Volume 1
Capítulo 32: Doce mas envenenado
Não estava saindo exatamente como o planejado, mas os alvos principais tinham morrido.
Hugo conseguiu relaxar um pouco e tragou fundo.
Mais ou menos.
No canto mais abafado do esconderijo, o escritório estava quase às escuras. A única luz vinha do brilho frio da tela do notebook e dos LEDs azuis piscando nos equipamentos empilhados.
Lá fora, a cidade festejava o São João — fogos, música, gritos. Aqui dentro, o ar pesava, parado, e só o ruido do aquecedor e o clique do mouse quebravam o silêncio.
Hugo sentia o calor grudado na pele, o som distante da festa misturado ao zumbido dos cabos. Parecia que as paredes se fechavam aos poucos.
Na tela do notebook ele rolava o documento da Crimson Wolf com inquietação — cada passo de um plano descrito em detalhes: como dois capangas do tio seriam atraídos para um puteiro na Zona Sudeste; como, drogados, teriam seus celulares — hackeados pela androide do grupo — usados para atraí-lo ao lugar; como seria então executado e, assim, Cezar acabaria culpando os próprios homens.
O início seria em dois dias.
Mas o e-mail não parava ali.
O anexo trazia um mapeamento minucioso dos movimentos da Crimson Wolf no dia de hoje — quem, onde, com quem, e a que horas. Hugo testou cada ponto e viu tudo acontecer como descrito. Linha por linha com mínimos erros.
Quase um mapa do futuro.
Nenhum remetente. Nenhum nome. Só um marcador vermelho: “importante”.
O hacker que ele contratara ficou em silêncio depois de ver aquilo. Disse apenas que era impossível fabricar um e-mail como aquele.
E, o mais estranho, não havia ordens. Nenhuma instrução.
A mensagem o deixava sozinho diante do poder que entregava.
Era assustador.
A princípio, Hugo só planejava se preparar para contra-atacar o plano da Crimson Wolf — pegá-los de surpresa, inverter o jogo. Mas havia mais uma coisa, algo que o forçou a agir hoje.
Entre os anexos do e-mail, havia um vídeo.
Nele, Cezar aparecia conversando com Miguel, como se fossem velhos conhecidos.
Conversavam de forma banal, despreocupados. Ao lado, sua prima Alice — seis anos, vestida com um vestidinho xadrez de festa junina — corria em volta deles, acenando para o rapaz, sorrindo como se o adorasse.
Hugo assistiu sem acreditar.
Alice, que sempre o evitou desde pequena, tremendo só de vê-lo. E agora ela sorria para aquele desgraçado como se o conhecesse há anos?
A gravação seguia, mostrando a escola enfeitada, bandeirinhas, fogueira digital no pátio. Um momento comum. Inofensivo.
Mas dentro de Hugo algo começou a ferver.
O olhar de Cezar no vídeo era o que mais o corroía — aquela expressão de admiração contida, o mesmo olhar que ele tentara arrancar a vida inteira.
Miguel o tinha. Ele não.
Seu peito começou a doer.
As perguntas vieram como um enxame:
O que estava acontecendo?
Por que diabos seu tio e o inimigo estavam tão próximos?
Será que Cezar descobriu tudo? Será que o contratou?
Hugo recuou na cadeira, ofegante. Cada hipótese era pior que a anterior.
A inveja corroía, ácida, misturada ao medo.
Se aquilo fosse verdade, ele estava morto.
O vídeo terminava com Miguel se abaixando para acariciar os cabelos de Alice, sorrindo. Um gesto simples. Quase fraternal.
Hugo sentiu algo dentro dele quebrar.
Rodou o vídeo em um site especializado em deepfake, como se fosse a última luz no fim do túnel — a última chance de provar pra si mesmo que aquilo era falso.
Mas o resultado o destruiu.
Autenticidade total. Nenhum indício de manipulação.
Não podia permitir aquilo!
Hugo montou o plano então, simples e sujo: aproveitar o roteiro perfeito.
Mandou seus homens e freelas exterminarem toda a Crimson Wolf — menos Victoria.
Mia, a androide, deveria ser capturada; o resto, desmontado e vendido no mercado negro.
O ataque correu quase como previsto.
Não tinha grana pra mais mercenários; alguns lobos escaparam. Ainda assim, os alvos centrais foram eliminados.
Mesmo assim, o alívio não vinha.
As notificações confirmavam as mortes de Miguel e Victor; Mia estava sob guarda; Victoria, presa.
Mas o desconforto crescia, arranhando por dentro.
Quem enviara aquele e-mail sabia demais — e o usara.
Tentou contato com os times.
Silêncio.
Os responsáveis por matar Victor, fora de linha.
O grupo de Mia e Victoria, idem.
Hugo franziu o cenho, o dedo tamborilando na mesa. O silêncio se tornou ruído.
Se tivesse ignorado o e-mail, talvez estivesse morto em dois dias.
A sorte lhe sorrira — mas o presente parecia envenenado.
Fechou o notebook.
A tela apagou, e o quarto mergulhou num azul escuro de LEDs.
Ele ficou parado, ouvindo o próprio pulso no ouvido, o corpo quente, a noite explodindo lá fora no arraial.
Levantou-se devagar. O piso rangeu sob as botas.
Pegou o coldre vazio no canto — gesto automático.
Era hora de também agir.
♦♦♦
Em meio à multidão que se aglomerava para gravar e postar no Orkit — o mais novo caos viral da Zona Central — Hugo se misturava. O cheiro de fritura e milho pairava no ar, misturado ao som metálico das sirenes e às vozes excitadas da multidão.
Os policiais tentavam isolar a área, mas era inútil. Gente demais. Câmeras demais.
Ele observava tudo de longe, os olhos frios varrendo o perímetro. Nenhum sinal dos alvos.
Nenhum corpo que interessasse.
Só os freelancers que ele havia contratado… e um dos seus homens fixos, todos estendidos no chão, envoltos em lençóis brancos.
— Ouvi dizer que um maluco chegou com um LEMI-999 e disparou contra uma menina — disse um dos curiosos. — Moleque, a porra da bala atravessou a guria e ainda matou o namorado dela na hora!
— Tá porra!
— Mas a menina não era uma androide? Uma do novo modelo… Nina?
— É. Nesse caso, ainda bem. Mas coitado do moleque. — O outro riu. — Aliás, ele que se foda! Se tem grana pra comprar a androide mais cara do mundo, é herdeiro de merda!
— Pois é, ele que se foda!
Hugo passou entre eles sem olhar, a voz dos idiotas zunindo como moscas. Parou perto da linha de contenção, ouvindo.
Entre risadas e boatos, algo chamou sua atenção. Um grupo de garotos, empolgados, comentava sobre “asiáticos de terno” que tinham aparecido do nada e salvado umas garotas.
— Ei, moleque. — A voz de Hugo cortou o ar. Ele se colocou diante de um dos garotos, talvez uns treze anos, magro e nervoso. — Do que cê tá falando?
O menino engoliu seco. — E-eu só tava dizendo… do nada apareceu um monte de cara, uns dez, todos de terno! E eles tavam com machadinhas!
Outro garoto se meteu:
— Pior que é! Igual aquele filme antigo que meu avô vivia vendo, um de kung fu, com a gangue do machado!
— Cês tão de sacanagem... — Um terceiro riu. — Nem fodendo que esses idiotas tavam imitando um filme velho!
— Cala a boca! — rugiu Hugo. Ele agarrou o primeiro pela lapela e o ergueu. — Que merda aconteceu de verdade?
— R-relaxa, tio! Eu só… — O garoto tentou se soltar, mas cedeu. — Depois que a menina e o namorado morreram, uns caras tentaram sequestrar as outras garotas. Até pegaram a androide, deviam querer vender no mercado negro. Aí… do nada, chegaram esses asiáticos de terno e machados, tipo do filme! Começou uma briga do inferno! Mas eles eram mais, mataram todo mundo, salvaram as meninas e levaram os corpos da androide e do moleque.
Silêncio.
Hugo o soltou. O garoto caiu de joelhos e tossiu, mas ele já não ligava.
Virou-se e foi embora, o zumbido das vozes ficando pra trás.
Quem são esses desgraçados?
A inquietação corroía cada fibra do seu corpo.
♦♦♦
E aí, meus patriotas queridos! Como estamos nesta noite de São João maravilhosa?! Eu não sei vocês, mas eu tô muito bem servido! Já esperávamos festas juninas animadas, mas quem iria imaginar uma cena digna de filme de ação do século passado?!
Hugo bufou, desviando o olhar da maldita cobra em seu smoking verde e amarelo, que falava as notícias da noite enquanto tragava um charuto.
O holograma gigantesco era projetado sobre o céu do Distrito 4 por dezenas de drones, formando a imagem tridimensional.
Infelizmente, não há imagens nítidas da confusão durante a tradicional festa junina da Zona Central — o evento que todo ano para a cidade nessa época! Muito, muito estranho, não acham meus queridos patriotas?! Tudo sumiu! Câmeras de segurança, filmagens, fotos, drones... puff! Tudo apagado dos dispositivos!
As poucas imagens que restaram estão tão ruins que mal dá pra entender alguma coisa — só um monte de maluco de preto metendo kung fu! Ha! Iá! Pá! Hehe! Até eu sei lutar, viram?!
A filmagem foi exibida logo após a cobra fingir golpes de kung fu.
Como ela havia dito, a imagem estava péssima — quase nada era reconhecível.
E então, diante dos olhos de todos, o vídeo começou a se desfazer... partículas vermelhas flutuaram, e a projeção virou poeira carmim.
Até Hugo ficou impressionado.
Que porra... Vocês viram isso, meus patriotas?! Puta que o pariu! Arrepiei até os cabelos do cu! Parece que alguém muito poderoso tá tentando esconder alguma coisa da gente...
A cobra fez uma pausa dramática, tragou o charuto e abriu um sorriso debochado.
Epa! Acabou de chegar outra notícia incrível!
O holograma piscou, e uma nova filmagem surgiu.
No Distrito 11, três corpos foram encontrados desfigurados na frente de um motel! Testemunhas relataram tiros e gritos — e, puta merda, parece que um demônio massacrou esses caras! Deem uma olhada!
As imagens eram horríveis.
Uma senhora ao lado de Hugo vomitou, quase acertando sua bota, mas ele nem percebeu.
Os olhos estavam fixos na projeção.
Reconheceu dois dos mortos.
Eram os homens que ele mesmo contratara para matar Victor.
Mais uma vez, a imagem se dissolveu em poeira vermelha.
Caralhooo... quem quer que seja esse hacker... porra, é o mel—
E a cobra se desfez em particulas carmesim.
— Mas que caralho tá acontecendo?! — Hugo rosnou, encarando o céu vazio.
♦♦♦
A preocupação crescia a cada segundo. Nenhum sinal de seus homens. Nenhuma resposta. Nada.
Hugo atravessava ruas vazias, desviando de carros e poças de água que refletiam a luz amarelada dos postes. Essa parte da cidade parecia deserta demais, talvez pelo fato da maioria das pessoas estarem festejando o São João, embora o som distante de sirenes e passos ecoasse pelos becos.
Horas atrás, tudo seguia como planejado. As emboscadas contra a Crimson Wolf haviam dado certo. Mas, de repente, tudo desmoronara, como um castelo de areia sendo levado pela maré. E ele estava sozinho. Absolutamente sozinho.
O impulso de ligar para o tio o atravessou, mas o orgulho e o ressentimento travaram seus dedos. E se o tio tivesse mesmo se aliado a Miguel? A ideia queimou sua mente. Ele matara o inimigo horas antes. Se o tio descobrisse… a punição seria implacável.
Seria seu fim.
Uma vibração no bolso cortou seus pensamentos.
Hugo arrancou o celular com pressa, quase tremendo.
Na tela, apenas uma localização. Próxima. Nada mais.
Nenhum número, nenhuma foto, nenhum endereço. Apenas um ponto. Como se a mensagem tivesse vindo de um fantasma.
Não havia saída.
Não havia escolha.
Se alguém podia prever cada passo de seus inimigos, controlar até os portais de notícias da cidade e manipular a informação da rede naquele nível… o encontrar e acabar com ele era tão fácil quanto virar a mão.
Era como se os lendários Black Quill o observassem, rindo da sua impotência.
Respirou fundo.
Não havia mais volta.
Seja o que Deus quiser...
O prédio abandonado se ergueu diante dele como um monólito.
Quando alcançou o topo, a vista se abriu: a cidade inteira se espalhando sob a noite, luzes piscando como estrelas caídas.
Hugo parou, sentindo o frio da altura e o peso do destino.
Finalmente, ele chegara.
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