Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 35: Tensões

Miguel prendeu o riso, pressionando os lábios para dentro da boca.

— Para com isso! — reclamou Nina, já com os olhos marejando.

Puff... desculpa… — quase deixou a gargalhada escapar, mas a expressão dela o fez suspirar, cedendo a um sorriso suave. — Já é tarde pra ficar aí plantada. Não precisa ficar tão ansiosa assim.

— Mas… sinto que meu coração vai parar.

Miguel deu dois passos, deixando a própria presença diminuir antes de surgir atrás dela. Sem aviso, cutucou os flancos da ruiva com os indicadores.

Ah! — Nina deu um salto, ficando tão vermelha quanto o cabelo. No susto, deixou cair o capacete preto que usara mais cedo. — Seu! Seu! Por que fez isso?! — choramingou.

— Tá mais calma agora?

Humpf! Quando a Mia acordar, vou contar que meu cunhado é um cara-de-pau que intimida os mais fracos.

— Aposto que ela vai rir.

Nina mostrou a língua, fez careta… e riu logo depois. Finalmente, respirava direito.

— Podemos ir? — perguntou, já recuperada.

— Hm. — Miguel pegou o capacete do chão, entregando a ela.

Definitivamente, a irmã mais nova, pensou antes de seguir adiante.

Deixaram a moto preta recém-comprada nos fundos da Vênus. Assim que atravessaram a porta de entrada, o aroma doce de tutti-frutti e a névoa roxa os envolveram. O interior estava cheio — fila grande, muito diferente da primeira vez em que Miguel estivera ali.

Era o horário de pico.

As atenções se voltaram brevemente para eles. Nina, com a beleza que parecia quebrar o ar em volta, atraía olhares óbvios; Miguel, na contramão, afastava qualquer excesso de curiosidade só com a postura e a roupa negra habitual. Ninguém ousou encarar por muito tempo.

Caminharam pelo corredor enquanto os totens de LED misturavam tons de neon derretido ao acaso.

— Yo, Ed — chamou Miguel.

Ed com seu impecável moicano verde limão, atendia um grupo de adolescentes uniformizados.

Dois garotos lideravam o grupo, falando alto demais — provavelmente para impressionar as quatro garotas que vinham logo atrás. Mas, assim que Miguel entrou no corredor, a dinâmica mudou de um jeito que até ele percebeu.

As garotas olharam para ele. Olharam mesmo — não um olhar casual, mas daqueles que se prolongam meio segundo a mais. Uma delas chegou a ajeitar o cabelo; outra mordeu o lábio, rápido.

Miguel sorriu levemente para as garotas, mas notou os dois garotos endurecerem a postura.

Quando ele chamou Ed, e o atendente abriu um sorriso aberto — como se reconhecesse um velho amigo — o incômodo do duo ficou evidente. Miguel percebeu o olhar atravessado.

— Miguel! E… Mia?

Nina suspirou, um pouco tímida.

— Sou Nina. Prazer em conhecê-lo.

Miguel a observou de canto. Ela estava formal demais… ou talvez ele é que já tivesse se acostumado ao clima solto daquele lugar.

— Ei, tiozinho, não vai atender a gente não?! — gritou um dos adolescentes, olhando para Miguel com desprezo gratuito.

Miguel devolveu apenas um olhar impassível, sem se importar.

O que pareceu irritar eles ainda mais.

O amigo do líder murmurou algo — baixo, mas Miguel teria ignorado mesmo se tivesse ouvido.

— Opa, calma aí, rapaziada! — Ed gesticulou, pedindo paciência.

Ed voltou ao trabalho, teclando rápido no terminal enquanto os dois garotos “líderes” resmungavam comentários sarcásticos.

— Pronto, gurizada. Cabine nove. — Ed entregou a chave.

O grupo seguinte reclamou; acharam que Miguel furaria a fila. Ele ignorou, conversando brevemente com Ed — que aproveitou para reclamar que “esses pivetes de merda vêm toda sexta pra fuder as novinhas e deixam o lugar parecendo um lixão”.

Miguel e Nina continuaram até o final do corredor, na direção da escada que levava ao subsolo. Foi então que o grupo de garotas à frente deles finalmente chegou à cabine. Duas delas se viraram, trocaram risinhos cúmplices, e uma — a mais baixa, loira — correu em direção a Miguel.

— Hm? — Miguel virou o rosto quando ela parou diante dele.

A garota, usando um blazer cinza-claro ajustado, camisa branca impecável e gravata listrada, não disse uma única palavra. Apenas estendeu um papel dobrado para ele, rápida e silenciosamente. Em seguida, fez meia-volta — e o movimento da saia plissada grafite, curta demais para o padrão escolar, acabou revelando sua calcinha. E, pela forma como ela ergueu o quadril no passo seguinte… não parecia acaso.

Miguel ergueu uma sobrancelha, ponderando por um instante, enquanto observava a garota correr de volta para as amigas. Logo as quatro desapareceram dentro da cabine.

— O que é isso? — perguntou Nina, inclinando o pescoço para ler.

Miguel abriu o papel.

“Você é um gato! Por favor, liga pra gente depois.”

Quatro números, em vez de dois. Talvez as outras duas fossem tímidas. Irônico, considerando o motivo delas estarem ali.

Ele guardou o bilhete no bolso.

Nina imediatamente pisou no coturno dele.

— Você não tá nem pensando em ligar pra elas depois… tá?

— E por que não?

— Ora, seu pervertido! Você já tem a irmãzona Sam e a Vic, seu… seu besta! Eu vou contar pra Mia quando ela voltar!

Os ombros de Miguel tremeram num riso curto. Ele bagunçou o cabelo da ruiva, que fez um beicinho.

— Existem muitos usos pra isso. Vai que essas garotas são úteis mais tarde. Não seria um desperdício ignorar as cartas que o mundo oferece?

— Aham… sei. A Mia e as meninas já falaram o quanto você é um safado. Se você trair elas, eu... você vai ver o que faço com você!

— Irônico ouvir isso de uma pervertida que curte tentáculos e ventosas.

Nina arregalou os olhos — boca aberta ao ponto de caber um ovo — e ficou vermelha até as orelhas.

— N-NÃO!!! Eu não acredito que a Mia te disse isso!!!

— Não foi a Mia. — Miguel ergueu um dedo. — A Vic me contou tudo.

Ela explodiu.

— SEU—!!!

O soco no queixo foi tão rápido e tão sincero que Miguel descreveu uma parábola perfeita no ar antes de cair sentado no chão.

— Eu vou matar você! E depois a Vic! E depois eu mesma!!!

— Opa! Calma! — Miguel se levantou num salto.

E correu.

Nina, furiosa e chorosa, veio atrás dele enquanto ele fugia para o subsolo.

♦♦♦

Miguel observou Nina corar até as orelhas quando ela se apresentou.

— Eu sou a Nina! — A voz dela saiu mais alta do que pretendia; o rubor intenso denunciava a vergonha.

— Ah! Vem cá, sua fofa! — Vic se atirou sobre a garota e a envolveu num abraço sufocante. — Resumindo, cambada: Nina agora é parte da gangue.

Miguel viu o ambiente relaxar quase imediatamente. A formalidade quase cerimonial de Nina tinha deixado todos sem saber como reagir, mas Vic foi rápida em melhorar o clima.

Mesmo assim, Nina continuava tímida, retraída… e, de algum modo, aquilo parecia despertar ainda mais simpatia no grupo. Até Rita — que sempre arrumava um motivo pra resmungar — só observou de canto, sem qualquer intenção de zombar.

Ele já havia avisado no Orkit sobre a nova integrante, claro. Pediu primeiro a aprovação de Victor, que não viu razão alguma para recusar.

Mas Miguel não comentou nenhum detalhe além do necessário. Ninguém ali — nem Vic — sabia que Nina fora a responsável pelo ataque três meses atrás. Isso era assunto para tratar depois, só com Victor e sua irmã.

E apenas depois de explicar que estava tudo sob controle.

Durante a apresentação, no entanto, Nina explicou suas limitações. Apesar de ser a androide mais poderosa do planeta, Miguel notou a frustração contida quando ela disse que não poderia ajudar tanto quanto parecia. Seu sistema não permitia envolvimento direto em assuntos fora da rede.

O acesso “livre” que tinha agora era, segundo ela, um presente do administrador — uma pausa, um intervalo curto demais pra ser chamado de descanso. Quase como aquelas férias que parecem liberdade, mas em que o chefe continua mandando mensagem no meio da tarde. No fim, a proteção da rede permanecia tão absoluta quanto antes.

No fim das contas, ela seria mais uma orientadora do que uma combatente. Uma espécie de espectadora privilegiada. Mas ninguém pareceu se importar. Tal como Mia, Nina tinha uma presença magnética.

Enquanto os outros se revezavam para cumprimentá-la, Miguel percebeu algo fora do lugar. Samira, quieta num canto, em seu uniforme escolar, observava a cena à distância. Já tinha conversado com Nina antes… então por que estava tão afastada agora?

Ele se aproximou devagar. Samira estava tão perdida nos próprios pensamentos que nem percebeu quando ele parou ao lado. Miguel deixou escapar um sorriso maliciosamente suave… e beliscou a cintura dela.

Ela soltou um gemidinho involuntário, saltando como se tivesse levado um choque. O biquinho ofendido durou apenas um instante antes de se dissolver em um sorriso quente. Samira se lançou contra ele, beijando-o com carinho — um carinho que, dessa vez, tinha algo de frágil.

— Aconteceu alguma coisa? — ele perguntou, segurando-a com firmeza, atento ao ritmo curto da respiração dela.

Samira desviou o olhar, os ombros murchando.

— …

Miguel sentiu o coração apertar. Conhecia bem aquele silêncio.

Sem dizer nada, pegou a mão dela e a guiou para um canto mais afastado. Ela se sentou ao lado dele, quieta demais, o olhar perdido em algum ponto além das pessoas.

Apesar do clima festivo em volta, ainda era possível ouvir o rangido metálico das pás mexendo as substâncias multicoloridas nos panelões da Aurora Phase, do outro lado da sala. O barulho constante dava ao momento um contraste estranho — como se o mundo continuasse funcionando, indiferente à dor dela.

Samira não dizia uma palavra… e Miguel sabia exatamente o que aquilo significava. No fundo, só uma coisa a deixava desse jeito.

— As coisas pioraram na escola? — sua voz saiu baixa, cuidadosa.

— …

O pequeno tremor no corpo dela respondeu por ela. Ele olhou de canto e notou a respiração acelerada, quase arfante.

— Pelo visto, é o que parece… — murmurou, soltando um suspiro irritado consigo mesmo por não ter percebido antes.

Do outro lado, os nerds — Julian, Alex e Rufus — se revezavam frenéticos em seus computadores, teclando sem parar. De vez em quando, lançavam olhares furtivos na direção de Nina, claramente interessados em falar com a nova integrante… mas tímidos demais para agir. A cena toda teria sido cômica se Miguel estivesse com o humor no lugar.

Mas não estava. Não naquele momento.

Aquilo não era assunto para discutir ali, no meio do barulho e da movimentação.

Miguel se levantou devagar e estendeu a mão para ela. Samira segurou sem hesitar. Ele a conduziu para fora da sala, atravessando o espaço até a porta.

Antes de sair, sentiu o olhar de Vic atravessá-lo — um olhar curto, certeiro, que dizia sem palavras: Ela precisa mesmo de você.

Ele apenas assentiu, mais para si mesmo do que para ela, e fechou a porta atrás dos dois.

♦♦♦

Samira chorava com tanta força que o próprio ar parecia falhar na garganta. Os soluços vinham entrecortados, quase dolorosos, e o corpo frágil tremia enquanto seus dedos apertavam as roupas de Miguel como se se soltar dele pudesse fazê-la despencar num abismo.

Miguel a segurava firme, sem dizer nada. Palavras seriam inúteis naquele instante. O que ela precisava era de um lugar seguro para desmoronar — e ele ofereceu exatamente isso, apenas silêncio e o peito onde ela pudesse esconder o rosto.

No quarto dela, longe de qualquer ruído, Samira enfim falou. Contou tudo o que vinha acontecendo nas últimas semanas — desde antes, nos meses em que ele estava em coma, até aquela manhã. À medida que as palavras saíam, Miguel sentia algo dentro dele se partir devagar. Era muito pior do que imaginara. Muito pior.

E só então entendeu: ela tinha escondido tudo para não o sobrecarregar, para não disputar atenção com Mia, para não virar mais um peso em cima dele.

Besteira, pensou. Uma besteira cruel. Ela também era sua mulher. Tão importante quanto Mia ou Victoria. E muito mais frágil — e justamente por isso deveria ter sido a primeira a ser acolhida. Mas não a culpava. Samira sempre carregava mais do que conseguia suportar. Sempre achava que precisava aguentar sozinha.

Até que não deu mais.

Quando as lágrimas finalmente pararam — ou quando ela simplesmente se cansou de chorar — o corpo dela desabou devagar sobre o peito dele. Miguel a aninhou, aconchegando-a nos braços como quem protege algo quebrado, mas precioso. Passou a mão pelos fios macios, acompanhando a respiração trêmula que começava a se acalmar.

— Ei, Sam… — murmurou, tocando de leve o rosto quente e inchado dela. — Lembra do que eu te disse naquele dia?

Os olhos dela se estreitaram, avermelhados, confusos. A boca hesitou.

— Mas…

Ele sabia exatamente o que ela queria dizer.

— Não se preocupa. — A voz dele saiu baixa, firme. — Eu prometi que ia te ajudar a vencer seus demônios. Desculpe demorar tanto. Mas logo, eles serão todos dizimados.

Samira piscou devagar, e um sorriso minúsculo — quebrado, mas verdadeiro — se formou no canto dos lábios. Ela assentiu, quase imperceptível, e então fechou os olhos, encolhendo-se ainda mais nos braços dele.

Miguel continuou acariciando seus cabelos, cada movimento preciso e gentil, como se um toque mais forte pudesse feri-la. Quem observasse de fora veria apenas um namorado amoroso, cuidadoso, inteiro ali por ela.

Por dentro, porém…

Um ódio silencioso começava a pulsar, quente, corrosivo...

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