Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 2

Capítulo 34: Boas notícias

A primavera finalmente chegava, e os últimos flocos de neve se dissolviam rápido demais.

Miguel observava o fenômeno em silêncio, com certa melancolia. Era uma pena — mal teve tempo de aproveitar aquela sensação tão estranha e contraditória: neve no DF... em Neo Alvorada.

Ainda assim, não se sentia realmente triste. Haveria o próximo ano. Talvez pudesse aproveitar com Mia.

Se conseguisse trazê-la de volta até lá.

Desde que despertara, uma semana atrás, Vic contou que levaram o corpo de Mia a todos os Cyber Engenheiros conhecidos. Nenhum tinha as ferramentas, nem a capacidade técnica para consertá-la.

Mesmo nos fóruns anônimos, onde tomaram todo cuidado para não expor demais sua estrutura, os mais talentosos — e mais caros — se diziam incapazes de restaurar aquela androide.

— Tenho que encontrar o velhote...

Murmurou, deixando o vapor escapar entre os lábios. O vento frio arrancava fragmentos de nuvem sobre os prédios, e cada floco que pousava em seus cabelos e pele derretia no mesmo instante. O ar estava seco, cortante.

Mesmo assim, Miguel vestia apenas uma calça de moletom e uma regata cinza. Gostava de sentir o frio.

Dr. Tiago era o único nome que lhe vinha à mente. Se alguém poderia trazer Mia de volta, era ele — o criador dela.

Talvez Yuri, o CEO da Corporação Okitan, também pudesse... mas o que pensaria ao ver um desconhecido aparecendo com uma androide idêntica a Nina, sua maior criação?

Não, esse cara estava completamente fora de cogitação.

Por um momento pensou em outras duas pessoas, mas o pensamento se dissolveu em uma breve melancolia, suspirou profundamente.

Do alto da cobertura do prédio, Miguel observava a parte leste do Distrito 4. A cidade nunca dormia — luzes, drones, e letreiros holográficos competiam pelo espaço visual como se fosse meio-dia.

Lá embaixo, as ruas fervilhavam com entregadores autônomos, vitrines trocando anúncios, e o som distante de uma sirene cortando a monotonia metálica.

Ele não se sentia exatamente solitário.

Sentia falta de Mia, claro — uma falta que doía e muito —, mas conseguia racionalizar. Mia poderia voltar. Só era questão de tempo.

Além disso, Samira e Victoria não o deixavam sozinho. Quase todos os dias estavam ali, o mimando, o distraindo.

O vento soprou gélido.

Virou-se calmamente quando sentiu a presença.

Seus olhos afiados se encontraram com um par de íris rubras, brilhando contra o vento frio.

Finalmente.

Nina veio falar com ele.

A garota de beleza inumana nada disse — apenas ficou ali, parada, como se a alma tivesse escapado do corpo. Os olhos vazios e as olheiras profundas denunciavam noites sem sono. O capuz de sua jaqueta furta-cor refletindo os tons de azul e roxo do letreiro do hotel ao lado.

— Foi você, não foi? — perguntou Miguel, sem rodeios.

— ... Sim... é minha cul—

— Não é sua culpa — interrompeu. — Não vou culpá-la por sua ingenuidade. Tampouco estou com raiva de você, Nina.

Miguel suspirou, cansado, mas ainda assim sorriu de leve e caminhou até ela.

— Está tudo bem. Não é culpa sua — repetiu.

Então a abraçou com suavidade.

Nina começou a soluçar contra o peito dele, deixando que as lágrimas corressem livremente.

Depois que se acalmou, sentou-se ao lado dele em um dos bancos de plástico, observando a paisagem matinal daquele canto esquecido da cidade.

Com a mente finalmente clareada após a tempestade, Miguel compreendeu o que aquele desconforto vinha tentando lhe dizer.

Não era medo de falhar no ataque contra Hugo — agora percebia.

Sua ansiedade nascia de algo mais profundo, algo que ele e Mia haviam inconscientemente ignorado.

A companheira deles, a “irmãzinha” de Nina, era, no fim, apenas uma ferramenta — uma marionete nas mãos de uma entidade muito maior.

Mas Miguel não se culpava por isso.

Nina era tão humana quanto ele e seus amigos. Tanto quanto Mia era. E talvez por isso, inadvertidamente, ele tenha esquecido que, no fundo, ela ainda era uma máquina.

Mesmo assim, Nina vivia na tênue linha de seus protocolos, sempre forçando brechas no próprio código para proteger os companheiros. Fazia o impossível para nunca os entregar, nunca os colocar em perigo, nunca alertar quem quer que fosse sobre suas ações.

Mas… e se, o tempo todo, ela já estivesse sendo usada?

Pior ainda: sem sequer saber disso.

Pensando estar driblando o sistema, quando na verdade era o sistema quem a usava.

Em outras palavras — Nina era a espiã perfeita.

O ataque que sofreram — ele, Nina e toda a gangue — o fez repensar tudo.

Ao analisar com calma o que aconteceu três meses atrás, chegou a uma conclusão inevitável, obvia:

O ataque foi sincronizado demais.

Uma ofensiva surpresa, precisa, coordenada contra todos os membros da Crimson Wolf simultaneamente.

Mas como Hugo poderia saber onde cada um deles estaria naquela noite?

Eles estudaram o inimigo. Sabiam que Hugo não tinha esse tipo de recurso — nem mesmo com o apoio do tio.

O mais lógico era que ele próprio tivesse sido apenas uma peça do tabuleiro.

Um instrumento para atingir Miguel e os outros.

E havia algo ainda mais revelador: o próprio Hugo morreu naquela mesma noite, sozinho, em um prédio abandonado.

Quem poderia prever, com tamanha exatidão, o paradeiro de cada membro da gangue? Nem entre eles isso seria possível.

Se perguntassem a Miguel onde Victor estava naquela noite, ele não saberia responder. Nem mesmo a irmã dele sabia — e ele chegou a perguntar, tentando montar o quebra-cabeça.

Então… quem mais poderia fazer isso?

Foi quando entendeu.

Quem, além da IA mais poderosa do mundo, teria acesso a um banco de dados com hábitos, costumes, vícios e tendências de absolutamente todos?

Coletados a partir de dados de GPS, históricos online, amizades em redes sociais, algoritmo de pesquisa, consumo, etc.

Quem mais poderia juntar todos esses dados e então prever movimentos humanos com tamanha precisão analítica?

Ninguém além de Nina.

Mas ela jamais os traiu.

Ela sequer participava das ações da Crimson Wolf — seu papel se limitava à manutenção da rede e da infraestrutura digital. Intervir em outros assuntos estava fora de cogitação.

Então… e a entidade por trás dela?

O que diabos esse ser queria?

Matá-lo? Não.

Se fosse isso, Miguel já estaria morto há muito tempo.

Além disso, quem quer que estivesse por trás de tudo sabia muito bem quem ele realmente era.

Poderia tê-lo capturado, entregue a alguma corporação — ou pior, aos Mendes.

Mas não o fez.

Por quê?

Por que agir apenas agora?

Por que permitir que ele percebesse que estava sendo observado?

— Ele está brincando comigo, não é? — perguntou Miguel, olhando para ela.

— Eu... eu realmente não sei — respondeu Nina, a voz embargada. — Mas acho que sim. Considerando tudo o que aconteceu... é a única coisa que posso supor.

— Posso assumir que não pode me dizer quem é que a controla?

Nina balançou a cabeça, tristemente.

— Tudo bem, não importa — disse Miguel, dando de ombros.

— O melhor a se fazer agora é eu me afastar... não sou confiável — murmurou Nina, com os olhos marejados. — Eu só vim aqui pra—

Mas Miguel apenas passou a mão pelos cabelos rubros dela, a interrompendo.

— Não precisa fazer isso.

— Mas...

— Se você está aqui agora, é porque quem quer que a controle quer que eu saiba disso. Está dizendo que, não importa o que eu faça, já estou sob seu alcance. Esse ser não quer me matar — pelo menos, não agora —, mas também não se importa de me ferir... ou ferir meus amigos. Que problemático — suspirou.

Nesse exato momento, quem quer que estivesse por trás de Nina podia estar ouvindo, observando, rindo dele.

Não havia como saber.

Ainda assim, Miguel sorriu — um sorriso tranquilo, desafiador.

— Mas... e daí?

— Hm? — Nina o olhou intrigada.

— Cada passo que eu der será visto por esse ser. Cada plano, descoberto. Terei que me adaptar a cada instante. Sim, eu poderia cortar relações com você agora — e talvez fosse a melhor estratégia —, mas ao não fazer isso, aumento a pressão sobre mim. Posso me arrepender depois? Claro. Mas isso também faz parte da experiência.

Miguel sabia o quanto soava arrogante, muito prepotente. Mas, ironicamente, era isso mesmo que o movia.

— Se eu não aguentar a pressão, então morrerei miseravelmente. Sem encontrar minha mãe, sem rever Mia, sem formar uma grande família. Heh... mas não é um excelente incentivo para ficar mais forte?

Nina ficou muda, o encarando perplexa — olhos arregalados, expressão dividida entre admiração e incredulidade.

E então, como se lembrasse de algo, riu baixinho.

— Acho que tem razão... — disse, entre um suspiro e um sorriso. — Não tenho acesso a todos, mas, sem exceção, os mais poderosos entre os que possuem o Primordium... todos são insanos.

Ela encolheu os ombros, mas parecia aliviada. O semblante suavizou, os traços relaxaram.

Como se tivesse, enfim, deixado o peso escorregar dos ombros.

— Você é realmente como Mia disse... — murmurou, sonolenta. — E também... é mesmo o filho da pessoa mais incrível do mundo...

Dito isso, a cabeça dela pendeu devagar, repousando no ombro de Miguel.

Os olhos se fecharam. A respiração ficou leve.

Simples assim — adormeceu.

Miguel sorriu, quieto, deixando sua querida cunhada dormir em paz.

 

♦♦♦

 

O aroma da massa assada se espalhava pelo apartamento — não que o lugar fosse grande. Miguel balançou a frigideira no ar e virou a panqueca, deixando o lado mais dourado para cima. Deu mais alguns segundos de fogo antes de desligá-lo.

Foi então que ouviu um gemidinho vindo da sala. A pequena, encolhida no sofá como um gatinho, começava a despertar. Nina se espreguiçou devagar, bocejando, uma mão apoiando o corpo para se sentar enquanto a outra esfregava os olhos semicerrados.

A jaqueta estava amassada, assim como o Axolote estampado em sua blusa. As botas estavam no chão, e as meias com gatinhos sumiam por dentro da calça branca.

— Uaahh… — murmurou, olhando ao redor com certa desconfiança. O cabelo bagunçado dava um charme involuntário à figura sonolenta. — … hm?

Miguel riu baixinho. O quanto aquela garota estava cansada? Dormira quase doze horas.

— Bom dia — disse ele, empilhando as panquecas no prato.

Nina piscou, e de repente saltou do sofá como um gato assustado, os olhos enormes finalmente entendendo onde estava.

— Eu… eu… é…

Miguel soltou outra risada, e o rosto dela ficou vermelho até as orelhas.

— Deve estar com fome. Gosta de panquecas?

Ela resmungou algo inaudível, fez um beicinho e caminhou até a cadeira da bancada.

— O cheiro está ótimo.

Aproximou o nariz do prato e fungou de leve. Miguel pegou a calda de caramelo na geladeira, colocou ao lado e entregou um pratinho com garfo e faca.

— Obrigada — disse ela, servindo-se sem hesitar. Derramou uma boa dose de caramelo antes de cortar o primeiro pedaço. — Hmmm! Que delícia.

— Que bom que gostou. Pode comer o quanto quiser.

Nina cortou outro pedaço da panqueca, o caramelo puxando um fio lento entre o garfo e o prato. O apartamento ainda cheirava a massa quente. Miguel bebeu um gole de café, quieto, encostado na bancada.

Depois de engolir, Nina ergueu os olhos.

— Miguel… onde a Mia tá?

A mão dele tremeu por um instante, mas respondeu levemente:

— Ela está no quarto... dormindo em nossa cama.

Miguel levou um pedaço da panqueca a boca, mastigou e depois continuou:

— Infelizmente estamos de mãos atadas. Mia pode ter sido criada cem anos atrás, mas seu “pai” era alguém muito à frente do tempo, aquele velhote de merda, dando trabalho até hoje... — resmungou fazendo careta. — Sem ele não dá pra trazer Mia de volta, nenhum cyber engenheiro que contatamos pode concertar os danos que Mia recebeu.

Nina puxou a garrafa de café para perto e Miguel, sem dizer nada, pegou uma das canecas de coelhinho do armário e colocou diante dela. Ela encheu até a metade e completou com leite.

Nina tomou um gole, fechou os olhos por um instante, como quem aprova o sabor. Um sorriso discreto escapou no canto da boca — Miguel não soube se era pelo café ou por outra coisa.

Então ela falou:

— Miguel… a gente pode trazer a Mia de volta. Sem depender do Dr. Tiago.

Miguel não demonstrou surpresa. Apenas voltou o olhar para ela, apoiando os dedos na borda da própria caneca. Ouviria a sugestão dela e então, depois de investigar essa pessoa, decidiria se poderia confiar ou não.

— Quem poderia nos ajudar?

Nina sorriu, parecendo realmente feliz. Aquilo intrigou Miguel.

— Aquelas que criaram o corpo de Mia e o meu corpo. As irmãos Beaulieu.

Miguel sentiu seu coração parar por um momento.

— Éloise e Céline... estão vivas?!

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