Volume 1
Capítulo 33: Artífice
Da penumbra ela surgiu, mais magnífica do que a própria lua, uma visão capaz de quebrar a realidade ao redor.
Seus cabelos ondulados, da cor do sangue, dançavam sob a neve como serpentes de seda. Os olhos, rubros e penetrantes, pareciam fatiar a alma de Hugo, sugando qualquer racionalidade que restasse. O rosto… impossível de ser humano. Cada traço em perfeita simetria, cada linha como se um artista divino tivesse esculpido com obsessão e crueldade.
O vestido curto, de temática junina, moldava-se ao corpo dela como se a própria gravidade a reverenciasse.
Absolutamente linda.
Hugo engoliu em seco. Já havia visto Nina inúmeras vezes em propagandas: a androide mais avançada do planeta, a maior criação da humanidade, o produto mais caro do mundo.
E estava ali, na sua frente.
— O que… está acontecendo…? — murmurou, quase sufocado pelo espetáculo.
Nina permaneceu impassível, gelada, como se não tivesse alma.
Então, surgiu ele.
Um ser que ultrapassava a própria compreensão do belo.
Tocando no que só poderia ser descrito como sublime.
Hugo perdeu completamente o fôlego.
A beleza do homem era impossível, inumana. Seus cabelos da cor do trigo, dançando com o vento como uma cascata líquida de ouro. Seus olhos, como cristais de ciano, brilhavam com uma inteligência e uma crueldade que ao mesmo tempo hipnotizavam e intimidavam.
A pele parecia ser feita de porcelana líquida, cada traço tão simétrico que parecia criar dor ao simples olhar, cada músculo, cada linha do corpo perfeito, muito mais alto que Nina, irradiando autoridade e imponência de forma palpável.
O Hanfu branco sobre ele flutuava como se fosse tecido de luz, caindo com precisão cirúrgica, contrastando com o clima junino, mas parecendo ter sido feito apenas para ele, desenhado pelas mãos de um criador celestial.
Até sua postura carregava majestade: andava com uma imponência que parecia dobrar o espaço ao redor. Hugo sentiu a própria realidade se curvar diante de sua presença.
O niilismo tomou conta dele. Cada fibra de Hugo gritava que sua atenção era exigida, que ele era irrelevante diante da magnitude daquele ser. Era impossível existir algo tão perfeito… e ainda assim, estava ali.
O sorriso do homem cortou o silêncio. Impecável, inatingível… mas cruel, como se cada canto de sua boca fosse esculpido para provocar terror e fascínio ao mesmo tempo.
— Olá, pequeno ratinho. — Pausa. Um ajuste no tom, puro desdém: — Oh, esqueci… ratinhos não suportam.
Hugo não entendia as palavras, seu corpo já era pouco mais que um instrumento obediente à sensação de inferioridade esmagadora.
De repente, o ar pareceu respirar por si mesmo. Hugo recuperou parte da consciência, apenas para perceber o mais aterrador: estava prostado sobre a neve acumulada da cobertura, suor frio escorrendo pelas costas. Tentou se levantar, mas uma força invisível o manteve curvado. Com esforço sobrenatural, conseguiu se erguer.
— Oh! Impressionante — disse o homem, com um olhar de gentileza, quase paternal, dirigido a Hugo, como quem observa uma criatura ridícula e desengonçada.
— Qu-quem… é você?! — gaguejou Hugo, os dentes batendo, ainda hipnotizado.
— Quem eu sou? — o homem sorriu com pena. — Não acha a pergunta vaga demais?
Hugo sentiu-se humilhado por um motivo que não soube explicar. Aquele sorriso era desprezo puro. No fundo sabia que ele zombava — não via Hugo como humano, mas como algo para desprezar, um animal de laboratório.
— Foi você que mandou aquele e-mail? — cuspiu, tentando manter a voz firme.
— Foi tão fácil manipulá-lo — o homem respondeu, como quem comenta o tempo — como minha querida Nina previu. Tão desapontante… — suspirou, cansado. — Não é à toa que seu tio nunca te olharia do mesmo jeito que olhou para Miguel.
Era um tapa na cara. Hugo explodiu. Não pensou nem em puxar sua arma; avançou com as próteses Hercules prontas para esmagar aquele rosto perfeito. A sombra que projetou cresceu, negra e imediata.
Mas Nina interveio com a delicadeza de uma bailarina. Ela se pôs à frente do homem e, num gesto quase artístico, girou o corpo. Com a palma pequena esticada, empurrou o abdômen de Hugo.
A dor veio como uma explosão interna. Parecia que os órgãos estouravam por dentro. Um jorro de sangue descreveu uma parábola no ar enquanto o gigante voava e batia as costas no parapeito. Hugo vomitou sangue, a consciência falhando. Incapaz de levantar.
— Sabíamos que você agiria cautelosamente ao conferir o material que lhe enviamos — falou o homem, indiferente ao desfecho. — Um movimento previsível. Mas eu não podia só sentar e esperar… já esperei tempo demais.
A voz dele baixou tanto que Hugo quase não ouviu — mais consigo mesmo do que direcionada a Hugo.
— Por isso usamos também o vídeo da escola. Foi uma sorte divina Miguel ter cruzado com seu tio naquele dia. Heh… quão irônico. Quase como se os céus estivessem do meu lado. E bastou só isso pra você perder sua racionalidade e agir impulsivamente. Bem, de qualquer forma, teríamos outros meios de o fazer agir.
— Po-por quê? — arrastou Hugo, sem fôlego.
— Por quê? — o homem sorriu, o desprezo envenenando a fala. — Quem sabe?
— … foi tudo uma armadilha? Você está do lado… daqueles merdas? — Hugo mal conseguia formular a pergunta.
— Do lado deles? — o homem riu, curto. — Fala dos lobinhos? Não. Não é isso. Todos eles poderiam morrer, contanto que Miguel e Mia ficassem vivos. Só preciso desses dois.
Fechou os olhos, inalou o ar frio e poluído da noite como se gostasse do sabor.
— Miguel está relaxado demais. Agora tem um lar, garotas deliciosas para o satisfazer, amigos confiáveis. Os poucos inimigos que tem são medíocres. — Riu baixo. — Se eu deixasse as coisas fluírem, você estaria morto em dois dias. Seu tio, enganado pelo plano, desconfiaria dos próprios homens; isso criaria tempo para Miguel se preparar contra ele. Mas isso seria tedioso.
Caminhou devagar até Hugo.
— Preciso que Miguel fique mais e mais forte o mais rápido possível. Então irei o pressionar e o destruir cada vez mais. Matarei seus amigos, estuprarei suas mulheres, esmagarei seu espirito, se for preciso.
Parou diante de Hugo.
— Você foi um bom trampolim. O dano que fez foi decente. Estou satisfeito. Obrigado pelo serviço — disse, com gentileza cortês, como se lhe oferecesse um último favor. Depois virou-se e começou a sair. — Nina, cuide do resto. Depois pode voltar para festa.
— Entendido. — Ela respondeu, sem emoção.
A última imagem que Hugo teve foi Nina vindo em sua direção. Curiosamente, o pânico não veio. Um estranho alívio lhe subiu — talvez por perder o rosto do homem de vista. O ar ficou mais calmo.
Nina ergueu a mão em direção ao rosto dele e, no instante seguinte...
Escuridão.
♦♦♦
Na cobertura de um luxuoso edifício que penetrava as nuvens, ele chegou.
Após descer do VA — o veículo aéreo de uso pessoal — Roy foi recebido por seu braço direito, Yuri Nishitani.
Como sempre, o homem o aguardava impecável em seu terno de alfaiataria, o olhar sereno escondendo o brilho analítico por trás dos óculos que usava mais por estilo do que por necessidade.
— Como foi o passeio, senhor? — perguntou Yuri, num tom tranquilo.
— Inspirar o ar sujo lá de baixo foi... de certa forma nostálgico. — Roy respondeu, soltando uma risada breve.
Yuri o acompanhou com um sorriso discreto, ajustando os óculos com a ponta dos dedos.
— E Nina? Ficou por lá?
— Deixei que ela brincasse um pouco — respondeu Roy, com o mesmo tom sereno de quem fala sobre um animal de estimação. — Ela quase nunca sai de casa, e hoje é uma data tradicional. Achei justo deixá-la se divertir.
Nenhum dos dois parecia minimamente preocupado com a possibilidade de Nina se rebelar.
Um comando havia sido programado para ser executado logo após ela eliminar Hugo.
Naquele exato momento, suas memórias já haviam sido sobrescritas — ela não lembrava mais de ter vazado o plano que Mia confidenciara, nem de ter hackeado os sistemas de vigilância pública e dispositivos que flagraram os ataques de Hugo, tampouco de ter gravado o assassinato de Hugo com as próprias mãos.
Yuri havia fabricado um novo conjunto de lembranças, fazendo-a acreditar que apenas havia recebido um dia de folga de seus criadores.
Nina, ao descobrir sobre Mia e Miguel, inevitavelmente entenderia que fora a causa de todo aquele desastre. Mais uma vez, perceberia o quanto era manipulada — sem notar, sem poder lutar —, presa a um destino cruelmente trágico.
— Como está Miguel? — perguntou Roy, caminhando para dentro do palácio suspenso nas nuvens. Passou ao lado da piscina infinita, onde a água caía em cascata, sem que o desperdício o preocupasse.
— Vivo — respondeu Yuri, seguindo-o. — Mas o dano foi grave. O pulmão esquerdo e boa parte do coração... destruídos. Foi um milagre ele ter conseguido abrir o Kaihōtai naquele estado.
Roy assentiu, pensativo.
— E Mia?
— O coração — ou melhor, a bateria que sustentava ela — foi destruída junto de vários circuitos internos. Por sorte o cérebro ficou intacto. Se arranjar quem substitua as partes danificadas, ela voltará. Mas... Miguel vai achar alguém capaz disso? Nem ele sabe onde aquele velho de merda se meteu.
— Ainda há as irmãs Beaulieu.
Yuri arqueou uma sobrancelha.
— Elas? Acha que ajudariam Miguel?
— Claro que sim. São praticamente as mães de Mia. Se já soubessem que a filha tá viva, já teriam aparecido faz tempo. Isso é bom, muito bom. Mia ainda ganhará um upgrade, provavelmente.
— Entendo... — murmurou Yuri.
— E aqueles homens que o resgataram?
— Ah, a “Gangue do Machado” — Yuri riu, balançando a cabeça. — Uma gangue de descendentes asiáticos que se inspirou num filme antigo. Uns dias atrás, Miguel foi cobrar uma dívida deles com a Crimson Wolf. Depois de os espancar, acabaram desenvolvendo um estranho senso de camaradagem. Estavam na mesma festa quando tudo aconteceu, por isso o salvaram.
Roy deu um leve sorriso.
— Que desfecho conveniente. Nem precisamos envolver Nina. Foi até melhor que esses idiotas tenham feito o serviço.
— Concordo. Miguel está agora numa clínica clandestina no Distrito 13. Uma tal de Selina — amiga deles, enfermeira — está cuidando dele. É confiável o bastante. No mínimo, não vai deixá-lo morrer.
— Perfeito — disse Roy, a voz suave como seda. — Comece a editar o vídeo da morte de Hugo. Usaremos na hora certa. Quanto a Nina... — sorriu gentilmente, e até sua gentileza tinha veneno. — Não altere mais as memórias dela depois dos eventos de hoje. Nem a use mais pra monitorar Miguel. Deixe-a em paz... mas ainda sob os grilhões de sempre.
— ... Certo. — Yuri hesitou.
Roy percebeu o brilho de dúvida por trás dos óculos.
— Miguel vai saber que foi Nina quem vazou o plano. Talvez já saiba, mesmo que só de forma instintiva. Quando perceber de fato, vai entender que estamos brincando com ele.
— E então ele vai se afastar de Nina? Vai fazer Mia se afastar também?
Roy negou com um leve movimento da cabeça.
— Não. Miguel vai continuar igual. Provavelmente vai incluir Mia nisso, dizendo que pode compartilhar tudo com Nina. Vai manter as duas próximas.
— Não entendo.
— Hehe. Miguel vai usar isso pra nos enganar. Se ele sabe que qualquer plano pode vazar, ele pode criar planos dentro de planos, uma teia de armadilhas. Nina vira um coringa — uma espada de dois gumes pra ambos os lados.
Por um instante, Roy pareceu se divertir com a ideia, mas suspirou, retomando a compostura.
— Seria divertido ver o que ele prepararia pra mim... mas ao permitir que ele soubesse sobre Nina, eu abri mão dela. Vamos fazê-lo crescer por outros meios. Só deixá-lo sob essa paranoia já é suficiente.
— Então Nina vai se dedicar ainda mais a Miguel e Mia. O senhor não acha que, no fim, ele possa tomar posse dela completamente?
O sorriso de Roy se alargou, quase infantil.
— Isso não seria maravilhoso? Se Miguel conseguisse isso, poderia governar o mundo inteiro. — Riu baixo. — Mas isso ainda vai demorar... se acontecer. Por enquanto, emprestaremos Nina, mas não vamos nos desfazer dela.
Ele entrou em seu palácio com um sorriso radiante, como um artífice animado com a produção de sua nova obra de arte.
♦♦♦
Quando a agulha perfurou a pele de Victor, Victoria o viu estremecer.
Ela odiava aquele momento. Odiava ver o irmão sofrer.
Segurou firme a seringa. O polegar pressionou o êmbolo, e o líquido âmbar penetrou a medula.
Victor, amarrado de bruços na maca, rangeu os dentes antes de gritar. O corpo inteiro se arqueou, os músculos saltando sob a pele pálida. Espasmos violentos o sacudiram, e Victoria deu alguns passos para trás, incapaz de assistir.
O sangue começou a escorrer dos sete orifícios faciais — olhos, ouvidos, nariz, boca.
Ele se contorcia como se demônios o dilacerassem por dentro.
Se não estivesse preso pelos pulsos e tornozelos, já teria se atirado ao chão — o que seria ainda mais perigoso.
Sim, Victoria odiava tudo aquilo.
Mas era a única que podia aplicar a substância no irmão— uma dose a cada quatro meses.
Não aguentando mais, Vic se virou e saiu do quarto. Aquele inferno ainda duraria horas.
No corredor estreito e mal iluminado, seu passo perdeu o vigor de sempre.
Três meses haviam se passado desde que Mia fora “morta” diante de seus olhos.
E Miguel... ainda não despertara.
Mas Vic acreditava.
Não — sabia que ele acordaria.
Ela tinha visto com os próprios olhos o milagre que era o corpo de Miguel: coração e pulmão quase totalmente destruídos, agora regenerados. Faltava apenas ele voltar a si.
Mia, porém...
Vic apertou os punhos, segurando o choro.
Mia podia ser trazida de volta — esse era o privilégio de um corpo como o dela.
Mas as peças de reposição custariam uma fortuna, e ninguém entre os conhecidos tinha a capacidade ou o equipamento necessário.
Todos os Cyber Engenheiros que consultaram disseram o mesmo: sem chance.
Entre suspiros e passos pesados, Vic chegou ao quarto onde Miguel repousava.
O lugar era simples: uma cama hospitalar antiga, tubos ligados ao corpo dele, monitores emitindo bipes ritmados.
O soro pingava lentamente.
Ela sorriu ao ver Samira dormindo no sofá marrom ao lado — encolhida como um gato, o rosto sereno.
Vic a cobriu com o casaco, depois se aproximou de Miguel. Afastou uma mecha de cabelo de sua testa, num gesto quase maternal.
Ajustou o aquecedor.
Mesmo com o inverno já passado, o frio ainda era cortante naquele prédio abandonado.
Estava prestes a sair quando...
— Por quanto tempo dormi...?
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦
O Primeiro Volume de Primordium acaba aqui. O segundo Volume já está sendo escrito e logo será postado, tenham paciência hehe. Espero que todos que acompanham, estejam gostando do projeto.
Acho que é só isso mesmo xD.
Até logo!
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