta por causa do Primordium… mas a mente opera em uma dinâmica muito mais complexa, por isso está no limite.
A voz dela começa a se afastar, como se eu estivesse caindo devagar para um lugar mais fundo.
— Durma, meu pequenino Miguel…
O calor dela se mistura com a sombra fresca.
— E quando acordar… prepare-se pra uma boa surra...
♦♦♦
Uma sensação nostálgica o atravessou assim que abriu os olhos e percebeu que estava deitado no colo de Céline. Por um segundo, Miguel achou que ainda estava preso naquele sonho. O toque leve nos cabelos, o calor suave… tudo era familiar.
Céline o observava com um sorriso tranquilo, os dedos deslizando pela raiz dos fios num carinho lento. Miguel piscou algumas vezes, tentando afastar aquela névoa pesada que se prendia aos pensamentos.
Estranho… como se eu já tivesse vivido exatamente isso.
— Line… quanto tempo eu dormi?
— Quatro horas.
— Tudo isso?! — A surpresa escapou antes que ele conseguisse controlar o tom.
— Tudo isso? — ela arqueou a sobrancelha. — Não seria “só isso”? Mi, você ainda não percebeu? Está no limite.
Miguel não respondeu.
Céline ajeitou a postura, apoiando as costas na cabeceira da cama. As pernas dobradas, os pés encaixados sob a própria bunda, a camisola de cetim azul-escuro moldando o corpo de maneira simples e despretensiosa. Estavam sozinhos ali — só os dois.
— Quanto estresse, quanto peso… — murmurou ela, analisando o rosto dele. — E ainda usando o Kaihōtai assim, sem pensar. Não faz essa cara. A gente sabe da capacidade da Lucy. Quando ela disse que perdeu pra você no xadrez, essa foi a única explicação plausível.
Miguel desviou o olhar, incapaz de negar.
— Bom… pelo menos pode funcionar a longo prazo, se a ideia era marcar presença na memória dela — suspirou, balançando a cabeça ao ver o plano dele com nitidez. — Me diz, Mi… desde que acordou nessa era, teve algum momento em que realmente descansou?
As mãos dele tremeram.
Nada vinha à mente.
Nada.
— Desde que acordou teve que lidar com o luto... nossos antigos companheiros... Teresa… — Céline falava baixo, mas cada palavra atingia o âmago de Miguel. — Depois descobriu que sua mãe é a pessoa mais procurada do mundo. Que você não pode ser descoberto. Precisa estar sempre planejando passos à frente. Ganhou uma nova família. Namoradas. Companheiros que confiam em você. Mas está fraco em comparação ao que era cem anos atrás e por isso... tem se matado de treinar todo dia… a Vic contou pra gente.
Uma lágrima caiu e pousou na testa dele. O peito apertou num espasmo doloroso.
— Você e a Mia quase morreram. Seus amigos também. E lá no fundo… você se culpa por isso, não se culpa? — A voz dela falhou. — E ainda existe essa pessoa que sabe sobre você, que está brincando com você… e você não faz ideia de quem seja ou do que ele quer, o colando o tempo todo sob alerta. Mi… desse jeito nem você vai aguentar. Você é forte, mas não é de ferro. Sua mente é madura, sim, mas você ainda é um adolescente. E o Primordium… te faz suportar quando não deveria.
Ela encostou a testa na dele, soluçando baixinho. Miguel fechou os olhos, sem força para responder. Tudo ali era verdade.
Depois de alguns segundos, Céline fungou, limpou o rosto com a mão e voltou a sorrir — um sorriso doce, decidido.
— Hoje você vai dormir com a mamãe Line. Nada de ficar acordado até tarde brincando com suas namoradas.
Miguel corou imediatamente, desviando o olhar. Assentiu.
— Agora vai tomar banho — ela disse, dando um tapinha leve no ombro dele. — Vou preparar um chá delicioso pra você.
— Obrigado, Line.
♦♦♦
Miguel já estava deitado, de frente para Céline, o rosto encaixado no centro dos seios dela, envolto pelo calor e pelo cheiro suave da pele dela. A noite tinha caído há pouco; o quarto estava silencioso, iluminado apenas por uma luz baixa que deixava tudo confortável demais.
Depois do banho, ele tinha se trocado sem pressa, pondo o pijama que ela havia deixado pra ele. Tomou o chá que Céline preparou e simplesmente desistiu da ideia de jantar. Não havia fome. Só cansaço. Só queria deitar e fechar os olhos.
Céline afagava seus cabelos devagar, com aquele cuidado que parecia tirar peso dos ombros dele a cada toque.
— Na verdade… se aproximar da Lucy pode te trazer um benefício enorme — disse ela com naturalidade. — A Família Leite não é só agricultura há muito tempo. Trinta anos atrás fundaram uma megacorporação militar e de segurança privada. A FEMI. O poder bélico deles é comparável ao do próprio exército. Ter alguém de dentro tão importante é extremamente vantajoso.
Miguel soltou uma risadinha amarga.
— Heh… acho que o plano afundou. A memória que deixei nela não é das melhores.
Céline abriu um sorriso lento… e começou a rir de verdade, sem pudor nenhum.
— Ahahaha! Por favor! Você caiu com o pintão na cara da menina! — ria tanto que a cama sacudia. — A princesinha da Casa Leite! A joia mais protegida da família! Provavelmente nunca viu um pau de verdade na vida! Era óbvio que ela ia surtar. Ela até ativou o Kaihōtai sem perceber quando te socou! Ahahah!
Miguel sentiu o rosto queimar. Vermelho de verdade. Não era vergonha do acontecido — era da Céline zombando dele com tanta crueldade carinhosa.
— Ah! Mi ficou todo vermelho! A Éloise vai morrer de inveja quando eu contar que consegui te deixar assim!
Ele beliscou a cintura dela de leve. Ela soltou um gemido curto e deu um cascudo na testa dele em resposta.
— Hahaha... Mas relaxa, Mi. Pode acontecer o contrário. Vai que ela fica caidinha por você.
— Até parece — Miguel bufou, tentando esconder o calor no rosto. — Aquilo nem chega perto de misattribution of arousal. E duvido muito que gere dissonância afetiva. Ou que ela tenha curiosidade reprimida. Na real… acho muito mais provável ela me odiar.
— Nah. Não esquenta. A mana já tá cuidando de manipular e influenciar ela.
Miguel quase teve um mini AVC ali mesmo.
É claro. Eu tinha esquecido como essas duas pegam pesado quando é por minha causa.
— Eu nã—
— Relaxa — Céline cortou antes que ele terminasse. — Não vamos forçar nada. Só… dar uns empurrõezinhos.
Isso não ajudou em absolutamente nada.
Céline suspirou, e a mudança de assunto veio como um peso descendo lentamente.
— Mi… se não acharmos a Sara… você sabe que vai ter que escalar tudo sozinho. Sem opção. Quanto mais tempo passar, mais perto fica o dia em que alguém vai descobrir quem você é. Se os Mendes te encontrarem…
A voz dela travou.
— Por isso você precisa de apoio. Qualquer apoio. Sozinho você vai ser esmagado. Lucy é apenas uma possibilidade, claro… mas mesmo se tratarmos isso como pura estratégia agora, sei que você acabaria gostando dela, e ela de você. Casamentos políticos já construíram nações inteiras assim… interesse primeiro, afeto depois. A história faz isso funcionar desde sempre.
Miguel ficou calado. As palavras eram duras. Frias. Extremamente utilitaristas. Mas… não havia mentira ali.
Ele não era sua mãe. Não tinha aliados influentes. Não tinha poder militar, não tinha uma família que pudesse protegê-lo. O que tinha agora… eram amigos, namoradas, vínculos frágeis como papel diante de gente realmente poderosa.
E se o encontrassem antes que ele estivesse pronto… a morte seria misericórdia.
Céline respirou fundo, o tom suavizando.
— Me desculpe… era pra eu estar te ajudando a relaxar. Acabei estragando o clima.
— Não diga isso, Line — murmurou Miguel. — Você só me lembrou de algo que eu não posso esquecer. Eu tenho que proteger minha vida… e tudo ao meu redor. A qualquer custo. Essa é a realidade.
Céline o apertou contra os seios, envolvendo-o por inteiro.
— Então, por hoje, apenas durma — sussurrou. — Pelo menos agora… você está seguro. Recarregue suas forças enquanto ainda dá, meu bebê.
Miguel fechou os olhos.
A respiração dela no topo da sua cabeça.
O calor.
O corpo finalmente afrouxando.
O sono o tomou quase instantaneamente — pesado, inevitável.
Ele estava mesmo no limite.
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