Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 41: As diferentes facetas do amor

O piso de mogno estava tão bem encerado que devolvia a luz pálida da manhã em brilhos longos, frios, refletidos das janelas abertas. O corredor inteiro parecia guardar o hálito gelado da madrugada, apesar de Vic caminhar aquecida em seu pijama curto de cetim preto, as coxas avermelhadas e a barriga exposta que ela coçava sem pressa — nenhum sinal de frio nela.

Era culpa dos aquecedores da mansão, instalados por toda parte. As cortinas enormes e elegantes mal se moviam, denunciando a ausência de vento. Duas janelas tinham sido deixadas abertas, cortinas amarradas para a passagem direta da luz.

Vic vagava em busca do banheiro antes do café da manhã. Estava perdida, mas não desesperada; o lugar era grande demais, antigo demais, charmoso demais para tornar a perda de direção num problema. Andar por aquele corredor que parecia ter sido arrancado de dois séculos atrás era, por si só, divertido.

Entre cada janela repousava um vaso de peônias brancas e rosadas sobre móveis de madeira ricamente esculpidos. Na parede oposta, pinturas a óleo, aquarela e acrílica se alinhavam como uma galeria privada, quebrando a frieza da manhã com cor e textura.

Samira vai pirar quando vir isso, pensou, sorrindo.

Logo achou graça no fato de algumas pinturas serem claramente eróticas — sem pudor, mas sem vulgaridade. A sensualidade não vinha de poses explícitas, e sim do clima, da intenção, das linhas que sugeriam mais do que mostravam.

E então Vic travou por um instante.

Algumas das figuras retratadas eram as próprias irmãs Beaulieu. Poses sensuais, corpos impecáveis, beleza exibida com naturalidade. Nada de vergonha, nada de excesso. Apenas confiança.

— Meu Deus… — riu sozinha. — Que mulheres interessantes.

E riu ainda mais ao reconhecer Angela em um dos últimos quadros: deitada de costas, expressão constrangida, olhos úmidos. A ideia de que talvez tivessem obrigado a garota a posar daquele jeito arrancou outra risada dela.

O corredor continuava com cômodas e criados-mudos ornamentados no estilo vitoriano. Fotografia antigas, pequenas esculturas, caixas decoradas. As gavetas fechadas guardavam cigarros, papéis, tinteiros, potes de tinta — objetos mundanos, mas nada com excesso de tecnologia.

Era curioso perceber o quanto a casa evitava exibir seus brinquedos modernos. Havia drones, robôs, leds e sensores, sim, mas todos tão discretos que se perdiam no conjunto. O clássico e o moderno conviviam ali com elegância rara.

— Elas são mesmo bem excêntricas… — Vic murmurou, sorrindo. A expressão logo mudou para uma careta: ela realmente precisava achar o banheiro.

Apressou o passo. Quatro portas só naquele corredor. Não queria sair abrindo tudo, mas uma intuição insistia que a última era a certa.

Ganhou confiança demais.

Quando girou a maçaneta, a certeza desabou: nada ali lembrava um banheiro.

Era um atelier.

E enorme — amplo quase como o hall de entrada. Cavaletes espalhados sem ordem, telas brancas, outras inacabadas, outras já vivas. No canto, um armário imenso, cheio de latas de tinta, potes, bisnagas, pincéis, espátulas. Tudo marcado por respingos e manchas secas. O chão carregava rastros de acidentes: tinta derramada formando poças secas, manchas multicoloridas.

Do outro lado, esculturas incompletas, algumas partidas, outras apenas esboços.

Mas nada disso chamou mais atenção do que o centro da sala.

Sobre uma mesa metálica, um corpo masculino completamente nu descansava. Alto, musculoso, peludo, quase selvagem. Imóvel. Podia estar dormindo — ou não ter “vida” ainda.

Éloise e Céline trabalhavam nele como se o tempo houvesse parado. Éloise segurava uma pinça cirúrgica em uma mão e uma pequena ferramenta de solda na outra, soldando com precisão a cavidade aberta na costela. Céline, do outro lado, programava algo em um tablet conectado por um cabo à nuca do homem.

Victoria prendeu a respiração. Não queria interrompê-las. Mas a bexiga latejava. Ao tentar segurar, juntou as coxas num reflexo e acabou se apoiando numa das esculturas finalizadas ao lado da porta.

O busto tombou.

Vic assistiu, horrorizada, à peça deslizando, girando, caindo em silêncio lento até se estilhaçar em dezenas de fragmentos no chão.

O estrondo ecoou — mas as irmãs não reagiram. Continuavam concentradas, alheias ao desastre.

Atônita, Vic não esperou para ver se notariam. Virou nos calcanhares e correu para achar o banheiro de verdade antes que acontecesse algo pior.

Na privada, Victoria soltou um suspiro que pareceu sair da alma.
Finalmente aliviada, deixou escapar um sorriso bobo — e foi aí que lembrou das duas. A curiosidade cutucou mais forte que a compostura. Precisava saber o que estavam fazendo.

Voltou para o ateliê.

— Oh, Vic, bom dia! — Céline a saudou assim que a viu, voz leve, quase musical.

Victoria percebeu na hora que o trabalho delas devia estar concluído: Céline já não tinha o foco clínico de antes, mexia no tablet com ar satisfeito; e Éloise, cantarolando, terminava de coar o café que inundava o ambiente com um aroma rico o bastante para provocar um ronco na barriga de Vic.

— Bom dia, Vic! — Éloise acenou animada.

— Bom dia — Victoria se aproximou, desviando dos cacos do busto derrubado, fingindo inocência, mãos atrás das costas, tentando parecer casual. — O que estão fazendo? Esse homem… é um androide?

— Isso mesmo! — Céline ergueu o rosto, os olhos brilhando de expectativa. — O que acha?

Vic não hesitou. Encostou-se à mesa e analisou o androide de cima a baixo, a concentração séria contrastando com o leve rubor que ameaçava surgir.

A barba falhada, imperfeita na medida exata. Os traços fortes.

O corpo massivo, musculoso, não totalmente simétrico — e justamente por isso tão convincente.

Os pelos no peito, a textura da pele, cada detalhe parecia removido de um corpo humano real.

Até a parte que, no momento, estava… “ativada”.

Vic engoliu seco.

— Pode tocar — Éloise provocou, com a inocência mal disfarçada de quem sabe exatamente o que está fazendo.

Victoria não era tímida quando a curiosidade vencia a falta de experiência.

Tocou primeiro o peitoral.

A pele era surpreendente: macia por fora, firme por baixo, quente. Os pelos tinham um toque levemente áspero, com aquela oleosidade que lembrava suor.

— Puta merda… isso é mesmo artificial?

— Hehehe! — Céline gargalhou da expressão da garota. — A gente não é foda? No mundo inteiro, ninguém faz um corpo assim além de nós.

— Isso é foda pra caralho! — Vic passou a mão pelo abdômen definido, deslizando até a linha da virilha. Hesitou só um segundo antes de tocar o sexo ereto.

— E aí? — Éloise se aproximou e entregou uma xícara de café para a irmã.

— É tão real… até o calor e a pulsação. — Vic comentou, a voz baixa.

— Hahaha! — Céline tomou um gole da própria xícara, orgulhosa. — Acha que a cliente vai ficar satisfeita?

Vic só deu de ombros, largando o membro. Sabia que a pergunta era retorica, essas irmãs eram bem convencidas, mas tinham direito pra isso.

— Claro que vai. Isso tá incrível. Deve ter custado uma fortuna.

— Nem tanto. Só algumas dezenas de milhões de reais.

Uma veia pulsou na testa de Vic. Nem tanto?!

Assim que Éloise lhe ofereceu uma xícara, o pênis do androide amoleceu de imediato — parecia claramente um comando de Céline.

Logo depois, a mesa se retraiu com um ruído mecânico suave, transformando-se em uma cápsula que engoliu o corpo artificial.

Céline tomou um gole do café antes de perguntar:

— Onde estão Miguel e a Sam?

— Estão transando — respondeu Vic, como quem comenta sobre o clima.

As irmãs não pareceram chocadas; apenas levantaram uma sobrancelha cada. Foi Éloise quem deu voz à dúvida das duas:

— E por que você não tá lá?

— Estou guardando minha virgindade.

— Oh! Que romântica! — Céline vibrou e imediatamente chamou um dos robôs assistentes. O pequenino trouxe um banquinho para Vic se sentar, como se aquilo fosse uma entrevista íntima. — Vai ser tipo… depois do casamento? Ou… não vai ser com o Miguel?

— Não, não sou religiosa — Vic riu de leve. — Essa coisa de esperar o casamento é bobagem.

E era bizarro, mas com elas… Vic se sentia livre.

Com qualquer outra pessoa teria sido condenada por tocar outro homem que não o próprio namorado — mesmo sendo um androide feito para uso sexual. Mesmo que não tenha sido nada além de curiosidade, claro, o desejo nasceu levemente, mas era impossível uma mulher heterossexual não se sentir minimamente atraída naquela circunstância.

Mas ali não havia olhares de reprovação. Não havia moralismo. Só curiosidade sincera.
Aquilo era deliciosamente libertador.

— É que… — Vic corou, desviando o olhar. Era a primeira vez contando aquilo pra alguém. — Eu quero que minha primeira vez seja com ambos.

— Ambos? — as irmãs perguntaram juntas.

Vic bebeu mais um gole do café, deixando o amargor doce preencher a boca. Depois pousou as mãos sobre o peito, quase num gesto devoto.

— Sim… Miguel e Mia. Eu amo os dois de um jeito que nem consigo descrever. Quero transar com os dois ao mesmo tempo. Quero que seja um momento de união nossa, dos três juntos, em única coisa indescritível.

— Ahhh!!! — Céline tremeu, soltando um gemido involuntário de empolgação. Os olhos brilhavam demais.

Éloise não ficava atrás — encarava Vic com seus enormes olhos dourados.

— Quando foi que você se apaixonou assim?! Você tem que contar!

— Não é nada profundo — Vic riu, ajeitando uma mecha atrás da orelha. — Eu criei um ideal de parceiro pra mim. Alguém exatamente como eu pensava que merecia — arrogante, eu sei, mas era isso. E esse ideal… eu sabia que nunca encontraria. Mesmo assim, me guardei pra ele.

As irmãs trocaram um olhar, ruborizadas, parecendo duas adolescentes diante de um capítulo proibido de romance.

— E o Miguel e a Mia ocupam esse lugar? — Éloise sussurrou.

— Não só isso… — Vic suspirou, o sorriso tão lindo quanto entregue. — Cada um deles, do próprio jeito, é tudo o que eu sonhava. Mas juntos… ah…

Ela girou na cadeira, esquecendo completamente o ateliê, imersa nas memórias dos dois.

— Os dois juntos extrapolam qualquer fantasia que eu pudesse conceber. É sublime. Foi aí que eu entendi: não bastava só o Miguel, nem só a Mia — mesmo que cada um pudesse ser meu ideal. Ao encontrá-los… nasceu essa necessidade louca de ter os dois. Quero ser devastada por Miguel e quero devorar Mia. Quero ser consumida e integrada a eles...

— AHH!!! — As irmãs explodiram de emoção e agarraram Victoria pelos braços.

— Eu sabia! Você é incrível, Vic!

— Meu amor, faremos de tudo pra trazer a Mia o mais rápido possível! Assim que reunirmos os materiais, focaremos totalmente nisso!

Victoria acabou rindo alto no meio das duas.

Definitivamente, não eram normais.

Mas eram incrivelmente amáveis — e, de certo modo, perfeitas para aquele momento.

A mesa era grande demais para três pessoas, entulhada de frutas brilhantes, pães quentes e porcelanas antigas que refletiam a luz amena da manhã. As empregadas circulavam em silêncio.

Victoria comia sem reservas, se deliciando principalmente com as roscas cobertas de creme.

Céline foi a primeira a romper o silêncio. Não parecia ter planejado falar; simplesmente deixou escapar.

— Quase todos pensam que somos só duas pervertidas talentosas criando brinquedos eróticos — murmurou, mexendo o café com movimentos curtos, tensos. — Como se tudo que fizéssemos fosse voltado a garantir os melhores orgasmos.

Éloise soltou um bufar irritado, apoiando o cotovelo na mesa com um descuido que destoava da elegância ao redor.

— Dizem isso o tempo todo. “As irmãs dos vibradores perfeitos.” “As madames dos androides irresistíveis.” — Ela olhou para o teto, exasperada. — Nunca tentam ver além da superfície.

Victoria encolheu um pouco os ombros. Seu rosto ficou quente — um calor que ela tentou disfarçar mordendo a própria língua, olhando de esguelha para uma das empregadas que pousava uma travessa de mini sonhos na mesa.

Elas não estavam falando dela, mas era impossível não sentir o incômodo se espalhar. Até poucos minutos antes, ela mesma pensava exatamente isso. Que a Symphonie era tão somente: a melhor empresa de produtos eróticos do mundo.

Mas aquele androide — aquele corpo que vira minutos antes, ainda em fase de finalização — tinha atravessado algo dentro dela. Era mais do que beleza, mais do que erotismo. Algo que ela não sabia nomear ainda pulsava em seu peito.

Céline percebeu. Pelo jeito suave como virou o rosto, pelo gesto leve que fez com a colher antes de pousá-la ao lado da xícara, Victoria soube que ela tinha percebido.

A artista sorriu — não com ironia, mas com aquela compaixão silenciosa que desarmava qualquer defesa.

— Mas a Symphonie nunca foi sobre vender prazer — disse Céline, a voz baixa, íntima. — Nunca criamos um androide pensando apenas em quem vai gozar transando com ele. Não trabalhamos para entregar algo tão superficial. Nós acreditamos no amor.

Éloise pegou uma torrada e passou manteiga.

— O que queremos entregar é algo muito mais profundo. É a afirmação do maior ato de amor que alguém pode sentir por si mesmo. Um amor sem regras, sem moral alheia, sem julgamento. — Ela mordeu a torrada, falou com a boca semiaberta, nada elegante, mas cheia de franqueza. — Quando criamos um corpo como aquele, colocamos nossa alma ali. A intenção não é só excitar — é despertar.

Victoria assentiu devagar.

Agora entendia.

Ou começava a entender.

Céline se recostou, os olhos fixos nela, suaves mas intensos.

— Queremos que a pessoa… se encontre. Sexo é muito mais que gozar metendo ou sendo penetrado. É sensação, intimidade, vida, descoberta, amor...

Éloise riu de leve, um som curto, quase orgulhoso.

— Heh… é por isso que somos imbatíveis. Mesmo que a maioria não entenda, eles ainda sentem. Por isso criamos androides como aquele que viu, quase toda semana — porque há pessoas que só conseguem se conectar consigo mesmas através disso.

— Além disso, todos possuem personalidade. Não criamos bonecos sem vida, mas algo que interage diretamente com o mais íntimo de seu dono.

A cozinha ficou silenciosa por um segundo.

Victoria respirou fundo, como se finalmente enxergasse algo que antes estava escondido. Uma epifania a atravessou.

— A Symphonie não produz brinquedos eróticos… produz espelhos…? — ela murmurou, quase sem perceber que falava em voz alta.

Mas percebeu o impacto imediatamente.

As irmãs endireitaram a postura, as mãos tremendo levemente, os olhos marejando como se alguém tivesse finalmente decifrado um segredo que guardavam no peito havia anos.

— Vic… huuhhh… — Céline levou as mãos ao rosto, rindo enquanto choramingava teatralmente. — Você é perfeita!

— Eu vou acabar roubando você de Miguel! — Éloise fungou, mas o sorriso aberto e emocionado deixava claro que não era uma piada completa.

Victoria riu, orgulhosa. Talvez tivesse acertado no centro exato do que elas tanto queriam expressar em seus trabalhos.

O clima leve foi quebrado alguns instantes depois quando passos suaves, quase etéreos, ecoaram pela cozinha. Uma figura pequena cruzou o ambiente.

Uma fada — ou algo bem próximo disso — entrou usando um pijama rosa bebê delicado. Ela sequer pediu licença antes de puxar uma cadeira e se sentar, largando o corpo com uma despreocupação irritante.

Céline e Éloise lançaram olhares a Lucy, cumprimentaram com um sincronizado: bom-dia, a qual a garota apenas assentiu. Nenhuma das irmãs pareceu descontente com a atitude, apenas rindo como se achassem fofa a postura tsundere.

Victoria manteve o rosto neutro. Mesmo quando a garota que parecia bem mais nova que ela a lançou um olhar desagradável.

Osh, nem fiz nada, que olhar é esse? Pensou Vic, mas deu de ombros.

Infelizmente odiava admitir que a garota diante dela era tão linda quanto Mia, e talvez se não fosse tão antipática, a desejaria da mesma forma que deseja sua namorada.

— Onde está aquele garoto? — Lucy perguntou a Victoria.

— Miguel? O que quer com ele? — questionou, desconfiada.

— Não é do seu interesse.

— ... — Victoria sorriu fracamente. Um sorriso belíssimo, mas carregado de frieza.

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