Volume 2
Capítulo 42: Tanta saudade
O corpo de Samira era magro — não muito diferente do de Victoria, apenas um pouco mais alto e longilíneo. Quando Miguel a abraçava, ela cabia inteira no espaço dos braços dele, como se fosse feita para aquele encaixe. A pele parda, sempre bem cuidada, escondia sob as tatuagens delicadas uma paisagem de cicatrizes ásperas que ele sentia com as pontas dos dedos.
E nunca havia recuo. Nunca havia nojo. Aquelas marcas doíam, mas doíam como lembranças que também a formavam. Negar essa parte dela seria, para ele, negar uma fração de quem amava.
Samira, no entanto, raramente enxergava por esse ângulo — carregava vergonha, incômodo, tentava se encolher. Miguel confiava que, um dia, ela aceitaria aquilo não por resignação, mas porque entenderia que ali também existia o que a constituía, e por isso, havia espaço pra amor.
O quarto ao redor respirava junto com eles. A luz esbranquiçada da manhã atravessava as cortinas pesadas de tecido creme, filtrada por rendas que projetavam sombras suaves nas paredes decoradas com molduras simples e elegantes. O ar tinha aquele frescor limpo de início de dia, com um toque leve de poeira antiga que vinha dos móveis de madeira escura.
O calor dos dois se misturava no centro daquela vastidão silenciosa. As costas de Samira coladas ao peito dele, o abraço fechado, quase em posição de lótus. Ela montada sobre ele, os corpos alinhados como se fossem uma única massa pulsante. O beijo era intenso, profundo.
Quando se separaram para respirar, Miguel deslizou a boca pela nuca dela, afastando os fios rubros com cuidado. Samira soltou um gemido baixo, os dedos entrelaçando-se aos dele enquanto a mão dele apertava seus seios; a outra mão dela desceu para agarrar sua coxa, firme, quente.
Victoria já tinha deixado o quarto fazia tempo.
E, por um momento, o pensamento de Miguel vacilou entre o desejo que ainda queimava no corpo e aquele impulso egoísta — natural, talvez inevitável — de querer as duas ali. Mas nunca forçaria nada. Admirava o cuidado de Victoria, o modo como queria compartilhar a primeira vez com ele e com Mia. Queria honrar isso.
Apesar de ambos quase já terem passado do limite tantas vezes.
A cama enorme — quatro vezes maior que a de sua casa — estava completamente bagunçada. O edredom amassado, os travesseiros espalhados, tudo testemunhava a história daquela manhã.
— Miguel… hum… — Samira levantou o rosto. A pele ardia, o olhar brilhava, mas havia peso nos olhos lilases.
— Por que parece preocupada? — ele perguntou, acariciando a bochecha dela.
— É que… a Mia… — murmurou. O olhar fugia do dele.
Miguel entendeu na hora. Sorriu, balançando a cabeça com suavidade.
— Não estamos fazendo nada de errado — disse, ajeitando uma mecha solta atrás da orelha dela. — Mia não está morta. E eu a conheço bem demais pra acreditar que ela ficaria feliz em ver você se torturando assim. Ela ficaria triste se a gente desperdiçasse um momento vivo por culpa.
Ele falava com uma certeza tranquila, absoluta.
— Nosso momento não diminui o amor que sentimos por ela. Os dois podem coexistir sem conflito. Mia te ama tanto quanto me ama.
O brilho de culpa nos olhos de Samira enfraqueceu. Ela assentiu com um sorriso pequeno.
— E, sinceramente… quer apostar o quanto ela vai ficar feliz por você quando acordar?
Samira soltou um “hm” sorridente, finalmente deixando o rosto relaxar.
Eles voltaram a se beijar devagar, e Miguel deslizou a mão direita pelo corpo dela, acompanhando cada curva, cada linha de pele quente, enquanto a esquerda continuava firme no peito dela. Samira tremeu ao sentir os dedos dele chegarem lá embaixo.
Logo Miguel a ergueu um pouco no colo — ainda naquela posição —, guiando-a de volta para ele, unindo-se a ela mais uma vez naquela manhã iluminada.
♦♦♦
— Sara sempre dizia que você teria as melhores mulheres. Ela ficaria orgulhosa ao saber que não estava nem um pouco errada — disse Céline, os olhos perdidos, quase enamorados, simplesmente encantada por ver Samira e Victoria brincando na piscina.
Miguel riu sem graça, mas assentiu. O olhar carregava orgulho e algo mais silencioso, afeto.
— Olhar pra Vic é como encarar um diamante que se lapidou sozinho. Em talento bruto, talvez supere até aqueles herdeiros mimados — comentou Éloise, sem a menor intenção de medir as palavras.
Ela pegou uma fatia de torta, partiu o primeiro pedaço com o garfo e provou, satisfeita.
— Mas a Samira também tem um brilho próprio… como uma jadeíta. Rara, valiosa — e forjada justamente pelas mesmas condições extremas que deveriam tê-la destruído — completou, com um sorriso amável.
Era natural que pessoas tão sensíveis à arte enxergassem além do superficial — especialmente elas, cujo ofício era projetar corpos artificiais tão complexos quanto um ser humano real — mesmo tendo passado tão pouco tempo ao lado delas.
Miguel possuía isso por outro caminho: uma capacidade analítica afiada, sustentada por uma percepção psicológica que beirava o instintivo. Já Éloise e Céline carregavam o mesmo dom por experiência de vida, mas também por algo mais profundo — uma sensibilidade artística bruta, quase selvagem, que lhes permitia sentir nuances que passariam despercebidas para qualquer outro.
— Teresa também... aquele sorriso… quando a vi pensei que, num raro instante de generosidade, o próprio cosmos tivesse derramado sobre ela uma parcela de sua eternidade.
Ao ouvir Céline, Miguel enrijeceu. A dor veio rápida, cortante, como se algo tivesse apertado seu coração por dentro até quase triturá-lo. O ar saiu dos pulmões antes mesmo que ele percebesse.
— … Mi… sinto muito — murmurou Céline, que sempre percebia os outros antes de si mesma. Ela o puxou para um abraço, o rosto marcado por culpa e tristeza.
Miguel respirou fundo.
— … tudo bem. Eu estou bem.
Céline hesitou, como se tivesse mais a dizer, mas a palavra morreu na garganta.
— …
— … quando acordei, pensei que além da minha mãe e do velhote, eu não veria mais ninguém que eu conhecia… — Miguel desviou o olhar, mas a voz saiu firme. Ele puxou as duas para um abraço, envolvendo-as com cuidado. — Quando Nina falou de vocês… eu nem acreditei. Mas eu deveria ter imaginado que ainda estariam vivas.
— Ah! Meu bebê… — Céline se aninhou nele, beijando sua bochecha com carinho quente. — É claro que estaríamos vivas. Somos importantes demais para a humanidade.
A falta total de humildade a fez rir, e Miguel riu junto. Talvez ela tivesse direito a tamanha arrogância.
Éloise, que já se inclinava sobre ele, o beijou também, empurrando o peito dele até fazê-lo deitar sobre o lençol estendido na grama. Com o rosto pairando sobre o dele, murmurou:
— Quando Nina nos contatou e falou sobre você e Mia, achamos que era mentira. Cem anos, Mi… cem anos sem um sinal seu, da Sara ou da Mia. Como poderíamos acreditar? Mas como poderíamos não ter esperança? Se pudéssemos, teríamos ido pessoalmente te buscar…
As lágrimas dela caíram no rosto de Miguel. Éloise afundou o rosto em seu peito, soluçando baixinho.
— Sentimos tanta saudade… tanta sau… dade… do nosso bebê...
Debaixo da mangueira cujas folhas pálidas mexiam preguiçosamente ao vento, os três ficaram deitados, Miguel servindo de travesseiro para as duas.
— Vocês não mudaram quase nada — ele comentou, tentando aliviar o peso do momento. — Só seu cabelo que tá maior, Line.
— E você ficou mais alto — Éloise respirou fundo, enxugando os olhos. — Seu rosto não mudou tanto, mas acho que por causa de suas experiências… parece mais imponente. Mas sempre teve essa cara séria e confiável.
— Hehehe… — Céline riu, morta de preguiça ali colada nele. — A gente pode não ter a garra sua e da sua mãe, mas nos cuidamos muito bem esses anos todos. E do jeito que você tá fraquinho… qualquer uma de nós te dá uma surra agora.
Miguel não tinha argumento contra aquilo.
— Da última vez que nos vimos, Sara já tinha dado a cada uma de nós um exemplar do Primordium — disse Éloise. — Mas não tínhamos assimilado cem por cento ainda, então você não percebeu. Depois da Guerra, nossos atuais patronos cuidaram da gente, claro que por puro interesse. Esconder que tínhamos o Primordium deu muito trabalho… levantaria suspeitas de onde arrumamos. Então, acabamos recebendo mais duas amostras, éramos importantes demais para eles, julgaram ser um investimento bem aplicado.
Céline murmurou:
— Pena que já demos essas amostras a amigos próximos, muitos anos atrás. Senão, claro que daríamos a você e aos seus amigos.
— Não se preocupem com isso — Miguel respondeu calmamente. — Depois que encontrarmos minha mãe, conseguir Primordium para todos vai ser banal.
— O problema é encontrar ela — Céline se sentou, espreguiçando-se antes de acenar para Vic, que jogava vôlei na piscina com Samira. — Na medida do possível, gastamos rios de dinheiro nesses cem anos procurando vocês. Não encontramos absolutamente nada.
— Nem nossos conhecidos daquela época sabiam onde ela estava — Éloise completou, ainda deitada sobre o peito dele. — E aquele velho bastardo… sumiu dizendo que não sabia de nada. Mas eu senti. Ele sabia, sim. Talvez aquele tarado de merda seja a única pessoa no mundo que saiba onde Sara está.
Miguel franziu o cenho.
— Vocês não sabem onde o velhote está?
— Não. — Éloise pegou uma fatia de melancia das várias dispostas numa bandeja e puxou Miguel consigo, forçando Céline a fazer um bico infantil. — Diferente da gente, ele nunca aceitaria ser um peão. E a Corporação Okitan queria o forçar a ser exatamente isso. Sem sua mãe, cada um de nós ficou à deriva.
— Ei! Quando você fala assim parece até que nós somos peões! — reclamou Céline.
— E não é o que somos? — Éloise rebateu sem rodeios. — Esse castelo lindo não passa de uma gaiola dourada. Não podemos namorar ou casar com quem quisermos, muito menos ter filhos fora das doze famílias principais. Só deixam a gente trabalhar em paz porque lucram aos montes. Somos insubstituíveis, mas também acorrentadas.
As duas bufaram juntas, o descontentamento evidente. Miguel percebeu que aquela discussão não era novidade.
— Eu… não imaginava que a situação era tão complicada. Bem que eu estranhei a falta de amantes. Toda vez que a gente se encontrava, vocês tinham um harém próprio.
— Ahhh… — Céline suspirou fundo, apoiando a testa no ombro dele. — Como pôde ver, fomos praticamente domesticadas e castradas. Nosso único conforto são nossas criações. Mas elas ainda não chegaram no nível da Mia e da Nina… falta alma nelas. No fim do dia, até sendo prazeroso… dá saudade de calor genuíno.
— Algumas décadas atrás estávamos tão carentes que acabamos transando até com funcionários — Éloise comentou, sem vergonha nenhuma. — O problema é que isso destruiu completamente o ecossistema da casa. Tivemos que demitir quase todo mundo… — ela deu de ombros, mas seu sorriso tremeu. E então, numa guinada inesperada de humor, acrescentou: — Mi… pra conseguir te trazer pra cá sem levantar suspeita… a gente teve que…
Ela começou a tremer, mão tapando a boca, quase explodindo.
— … — Miguel arqueou a sobrancelha ao ver Céline igualmente vermelha, ombros tremendo. Uma premonição esquisita subiu pela espinha. — Hm?
— Pfff—! HAHAHA! — Éloise desabou na gargalhada ao tentar encará-lo, e Céline a acompanhou, rindo com a cara inteira corada.
Miguel só as observou, já sentindo que ia ficar atordoado com o que viria.
— Nós… ahaha… dissemos que você era um garoto de programa — Céline confessou, lutando para respirar.
— …
Miguel ficou mudo. Apenas suspirou, resignado, e acabou rindo também. Pegou outra fatia de melancia — sua fruta favorita — e voltou a comer. Logo também tremeu, soltando uma risada mais fraca que a delas, mas tão sincera quanto.
— Aí… minha barriga… hahaha… você é um gênio, mana! — Céline se levantou, o suspensório caído do ombro.
— Claro que eu sou! — Éloise estufou o peito, orgulhosa. — Então, Mi… se começarem a te ligar pedindo um programa… não estranha.
— Na verdade… isso pode ser útil — Miguel comentou, já considerando possibilidades estratégicas. Não de vender o corpo, mas de acessar pessoas importantes por vias inesperadas.
— Eu amo e odeio esse lado seu e da sua mãe — Céline fez bico, pegando um pão de queijo.
— Pois é, Mi — Éloise beliscou a bochecha dele. — A gente queria te deixar envergonhado… mas esse seu lado pragmático às vezes apaga seu lado fofo.
— Desculpem — ele respondeu simplesmente. Aquilo fazia parte dele, tão natural quanto respirar.
— Eu tenho tantas perguntas... e quanto mais conversamos, mais nascem — murmurou, massageando a própria nuca num gesto distraído.
— Bom, você disse que ia ficar aqui o final de semana inteiro, então temos muito tempo — Céline aproximou-se e afagou o rosto dele com uma ternura que atravessou seu peito como um raio quente. — Já tô começando a sentir saudade só de imaginar você indo embora...
Do outro lado, Éloise se encaixou no braço dele, colando-se de um jeito quase ansioso, entrelaçando os dedos nos dele enquanto apoiava o rosto no ombro de Miguel.
— Assim como a Mia, você também é nosso bebê.
Miguel sorriu — aquele sorriso lento, quase rendido. A felicidade vinha tão forte que precisou piscar várias vezes para conter o choro.
— Line, Lise... — a voz tremia levemente. — Sobre a Mia e a Nina… por que elas são idênticas apesar de terem personalidades diferentes? Ambas foram criadas em momentos totalmente distintos, por pessoas diferentes. Não faz sentido que sejam iguais… isso beira o estatisticamente impossível.
Ele ergueu o olhar, tentando decifrá-las.
— E, comparando com tudo que vi desde que acordei, assim como o que já ouvi de vocês… nenhuma IA chega sequer perto delas. Nenhuma. E quando vocês falaram aquilo sobre alma… o que quiseram dizer?
O efeito foi imediato: as duas congelaram. O calor que o envolvia desapareceu. Da postura ao silêncio, tudo nelas endureceu — e aquilo fez um arrepio subir pelo corpo de Miguel, um desconforto denso, pesado.
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