Volume 2
Capítulo 40: As irmãs Beaulieu
Talvez Samira e Victoria nunca tivessem sido tão paparicadas na vida. Suas expressões misturavam vergonha com um estranhamento quase cômico. E o motivo disso?
Miguel ria. Ria de verdade. Assistia às irmãs Beaulieu acariciarem, abraçarem, cheirarem, apertarem — e até passarem um pouco do limite — como se Samira e Victoria fossem pequenos tesouros recém-descobertos.
— Ahhh! Você é tão linda! E esses olhos! Aposto que você é toda malandrinha, não é? Eu adorei você! — Éloise praticamente engolia Victoria em um abraço sufocante. A loirinha, pela primeira vez, parecia incapaz de responder qualquer coisa. A boca meio aberta, os olhos arregalados… Miguel riu e gravou aquela imagem para sempre.
— Oh! Você é tão cheirosa, Samira! Sua pele… tão macia! E essas tatuagens ficaram perfeitas em você! — Céline puxou a ruiva para si por trás, abraçando forte, quase se fundindo à garota, a bochecha roçando com entusiasmo nos cabelos da pequena.
Samira, vermelha como suas próprias madeixas, olhava para Miguel com um pedido silencioso de socorro — que ele ignorou propositalmente, agora se divertindo às custas delas.
Mas nem tudo eram flores.
Miguel sentiu. Um olhar gelado o atravessou como uma agulha fina. Bastou um único movimento de canto de olho para localizar a fonte — e entender, de imediato, que aquela pessoa exalava descontentamento… e uma inveja silenciosa, venenosa.
Ela estava parada a alguns passos atrás das irmãs, imóvel como uma pintura viva.
Os cabelos longos e ondulados desciam até as panturrilhas, castanhos como amêndoas torradas. Os olhos eram duas esmeraldas intensas, brilhando sob a luz natural que atravessava os vitrais vitorianos do saguão. A pele, leitosa, impecável, parecia macia ao simples olhar. O vestido branco perolado, de corte antigo, destoava completamente do mundo moderno — e justamente por isso acentuava ainda mais sua beleza etérea. As canelas expostas, delicadamente torneadas, terminavam em sapatilhas elegantes.
Era linda. Linda ao ponto de rivalizar com Mia.
Não… “rivalizar” não descrevia bem. Elas eram equivalentes. Dois polos distintos de uma mesma perfeição impossível.
É claro que uma beleza assim não era humana.
Miguel sentiu a onda psiôntica emanando dela — suave, constante, estável. Não era intensa, mas a harmonia daquele fluxo, aquela pureza de energia… o deixou genuinamente impressionado.
Como esperado de um herdeiro de uma família importante…
Ele não sabia quem ela era.
Mas tinha certeza absoluta de que estava diante de alguém da nobreza.
— Senhoras, por favor... nossas convidadas estão, hm, claramente constrangidas com tamanha intimidade — uma das empregadas surgiu apressada.
— Isso mesmo. Elas acabaram de chegar, devem estar exaustas — completou Angela, descendo as escadarias com passos firmes. Tinha acabado de levar as bagagens para o quarto onde todos ficariam.
As irmãs, finalmente, soltaram Samira e Victoria.
As duas meninas praticamente se esconderam atrás de Miguel, como se temessem serem “molestadas” outra vez.
— Hehehe... perdoem-nos — Éloise disse, com um sorriso doce.
— Acabamos nos deixando levar pela empolgação — completou Céline, ajeitando a gola de sua camiseta de linho.
Elas caminharam com aquela elegância absurda até o trio e pararam diante de Miguel.
Nos olhos das duas havia aquela tremedeira típica de quem está lutando contra o impulso de simplesmente saltar no pescoço dele.
Miguel teve que segurar o riso, mas no fundo também queria o mesmo que elas.
— Lise, Line... — disse apenas.
As duas abriram um sorriso satisfeito — quase derretido.
Nem precisou dizer mais nada: ambas assentiram e se grudaram nele, uma de cada lado.
— Vamos ver como Mia está — disse Céline.
Sim, prioridades primeiro, depois o momento para matar a saudade.
Só que antes de darem o primeiro passo, uma voz suave — mas fria como gelo — cortou o clima.
— Éloise. Céline. Por acaso... esqueceram que eu existo?
Miguel virou o rosto devagar. A garota tremia tão discretamente que parecia vibrar por dentro, como um copo prestes a transbordar. O esforço para soar calma apenas realçava a raiva.
— ... claro que não — respondeu Éloise, ainda abraçada ao braço dele, com um sorriso manso que era a definição de “mentira descarada”.
— Não fique irritada, Lucy, é que... — começou Céline, segurando a mão esquerda de Miguel, procurando alguma desculpa crível no ar.
Lucy implodiu.
O rosto ficou vermelho, ela pisou firme no chão — provocando um leve estalou no mármore — girou nos calcanhares e saiu do hall sem dizer mais nenhuma palavra.
O silêncio que ficou não era exatamente constrangedor... mas chegava perto.
— Ei, talvez seja melhor ir atrás dela? Aquela garota me passa uma sensação meio... desconfortável — Victoria sugeriu.
— Nah! Deixe-a — Éloise rebateu imediatamente, fazendo um biquinho infantil. — Lucy é muito mimada. Aprender que não é o centro das atenções vai ser ótimo pra ela.
Victoria lançou um sorriso torto. Seus olhos encontraram os de Miguel.
Ele soube exatamente o que ela pensou:
“Elas dizendo isso enquanto te mimam descaradamente...”
Miguel só conseguiu devolver o mesmo sorriso amarelo.
Céline, indiferente, deu de ombros os longos cabelos balançando enquanto arrastava Miguel.
— Vamos logo.
♦♦♦
Nas paredes, painéis holográficos exibiam rascunhos técnicos, estudos de design corporal, esquemas de circuitos sensoriais… tudo flutuando em tons azuis suaves.
O azul refletia no brilho cristalino que escorria pelas bochechas das duas.
Olhos marejados, fixos na figura etérea adormecida no caixão metálico. O peito aberto revelava o estrago: circuitos internos rompidos, órgãos sintéticos danificados e vestígios do sangue artificial que ainda manchava a estrutura.
Os lábios comprimidos trêmulos, como se cada uma lutasse para conter a própria dor.
Céline — sempre a mais emotiva — soluçava enquanto acariciava com extremo cuidado o rosto de Mia, a mão tremendo ao seguir o contorno da bochecha inerte.
Éloise, mesmo mais controlada, também chorava: dedos entrelaçados aos de Mia, segurando aquela mão com muita delicadeza.
— Nossa bebê… — murmurou Éloise.
— Nosso maior tesouro… h-uuuhh… — completou Céline, a voz falhando.
Então Céline ergueu o rosto, encarando Miguel através das lágrimas.
— Miguel, seu bastardo! Por que não a protegeu com sua vida?!
A fala era dura, mas o olhar… não havia uma única gota de raiva. Só dor pura, quase insuportável.
Miguel sentiu o peito apertar.
— Me perdoem. — A voz saiu baixa, honesta.
— Não fale bobagens — Éloise murmurou, e tocou o braço dele com a mesma ternura que dava a Mia. — Sabe que a Line não falou sério…
Victoria deu um passo à frente, segurando o choro com dificuldade.
— Vocês… vocês conseguem trazer a Mia de volta? — perguntou, impaciente e aflita.
Samira apenas limpava os olhos inchados, cabisbaixa.
— É claro que sim — respondeu Éloise, firme.
Mas logo suspirou, e a pressão na sala privada pareceu aumentar.
— Mas… teremos que dar um novo corpo a ela. Não temos peças compatíveis para substituir o que foi danificado.
Céline pigarreou, a expressão murcha.
— E tem outro problema. Vamos ter que criar um do zero… com o que temos aqui em casa. Se pegarmos materiais nas fábricas, vão notar no inventário. E isso seria terrível pra nós.
Samira franziu o cenho.
— Por quê? Vocês não são… tipo… as donas da empresa?
Éloise riu curto, cansada, e afagou o topo da cabeça de Samira.
— Ah, se fosse tão simples, criança. Há investidores, acionistas e gente bem poderosa de olho em cada milímetro do que fazemos. Produzir um androide tipo Nina custa uma fortuna e é monitorado do começo ao fim. Se descobrissem que estamos fazendo uma, iriam questionar nossos motivos… e logo descobririam sobre a Mia e sobre o Miguel.
Victoria ao lado, empalideceu.
— Ei… isso não é extremamente problemático pra nós? Nós temos literalmente a Nina verdadeira dentro da nossa casa!
As irmãs Beaulieu se entreolharam, surpresas.
— Do que está falando? — perguntou Céline.
Victoria respirou fundo e contou tudo — desde como conheceram Nina até como ela acabou se juntando a Crimson Wolf. Não escondeu nada; eram pessoas de confiança de Miguel, e ele não a interrompeu.
Ao final, Éloise pegou o smartphone, deslizou pela tela rapidamente e franziu o cenho.
Miguel a encarou.
— O que foi?
— Essa Nina que está com vocês… não está registrada no sistema — disse, a voz ficando mais grave.
Victoria arregalou os olhos.
— O que isso quer dizer?
Miguel percebeu a palidez crescendo no rosto das irmãs.
— Quer dizer que essa Nina é realmente a Nina — explicou Céline. — A primeira. Nós a construímos pessoalmente. Cada detalhe. Quase todas as outras são feitas em cadeia automatizada. Só modelos exclusivos recebem tratamento artesanal. Além disso… ela é a única que não pode ser rastreada — sua existência foi criada para o uso de uma pessoa muito… muito especial.
Éloise mordeu a unha do polegar.
— O que ele está pensando…? — murmurou para si mesma.
Miguel estreitou os olhos.
— Quem é essa pessoa especial?
As duas balançaram a cabeça ao mesmo tempo.
— Não sabemos. Só temos certeza de que é alguém muito importante dentro da Corporação Okitan. O pedido veio diretamente de lá — explicou Éloise.
Victoria engoliu seco.
— Então… não precisamos nos preocupar com a Nina?
— Por um lado, pode-se pensar assim — disse Éloise. — Se essa pessoa já está de olho em vocês, aceitar esse gesto pode ser melhor do que recusar. O problema é que…
Os olhos dela pousaram em Miguel.
— Ele sabe sobre você.
— Sim — respondeu ele, com naturalidade sombria.
Os dois suspiraram, e o peso daquilo pairou no ar.
Victoria os olhou com desconfiança, mas decidiu não perguntar… Miguel sabia que era só por hora.
Céline respirou fundo.
— De qualquer forma, vamos trazer Mia de volta. Agora não podemos dar a ela um corpo digno da existência dela… mas daremos algo beeem melhor do que esse corpo ultrapassado e frágil.
— Mas… ela vai ter a mesma aparência, né? — Samira perguntou, aflita.
Céline sorriu, gentil, e alisou seus cabelos ruivos.
— É claro, meu amor. Só vamos deixá-la um tiquinho mais forte.
Samira relaxou, finalmente.
— Quanto tempo vai levar? — perguntou Victoria.
— Cerca de duas semanas.
— Entendo.
Éloise, limpou as lágrimas com um pano fino e retomou o tom prático.
— Bem… vamos nos organizar e começar assim que reunirmos os materiais necessários. Descansem por enquanto. E sintam-se em casa.
♦♦♦
Miguel explorava o terreno da mansão, apreciando o frio noturno enquanto o ar trazia um leve perfume de flores tratadas artificialmente.
As luzes do jardim — luminárias altas com estruturas de ferro ornamentado e núcleos de LED azulados — criavam um contraste curioso entre elegância antiga e tecnologia discreta.
Caminhando pelo caminho de paralelepípedos bem alinhados, ele cumprimentava um ou outro segurança que patrulhava o perímetro, todos vestidos com sobretudos escuros.
Chegou até a beber e conversar com alguns que estavam no meio da troca de turnos.
Álcool não fazia efeito nele, assim como muitas drogas, exceto em doses absurdas — e ainda assim se recuperaria rápido. Seu corpo filtrava toxinas com eficiência anormal por causa do Primordium.
Beber era mais sobre socializar; sua mãe sempre reforçou a importância de se misturar, de não chamar atenção desnecessária.
Nem era algo tão ruim — algumas bebidas eram realmente boas.
Infelizmente, hoje não foi o caso. Só cerveja barata. Tudo bem, a conversa compensou.
A mansão, vista de fora, parecia ainda mais estranha naquele silêncio quase elegante: paredes altas em pedra clara, janelas arqueadas com molduras metálicas brilhantes, e pequenas canaletas luminosas nos cantos, conduzindo energia como veias estilizadas.
Um híbrido improvável entre arquitetura vitoriana e um laboratório de alta classe.
Caminhando sozinho, sabia que suas namoradas estavam fofocando com as irmãs Beaulieu. Conseguia imaginar com facilidade as quatro empolgadas, rindo, gesticulando, comentando cada detalhe do relacionamento dele.
Mas o que Miguel queria agora era esvaziar a mente.
Com a garantia de que Mia voltaria, um peso saiu de seu peito. Precisava dessa pausa, dessa manutenção emocional.
Quando finalmente avistou o banco de pedra ao lado da lagoinha artificial — um pequeno espelho d’água iluminado por painéis de energia sob as pedras — se preparou para sentar e apenas… existir.
Até sentir uma presença fraca, mas desagradável.
Não se virou. Fingiu não notar.
— Ei, você!
Ele fechou os olhos por um instante.
Isso é jeito de chamar alguém?
Com um suspiro resignado, virou-se para encarar Lucy, que havia desaparecido desde a birra mais cedo. Ela estava parada perto de uma coluna ornamentada que sustentava fios finos de luz pulsante.
Usava um vestido novo — preto dessa vez — com alguns babados que balançavam a cada passo. Em qualquer outra pessoa pareceria chamativo demais, mas nela tudo simplesmente funcionava. Sua beleza inumana combinava com qualquer coisa.
— Posso ajudar?
— Só me responda! Quem é você?! Por que diabos aquelas duas são tão apegadas a você? Nunca vi elas daquele jeito, nunca! E você aparece do nada, um zé-ninguém, e elas ficam assim! Eu quero explicações!
Miguel sentiu a cabeça começar a doer.
Tenho mesmo que lidar com isso agora…?
Pensou seriamente em simplesmente ir embora.
Foi quando sentiu uma pressão esmagadora tentando o fazer ficar de joelhos...
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