Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 38: Até num lixão nasce flor

— Por que esse sorriso?

Miguel perguntou depois de notar meu sorriso irônico.

— Não é nada. Seu plano é realmente interessante...

— Mas?

Claro que ele percebe. Às vezes parece que lê meus pensamentos — irritante de um lado, atraente do outro.

— É que… às vezes sua carinha linda me faz esquecer que você não é uma boa pessoa.

Com ele não preciso de sofismas. Faz pouco tempo que nos conhecemos, mas sei que posso ser honesta, direta, sem filtro nenhum. É reconfortante. É libertador.

Ainda assim, ele me encara fazendo bico. Não há irritação nos olhos dele, nem desgosto — só aquela expressão impossível de decifrar que mistura leveza, seriedade e… seja lá o quê. Sério, chega a ser maldade alguém ser tão bonito e, ao mesmo tempo, ter uma índole tão questionável.

Não que eu tenha moral pra julgar alguém.

Enfim, a hipocrisia...

— Eu nunca disse que era uma boa pessoa — ele resmunga. — Mas também não sou uma má pessoa como você quer fazer parecer. Eu apenas não opero dentro dos meios morais tradicionais.

Esse é para mim, seu maior charme. A forma como ele articula suas palavras e as expressa de forma impecável, uma eloquência que nunca vi antes.

— Talvez pense que eu deveria tirá-las daquela vida? — ele pergunta.

E eu pensei exatamente isso. Mas não admito. Miguel não é um herói. E, apesar de extraordinário, até certo ponto é como a gente. Eu entendo isso — mas meu lado romântico gostaria de ver isso nele.

— Isso é inviável — ele continua. — A realidade é o que é, e eu não posso alterá-la só porque é cruel ou difícil. Sem poder de verdade, tudo o que podemos fazer é nos adaptar e sobreviver.

Dói admitir, mas ele está certo. A realidade nua e crua. Bondade e maldade são moedas sem valor na mesa da sobrevivência. Só quem tem poder pode escolher.

— Mas, ao menos, posso ajudar a dar um ressignificado às vidas delas — completa.

A forma como ele fala… eu amo ouvir. A voz, a fluidez… eu poderia escutar o dia inteiro, não importa o tema.

Por alguns segundos esqueço do assunto. Depois lembro.

— Um ressignificado…? Acho que entendi agora.

E entendi. Pelo menos o suficiente para saber que a mente dele é de fato singular. Ele já me contou fragmentos do passado — e sempre fico me perguntando que tipo de experiencias ele teve para acabar desse jeito.

— Mesmo que sejam prostitutas por necessidade — continua — ainda podem ser agentes de si mesmas. Não posso tirá-las dessa vida, mas posso mostrar que ainda existe potência no que fazem. Apropriação. Transformação. Criação. Tomar aquilo que as reduz, devorar, e ressignificar. Dar propósito e valor.

Eu não compreendi tudo. Mas senti. E isso foi o suficiente para me fascinar.

Os cantos dos lábios dela se levantaram.

As lembranças daquela noite se pintaram na mente de Luna conforme ela conferia a situação no Lar dos Casados.

O escritório improvisado ficava nos fundos do Lar dos Casados: uma sala estreita, iluminada por letreiros externos que vazavam pelas frestas das persianas. A mesa era antiga, de madeira escura, com manchas de copos e arranhões; em cima dela, um monitor grande, pilhas de recibos, pastas coloridas. O ar aquecedor fazia um ruído incômodo, mas afastava o frio de setembro.

Luna girou lentamente na cadeira, o vaper de abacaxi entre os dedos. Ela havia roubado da irmã — e não se arrependia nem um pouco.

Os relatórios na tela mostravam números improváveis: aumento de 140% no fluxo de clientes, lucros subindo, salários organizados, fundos de manutenção… parecia quase milagre.

Ela sorriu sozinha.

Ajudara na parte administrativa durante semanas, enquanto Miguel estava em coma e Leo se desdobrava para segurar as pontas. Tinha conversado com praticamente todas as meninas da casa, observado a dinâmica delas, escutado desabafos, analisado padrões.

E agora tudo aquilo fazia sentido.

Quando viera pela primeira vez, o lugar era apenas mais um puteiro decadente: atmosfera pesada, cheiro de desinfetante tentando esconder outra coisa, um humor forçado entre as meninas — como se cada piada fosse só uma armadura para suportar o dia.

Quase nenhuma queria estar ali. Andressa era a exceção — tagarela, linguaruda, sem filtro algum, e com uma alegria tão específica que parecia deslocada do mundo. Podia ter vida tranquila na casa de classe média da família, mas preferia isso. “Gosto de transar e odeio acordar cedo”, ela dizia.

Era estranha.

Era um motorzinho.

E era — curiosamente — um pilar emocional para todas. Ela apenas deu azar de acabar nesse lugar que até um tempo atrás estava nos últimos dias.

Mas a maioria das meninas… não tinha formação, nem opções, nem tempo.

Só que, nos últimos meses, tudo mudou.

Sob as ideias dele — mesmo desacordado — e com Luna e Leo executando, elas aprenderam coisas novas: persuasão, leitura de pessoas, pequenas manipulações, coleta de informações, escuta ativa, técnicas sociais.

Não era “virarem putas de luxo”, como Luna provocou uma vez. Era outra coisa. Potência, como Miguel dizia.

Elas começaram a se animar.

A se valorizar.

A entender que tinham mais controle do que imaginavam.

Nem sempre funcionava; dava merda às vezes. Faz parte. Mas se apoiavam mutuamente — e isso era novo.

Alguns clientes, rejeitados, voltavam dispostos a cumprir requisitos que iam muito além do preço. Os que não aceitavam… bem, eram filtrados. E isso deixava claro: esse lugar não era mais uma espelunca.

O ambiente mudou.

Mais limpo, mais cheiroso, mais calmo.

Até a luz parecia diferente.

E agora já estavam quase chegando ao ponto de agendamento prévio.

A concorrência, claro, não gostou.

Tentaram confusão. Mas Miguel havia instruído a usar a Gangue do Machado como guarda, então ninguém ousava exagerar.

Luna soltou a fumaça doce do vaper e recostou na cadeira.

— Será que vão demorar muito pra voltar? — murmurou. O peito apertou. — Estou com saudade da voz dele…

Foi quase no mesmo instante em que Luna terminou de revisar o relatório que alguém bateu à porta do pequeno escritório.

— Pode entrar — ela disse, sem tirar os olhos da tela.

Andressa entrou encolhendo os ombros e fechou a porta com cuidado. Sorriu de um jeito simpático — um pouco tímido até — antes de se jogar na poltrona desgastada ao lado de Luna.

— O que houve? — Luna perguntou, imediatamente notando a hesitação. Andressa era sempre impulsiva. Hesitação soava errado nela.

A menina desviou o olhar de um lado para o outro, esfregando as mãos, respirando fundo como quem precisa de coragem para algo que nunca precisou antes.

— Lu… você me acha estranha?

Luna ergueu a sobrancelha.

— Um pouco.

Andressa soltou uma risada sem graça, claramente já esperando essa resposta.

— Bom… deve ser estranho, né? Uma garota querer virar puta por vontade própria.

Luna abriu a boca para responder, mas nada veio.

— Ah, não precisa fazer essa cara! Hehe… Enfim. Como você sabe, minha família pode não ser rica, mas eu podia viver de boa com eles. — Os ombros dela encolheram num gesto infantil. — Mas é que… eu gosto de transar. Gosto mesmo. É tão bom! Na época da escola eu acho que transei com todos os garotos do meu ano!

Luna não sabia se elogiava o orgulho dela ou se ria do absurdo daquela sinceridade.

— Mas meus pais queriam que eu arrumasse uma bosta de emprego em uma corporação de merda. Que buceta! Eu lá quero ficar num escritório com gente chata o dia inteiro? Então fugi! Pois é. E mesmo com diploma, não tinha nada que eu quisesse fazer pra ganhar dinheiro. Foi quando tive a ideia genial…

— Unir o útil ao agradável.

— Exatamente! — Andressa bateu palminhas. — Ganhar dinheiro fazendo o que eu mais gosto. Parecia perfeito! Eu podia transar com um monte de cara e ainda ficar rica!

Luna cruzou os braços.

— Por que tá me contando isso?

Andressa murchou. Não porque Luna cortou o fluxo — isso ela estava acostumada — mas porque a realidade voltava a engolir o brilho nos olhos.

— Eu… não sei. Só sinto que me abrir com você é mais fácil do que com as outras. — Ela abraçou as próprias pernas, sentando como um passarinho encurvado, os olhos amendoados fixos em Luna. — Talvez… porque você também trabalhava com isso e tem mais experiência?

O peito de Luna congelou.

— …

— Desculpa! Não devia ser tão intrometida!

— … Como sabe? — escapou, seco.

— Seus olhos. As outras não perceberam, mas eu sim — murmurou — Apesar de eles serem mais leves agora, ainda há aquele peso que todas aqui possuem.

— …

— Eu… eu… desculpa mesmo!

As mãos de Luna tremiam. O semblante empalideceu sem que ela percebesse. Andressa, percebendo, levantou num pulo, pronta para fugir da salinha.

Mas Luna segurou o pulso dela.

— Só… continue.

A menina parou. Respirou.

— E não precisa se desculpar. Você não falou nada de errado. Só foi intrometida demais. Mas, em troca… não conte isso pra ninguém.

Andressa assentiu rápido, como uma galinha bicando milho.

— Tá… posso supor que você acabou desiludida, né? — disse Luna, soltando devagar o pulso dela.

Andressa voltou para a poltrona.

— É… foi isso.

Luna puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da menina.

— Não foi nem perto do que eu imaginei — Andressa começou. — Sempre confiei na minha beleza. Sempre fiz esporte, sempre tive um corpo bom… achei que seria fácil ter clientes. Mas eu era exigente. Não queria transar com qualquer um, ainda mais com algum nojento que não toma banho… ou um agressor.

Ela apoiou o rostinho no ombro de Luna, como se aquilo fosse natural.

— Quando percebi, já tava passando fome. A grana de casa acabou. Só consegui ficar num muquifo por mais dois dias, até a senhoria descobrir que eu tava dando pro marido dela. Ela quase me esfaqueou. — Andressa riu, como se fosse uma anedota.

— Por que não voltou pra seus pais? — Luna perguntou.

— Orgulho, ué! Como ficaria minha cara?

— Criança.

— Humpf!

Luna riu — e o riso puxou outro riso da pequena.

— Aí a dona Ana me encontrou desmaiada na rua, me trouxe pra cá e me ofereceu trabalhar em troca de ajudar com as contas da casa. Foi horrível no começo. Eu não queria transar com um monte de homem feioso. Mas quando a necessidade bate… você sabe como é.

— Sei…

O silêncio que se seguiu não foi desconfortável — apenas pesado. Só o ruído do aquecedor preenchia o ambiente.

— As meninas acham que eu sou louca por ter entrado nisso por vontade própria — Andressa continuou. — Mas hoje eu vejo o quanto eu era imatura. Mesmo assim… acho que eu ainda escolheria a mesma coisa. Só que faria tudo diferente.

— Hahaha… você é doidinha.

— Hehehe. Mas agora… eu me sinto um pouco grata.

Luna virou o rosto para ela.

— Grata?

— É… porque agora eu tô vivendo algo que se aproxima do meu sonho. Ainda preciso trepar com uns caras horrorosos, mas só de poder escolher o menos pior já é gratificante. E como as coisas estão indo, quem sabe logo não começa a aparecer uns bonitões?

Luna não sabia se ria ou chorava daquela honestidade.

— Pelo menos nisso… todas são iguais. Graças ao Miguel e à Mia, ganhamos um novo significado. Nossa realidade não mudou quase nada, mas pelo menos somos mais do que só putas. Fala sério, a gente é tipo uma força de inteligência! Tipo espiãs! Não é maneiro?!

— Pra uma força de inteligência, vocês não conseguiram nada útil ainda. 

— Ei! Estamos aprendendo! — Andressa fez bico. — Além disso, só temos cliente pé-rapado por enquanto. Quando a gente começar a juntar fofoca quente… humpf! Você vai ver!

— Estou ansiosa — sorriu.

— Bem… acho que era isso. Miguel não tá aqui pra agradecer, mas queríamos pelo menos agradecer você. Tudo o que vocês fazem ajuda a gente a ter… sei lá… um pouco mais de dignidade.

Luna fez uma expressão cética.

— Achei que você só queria desabafar.

— Também era isso — Andressa admitiu. — Mas você já deve ter percebido a mudança no clima da casa. Mesmo ainda na necessidade… ter um pouco de dignidade e encontrar alguma alegria e proposito mesmo nessas condições já é uma benção, né?

— …

— Lu, tô com fome. Bora comer? — Andressa levantou da poltrona.

— Que mudança súbita…

— Ué, já falei o que queria. E não quero te chatear mais. Já basta eu ter tocado num assunto delicado seu.

Luna suspirou e passou os dedos pelos cachos da pequena, fazendo um carinho involuntário.

— É… também fiquei com fome de tanto te ouvir tagarelar.

— Hehehe.

— Aliás… cadê aquele merda do Leo? Não vi ele desde que cheguei.

— Ah, ele tá enchendo a cara com os amigos novos dele. Aqueles carequinhas de terno que usam machadinhas.

— Claro… tudo bem, ele merece uma folga.

— Lu…

— Oi?

— Você é tipo… a irmã mais velha que eu nunca tive.

— … por que isso do nada?

— Só deixei escapar. Me deixa.

— …

— Lu…

— Que foi, cacete?

— Compra sushi pra mim?

— Sou tua mãe por acaso?

— Por favorzinho…

— …

— …

Luna ouviu Andressa resmungando baixinho enquanto saía pelo corredor, fazendo bico daquele jeito ridículo que derretia meio mundo. Luna rolou os olhos, resignada — e, ao mesmo tempo, estranhamente afetuosa.

— Tá… vamos comer sushi.

— EBA!

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