Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 39: Tia é o caralho!

Um mar branco-acinzentado se estendia até onde os olhos alcançavam.

Toda grama, planta, folha e a maioria das flores compartilhavam aquela coloração pálida.

Era tão lindo quanto estranho — bonito de um jeito que não deveria existir.

— Por que a vegetação tem essa cor? — Miguel perguntou, percebendo naquele instante que não tinha visto uma árvore ou vegetação no tempo que passou na cidade. Aquilo gerou um desconforto nele.

Vic, sentada à sua frente, já estava com o olhar perdido na mesma paisagem pela janela do trem-bala. Samira, ao lado dela, parou por um instante o sketch que fazia — um retrato de Miguel — e também espiou lá fora.

— Segundo os livros de história, depois das primeiras décadas do inverno nuclear, a flora sofreu uma alteração drástica — Victoria começou. — Mais de setenta por cento da vegetação morreu. Mesmo o Hemisfério Sul não tendo sofrido diretamente com as explosões — pois a maioria ocorreu no Norte — a mudança climática foi inevitável.

Ela fez uma pausa antes de agir. Soltou as fivelas das botas brancas com calma, tirando-as dos pés enquanto um sorrisinho discreto aparecia no canto da boca. Sem dizer palavra, esticou as pernas e apoiou os pés sobre a coxa de Miguel, levantando as sobrancelhas num pedido silencioso — descarado, quase travesso.

Miguel riu baixo, vencido pela cena. Havia algo hipnotizante na garota à sua frente — agora de cabelos loiros e olhos azuis. Era a aparência natural dela; tinha comentado que queria “voltar ao seu natural”, deixando para trás o cabelo carmesim e as lentes arco-íris.

Com um olhar meio bobo, Miguel envolveu os pés dela entre as mãos. As meias estampadas com abacates arrancaram dele outro sorriso involuntário. Então começou a massageá-los devagar, o polegar deslizando com firmeza sobre a planta do pé, sentindo Vic relaxar quase imediatamente.

— Quanto à flora que sobrou… hum... — continuou Vic, soltando um gemidinho involuntário quando ele apertou o peito do pé — … passou por algum tipo de mutação em todo o ecossistema. Talvez uma adaptação ao novo clima, à luz solar reduzida. Em algum ponto, árvores, plantas e a maioria das flores acabaram adquirindo essa cor branco-acinzentada.

Samira fez um biquinho — um pedido mudo, quase infantil — ao observar as pernas de Vic acomodadas sobre Miguel. Mas voltou ao sketch e, enquanto desenhava, acrescentou:

— Depois da guerra, teve o período conhecido como “A Grande Fome”. — Ela ergueu os olhos para Miguel, tímida; ele sorriu, e suas bochechas ganharam um leve tom rosado antes de voltar a rabiscar. — Com o inverno nuclear, todo o sistema agrícola colapsou. A produção de alimento despencou, causando uma perda massiva de vida animal e humana.

— Estima-se que mais de cento e cinquenta milhões de pessoas morreram só de fome, sem contar as doenças que surgiram depois — completou, soltando um suspiro pesado.

Vic estreitou os olhos para Miguel, aninhada em seu casaco de lã branco.

— Mas o que você acha disso, Mi? — perguntou.

— Você parece cética.

— É claro! — Victoria bufou. — Até parece que o ecossistema mudaria tanto em tão poucas décadas só por causa disso. Por mais que eu quisesse acreditar num “milagre da natureza”, é muito improvável. O mais lógico é que quase tudo tivesse morrido e levasse anos — muitos anos — para se recuperar. E ainda por cima… — ela apontou para fora com o queixo — vivemos em um continente tropical. Uma mudança dessas é absurda.

Miguel assentiu devagar.

— Você tem razão. Uma mudança tão drástica, em tão pouco tempo… impossível. A menos que tenha sido feita de forma artificial.

Vic levou a mão ao queixo, inclinando o corpo para a frente, teatral, quase caricata.

— Então a pergunta é: como fizeram isso? — murmurou, estreitando os olhos como uma detetive perto da solução final.

— Se não há explicações nos livros, além daquela resposta superficial, então não querem que descubram — disse Miguel, deslizando os polegares pelos pés dela, pressionando com firmeza o arco plantar.

Vic se arqueou como se tivesse levado um pequeno choque.

— Aí! Hmmm! Hahaha! Para! — ela se contorcia, rindo e tentando puxar os pés para si, mas Miguel a segurava com a calma de quem se divertia demais para soltar.

Pensar sobre aquilo só os deixaria em círculos. Era divertido teorizar, claro, mas Miguel não estava disposto a passar a viagem inteira preso naquele tema.

Samira, antes absorta no sketchbook, finalmente desistiu da compostura. Ela deixou o caderno de lado, uma pena, pensou Miguel, o desenho estava quase finalizado. E era magnífico, claro. Sempre era, vindo dela.

Com as bochechas infladas e o cenho franzido, ela surgiu ao lado de Miguel como um gato exigindo atenção imediata.

— Que foi? — ele provocou, olhando para a ruiva fazendo beicinho.

A ruivinha não respondeu, mas não precisava. Os punhos cerrados, as sobrancelhas levemente arqueadas e o brilho impaciente nos olhos denunciavam tudo: ela queria ser mimada também.

Miguel a achava irresistível desse jeito — pequena, franja reta cobrindo metade da expressão indignada, moletom bege aberto deixando aparecer a camiseta branca por baixo.

Samira já não se vestia como quando ele a conheceu — aquela fase mais “expositiva”, tão carregada de insegurança. Não era necessário. Nunca tinha sido. E o estilo atual, mais fofo e confortável, parecia muito mais verdadeiro nela.

Sem querer provocar mais — mas também não conseguindo resistir — Miguel a puxou pela cintura. Samira cedeu com um suspiro curto, tombando contra ele. O beijo veio fácil. No início ela fingiu resistência, empurrando-o pelo ombro, mas em segundos sua língua se entrelaçou à dele, quente, ansiosa, quase ofegante.

— Ei! Ei! Ei! Sam, sua… fura-fila! — Vic protestou, já se levantando como se saltasse de uma mola.

Ela empurrou os dois para o lado sem cerimônia, ocupando o espaço ao lado de Miguel.

Tomou o rosto dele entre as mãos, inclinou a cabeça e o beijou com a mesma intensidade atrevida que sempre carregava. No movimento, jogou a coxa sobre a dele, prendendo-o com um peso confortável, íntimo, possessivo.

Miguel soltou o ar numa risada abafada entre um beijo e outro.

Aquilo era muito mais interessante do que discutir a mutação da vegetação.

E, para a sorte de todos ali — trio e passageiros inocentes — eles viajavam em uma cabine de primeira classe. Privada. Um luxo bancado pelas irmãs Beaulieu.

♦♦♦

A viagem durou cerca de quatro horas. Por ser um meio de transporte barato e popular, a estação estava tomada por um fluxo constante de pessoas, algumas chegando, outras partindo, num vai-e-vem incessante que preenchia cada canto do saguão.

Na plataforma, Miguel apresentou seu token na área de carga e descarga. O painel piscou confirmando sua identidade — forjada com a ajuda de Nina — e, pouco depois, os equipamentos do trio chegaram sobre a esteira, acomodados em compartimentos de segurança.

De acordo com a política dos trens-bala, todas as armas e equipamentos militares viajavam no último vagão, só podendo ser retirados no momento do desembarque.

Em seguida, uma unidade autônoma de transporte de cargas se aproximou, carregando sobre si um caixão metálico onde Mia estava guardada. O chassi emitia um zumbido elétrico constante enquanto estabilizadores magnéticos mantinham o tubo suspenso a poucos centímetros da base.

O grupo se dirigiu à saída da estação, onde uma mulher alta, de longos cabelos presos em um rabo de cavalo, acenava para eles.

Trajava um terno cinza elegante, mas sua figura se tornava um paradoxo estético: nos pés, não sapatos sociais como se esperaria de um executivo, e sim chinelos slide azul bebê com orelhinhas de coelho. Para completar, sua postura relaxada contrastava com a formalidade do traje, enquanto ela chupava um pirulito.

— Oh! Você é bonitão mesmo! — disse a mulher, aproximando-se de Miguel. Sem cerimônia, apertou as bochechas dele como se fosse um bichinho fofinho. Era levemente mais alta que ele.

— Olá? — Miguel resmungou, mas ela logo o soltou.

Ignorando-o, virou-se para Victoria e Samira:

— Que adoráveis! Você tem bom gosto, moleque.

— E quem é você, tia? — Vic perguntou, curiosa.

— Tia?! — A irritação na voz dela foi clara, a veia da testa saltando. — Olhe, meu amor, não me chame de tia de novo, tudo bem?

A entonação foi fria, mas também infantil. No entanto, Miguel sentiu Victoria prender a respiração por um instante. Sabia que o instinto dela a alertava do perigo dessa mulher.

Por sinal, Miguel constatava outra vez o quanto havia ficado pra trás no tempo. Esses cem anos se mostravam cada vez mais caros. Pois, a mulher diante dele...

Nem se eu estivesse em meus cem porcento e usasse tudo o que tenho eu a venceria...

Suspirou internamente enquanto dava de ombros, afinal, ela não era sua inimiga.

Além disso, tal pensamento fugaz evaporou tão rápido quanto surgiu.

Se pensasse dessa forma, estaria negando sua própria filosofia de vida. Embora hoje se considerasse relativamente fraco e carregasse perdas dolorosas, também havia conhecido suas mulheres e amigos. Por isso, era grato pelo que o destino lhe oferecia, não pelo que poderia ou não ter sido.

— Vocês são obviamente, Miguel, Victoria e Samira, e descansando ali, Mia. Meu nome é Angela, vou me responsabilizar pela estadia de vocês enquanto estiverem sob os cuidados das minhas senhoras.

Angela deu um sorriso acolhedor e os conduziu para um sedã preto. Mia foi levada num segundo automóvel.

♦♦♦

O trânsito no Rio de Janeiro era ainda pior que em Neo Alvorada. A densidade populacional daquela cidade superava em muito a do antigo Distrito Federal. Ainda assim, viajar em um veículo de luxo reduzia significativamente o estresse do engarrafamento que enfrentavam.

Samira voltou a terminar seu desenho, concentrada, enquanto Vic, empolgada, mostrava na tela do celular alguns lugares que poderiam visitar durante aquela curta viagem.

— Olha, Miguel — chamou Angela, sentada paralela a ele, pernas cruzadas e postura preguiçosa —, não sei direito quem você é, mas as patroas parecem gostar muito de você. E dá para perceber que você tem uma personalidade bem… livre, não é?

— Onde quer chegar? — Miguel perguntou, com a voz neutra. Havia algo na entonação de Angela que soava desagradável, mesmo com seu olhar amigável.

Angela sorriu enigmaticamente.

— Acontece que, apesar de sua visita estar sendo liberada, também estamos recebendo outro convidado que, sem querer ofender, é muitas vezes mais estimado que você.

— …

— Então, independentemente do tipo de relação que tenha com minhas senhoras, peço que se comporte adequadamente enquanto estiver conosco, tudo bem?

Miguel percebeu os olhares frios que suas mulheres lançaram para Angela. Elas entendiam sua posição: mesmo que se sentissem humilhadas, não podiam reclamar. Ele, no entanto, sorriu gentilmente.

— Claro.

Foi tudo que disse.

Quando o sedã entrou nos domínios da enorme mansão, Miguel não pôde deixar de rir baixinho.

O prédio mais parecia um castelo vitoriano transportado para um bairro futurista: torres elegantes se erguiam entre jardins geométricos e drones patrulhavam silenciosamente o terreno, enquanto vidraças ornamentadas refletiam a luz do sol e painéis holográficos discretos piscavam nas janelas como se fossem parte da decoração.

Era uma fusão absurda e perfeita entre passado e futuro — exatamente o estilo das irmãs Beaulieu.

Angela foi a primeira a sair do veículo. Em seguida, Samira guardou apressadamente caderno e lápis na mochila. Assim que Miguel pisou no chão de pedrinhas, duas sombras se projetaram sobre ele.

— MIGUEL!

— MIGUEL!

O grito uníssono latejou em seus ouvidos, mas o sorriso largo mostrava sua felicidade.

À direita, de cabelos dourados curtos, brincos de pérola e vestido preto e branco estilo gótico: Éloise.

À esquerda, cabelos longos e ondulados que chegavam às coxas, calça com suspensório e camiseta branca de manga longa de linho: Céline.

Ambas quase pareciam querer se fundir a ele, chorando e rindo ao mesmo tempo enquanto o abraçavam.

— Miguel! É você mesmo!... Huaaa!!! Você não mudou nada! Tá tão lindo!

— Miii! Eu senti tanta saudade!... Onde você estava todo esse tempo?!

Entre soluços, não o largavam, deixando todos estupefatos — principalmente Angela, que parecia ter perdido a alma.

— Eu também senti saudade de vocês, tia Éloise, tia Céline.

— TIA É O CARALHO!

— TIA É O CARALHO!

O soco veio forte, atingindo seu rosto. Quase no mesmo instante, enquanto o nariz jorrava sangue, as irmãs se jogaram sobre ele, sufocando-o num abraço caótico.

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