Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 9: Rosa Azul Banhada em Sangue parte 2

O alvo estava no segundo andar. Um homem negro de tranças brancas, de porte imenso, mesmo sentado. No sofá de couro negro, seu braço direito envolvia os ombros de uma mulher voluptuosa, e sua mão brincava com os seios dela sem qualquer pudor.

O braço esquerdo — ou melhor, a prótese — reluzia em um cromado brilhante, refletindo os tons de neon que iluminavam a boate. O membro robusto, feito de metal, silicone e mangueiras que simulavam veias e músculos, atraía olhares curiosos.

Entre risos, ele levava sua bebida multicolorida à boca, dava uma boa golada e, sem precisar pedir, um subordinado enchia seu copo novamente.

Miguel, ainda com Samira no primeiro andar, observava o homem por um tempo, o olhar levemente franzido.

— O que houve? — Samira perguntou, em tom baixo.

— Esse cara... é forte. E aquele braço esquerdo, interessante. — Miguel disse, os olhos fixos no alvo.

— Se chama “Braço de Hércules”. Essa é a versão 2.0, lançada há dois meses pela corporação LEMI. — Mia compartilhou a informação que acabara de pesquisar rapidamente.

Samira assentiu. — O modelo antigo já era bem popular, esse novo... nem se fala. Se não custasse o olho da cara, ia ter muita gente com um desses. — Ela inclinou a cabeça, um brilho preocupado surgindo em seus olhos violetas. — Como você sabe que ele é forte?

Miguel acariciou o rosto de Samira, a expressão tranquila. — Já me envolvi em batalhas o suficiente para ter uma ideia da força de alguém só de olhar. Mas relaxa. — Ele sorriu, confiante. — Eu sou muito mais forte.

Samira franziu os lábios, um sorriso brilhando em seu rosto, seus olhos transmitindo confiança total nele.

— De qualquer forma, não viemos aqui para brigar, mas para negociar. Não é?

— Exato. Vamos lá.

Um homem do tamanho de um armário, vestindo terno e gravata, bloqueava a escada para o segundo andar. Poucas pessoas tinham permissão para subir, e Miguel deduziu que a chave para passar fosse uma pulseira dourada — pelo menos, era isso que as pessoas com acesso usavam.

Quando ele e Samira se aproximaram, o homem levantou a mão direita, um gesto claro para que parassem. Seus óculos escuros dificultavam a leitura de seu rosto, mas a indiferença era evidente.

— Fala, parceiro. Vim para tratar de negócios com seu chefe.

Samira permanecia tranquila, como sempre.

— Sem autorização, ninguém passa. Sumam.

A resposta foi mecânica, como se ele fosse um robô.

— Tsc. Liga para o seu chefe. Diga que somos representantes dos Crimson Wolf. Tenho certeza de que ele vai nos deixar passar.

— Eu disse para sumirem. Não irei repetir.

O sorriso de Samira desapareceu, e seu olhar se tornou frio. Por um momento, ela quase pediu a Miguel para mandar o guarda voando. Mas, antes que pudesse agir, uma voz familiar a interrompeu.

— Sam? O que tá fazendo aqui?

A garota desceu as escadas lentamente. O shortinho branco de couro destacava suas longas pernas, e o movimento de sua caminhada deixava à mostra uma silhueta impressionante. Sua cintura delgada, os seios empinados, e a blusa holográfica curta, complementada por uma jaqueta rosa bebê, completavam o visual.

Os cabelos curtos, em tons de rosa com mechas violetas, eram cortados em um long bob que transmitia uma aura sedutora. Seus piercings prateados nas orelhas e o delineado negro que marcava seus olhos davam um toque ousado e hipnotizante à sua aparência.

— Ju?! Ah! Ju! Quanto tempo.

— Ei, dá o fora. Não tá vendo que ela quer passar? — Julia olhou friamente para o guarda. Em vez de retrucar, ele inclinou a cabeça para baixo e, sem mais palavras, permitiu a passagem de Samira e Miguel.

As garotas se abraçaram, sorrisos amplos nos rostos. Julia parecia ser um pouco mais velha, talvez dois ou três anos a mais que Miguel.

— E quem é ele? — perguntou Julia, curiosa.

— Meu namorado. O nome dele é Miguel.

— Oh! Ele é bem bonito. Mas... não sei... parece... fofo demais?

Num mundo onde a esperteza e a força eram requisitos para a sobrevivência, ser fofo não era um atributo tão útil, a menos que seu trabalho principal envolvesse vender o corpo. Miguel não tinha aquela aura das ruas, e seu olhar era até certo ponto, inocente, apesar de calmo. Por isso Julia disse aquilo.

— Heh. — Samira sorriu de forma misteriosa. — Ele é mesmo muito fofo, mas não o julgue pela capa.

— É mesmo? — Julia disse, cética. Então, virou-se para Miguel. — E aí. Meu nome é Julia.

Julia o cumprimentou com um sorriso, enquanto o olhava de lado, seu olhar afiado e curioso, como o de uma raposa. Miguel, que não costumava se incomodar com olhares, sentiu um impulso estranho. Algo naquele olhar parecia diferente, como se estivesse sendo sondado, e sem pensar muito, ele retribuiu o olhar, mais curioso do que interessado.

À primeira vista, ele não via nada de extraordinário em Julia, além de sua beleza óbvia, mas quando seus olhos se encontraram, Miguel não pôde evitar. Era como se uma energia invisível tivesse sido trocada entre eles, uma percepção silenciosa. Ele sentiu o peso da atenção dela sobre si, e, sem entender o motivo, continuou a olhar. Mas em vez de ceder à tentação de desviar o olhar, ele se aprofundou na curiosidade, como se quisesse entender o que se escondia por trás daqueles olhos esverdeados.

Julia, que inicialmente pensava que Miguel fosse apenas mais um garoto bonito, começou a sentir algo mais. A intensidade do olhar dele a desconcertava. Ela queria se livrar daquela sensação estranha, mas não conseguia desviar os olhos.

Era como se, por um breve momento, a percepção de ambos tivesse mudado. Os olhos de Miguel eram profundos e enigmáticos, e algo naquelas esferas negras fazia Julia se sentir pequena, como se estivesse sendo devorada por um abismo invisível. Ela tentava se manter firme, mas seu coração acelerava a cada segundo.

Finalmente, com um movimento rápido, Julia se afastou, desconcertada, sem saber o que exatamente aconteceu. Tentou disfarçar a ansiedade com um sorriso, mas não conseguiu esconder a leve tensão nos ombros. Ela brincou com suas mechas violetas, uma forma de se recompor, mas ainda sentia o peso do olhar de Miguel em sua pele.

— Ei, ei, ei! — Samira gritou, acenando freneticamente para Julia.

Eu sabia! Daquela vez não foi coisa da minha cabeça! Tem algo nesses olhos!

Samira se lembrou da primeira vez que viu Miguel, o impacto ainda vivo na memória.

— Valeu por nos ajudar, Ju! — Samira quase gritou novamente. Em seguida, revirou os olhos e, com um sorriso falso, provocou: — Hehe, mal conheceu minha amiga e já tá querendo incluí-la no harém?

— Miguel está até parecendo um cachorro no cio, hein... — Mia também não perdeu a chance de provocar.

— Harém? — Julia levantou uma sobrancelha, analisando Miguel por um momento antes de olhar de volta para Samira. — Então tem outras? Hoho... as aparências enganam mesmo. O fofinho é na verdade um sonso.

Miguel se perguntou o que diabos tinha feito para causar aquele efeito. Estava completamente alheio à sua “habilidade” de hipnotizar com o olhar. Depois de suspirar cansado ele agradeceu a Julia.

— Bom, obrigado pela ajuda.

— De nada. Mas o que vieram fazer aqui? — Julia perguntou, lançando um olhar questionador para Samira. — A Luna sabe que vocês tão aqui?

— Claro que sabe. Ela até emprestou a moto pra gente.

— Sério? — Julia arqueou as sobrancelhas, surpresa. — Desde quando sua irmã deixou de ser tão cuidadosa? Aquela moto era o xodó dela, vivia morrendo de ciúmes.

— Acho que ela finalmente parou de me tratar como criança. — Samira empinou o queixo, orgulhosa. — Além disso, Miguel tá comigo. Hehe.

Julia deu uma olhada rápida em Miguel. Tirando aquela sensação estranha e quase hipnótica que sentiu ao cruzar olhares com ele, o garoto não parecia ter nada de extraordinário. No entanto, ela apenas suspirou.

— Tá bom, mas o que vocês estão fazendo aqui afinal?

— Viemos negociar com o Hugo. — Samira abriu a mochila e mostrou o conteúdo a Julia. Lá dentro, pacotinhos coloridos com "Aurora Phase" escrito em letras holográficas brilhavam sob a luz.

— As balinhas da Vic, hein? — Julia deu uma risada curta, mas logo seu rosto ficou mais sério. — Mas não seria melhor o Victor cuidar disso? Hugo é um peixe grande.

— Victor tá ocupado demais. Além disso, quero fazer isso. Tô cansada de só me darem tarefas fáceis.

Julia inclinou a cabeça, um sorriso ligeiramente divertido surgindo em seus lábios.

— A lobinha quer mostrar os dentes, hein?

— Humpf.

— Tá bom, boa sorte então. Se precisarem de mim, vou estar por perto. — Julia acenou com a cabeça e pegou uma cerveja no balcão próximo antes de se recostar casualmente no parapeito.

Ela não foi embora como parecia que faria antes de esbarrar com Samira. Em vez disso, permaneceu de olho neles, sua postura relaxada escondendo uma atenção sutil.

Samira avançou sem hesitar, mas foi novamente bloqueada, era outro homem alto e corpulento. Ao menos, ele parecia menos frio.

— E aí — ela disse, casual, mas com firmeza. — Quero falar com teu chefe. Tenho algo que pode interessar a ele.

O homem arqueou uma sobrancelha, analisando-a por um instante. Depois, lançou um olhar a Miguel, que estava parado ao lado dela, carregando apenas um capacete vermelho.
— Do que se trata?

Com a confiança habitual, Samira tirou um pequeno pacote de sua mochila e o estendeu para ele. Dentro, três esferas brilhantes, translúcidas e coloridas, pareciam bolinhas de gude perfeitas.

— Isso aqui. Pela sua cara, aposto que sabe o que é.

— Aurora Phase. — Ele assentiu lentamente antes de acrescentar: — Espera aí. Vou falar com o chefe.

Ele se afastou, indo em direção a Hugo. Samira observou de longe enquanto o homem entregava o pacote. Hugo abriu a sacola, segurou uma das esferas entre os dedos grossos e a analisou contra a luz. Após trocar algumas palavras com o subordinado, o homem corpulento voltou.

— O chefe vai ouvir o que você tem a dizer.

— Valeu, mano. — Samira sorriu, uma mistura de travessura e charme.

O homem soltou uma risada abafada enquanto passavam por ele. Miguel limitou-se a acenar com a cabeça, seguindo atrás dela em silêncio.

Diante de Hugo, que mesmo sentado tinha uma presença intimidadora, Samira sentiu, pela primeira vez, um leve desconforto.

Samira engoliu em seco, mas manteve a postura. Hugo a encarava com intensidade, um olhar penetrante que parecia atravessá-la, a mão direita apertando vulgarmente o seio da mulher ao seu lado. Não bastasse isso, Hugo a encarava com um olhar malicioso, carregado de depravação, o que fez Samira se arrepiar de nojo.

Miguel, atento como sempre, captou o olhar. Um desgosto profundo o percorreu, mas sua expressão permaneceu indiferente, inabalável. Apenas observava.

Hugo inclinou-se na cadeira, o olhar ainda fixo em Samira. Ele brincava com a esfera em suas mãos, girando-a lentamente entre os dedos.

— Aurora Phase, hein? A parada do momento. Produzido por uma pirralha. — Sua voz era grave, arrastada. — Foram essas balinhas que tornaram os tais Crimson Wolf tão poderosos em um curto tempo. Hehehe. Então, a lobinha veio aqui para expandir os negócios?

— É isso aí. — Samira estava confiante. — Não acha que seria um bom negocio ter Aurora Phase no cardápio dessa boate? Como disse “é a parada do momento”. Vai vender pra caralho.

Hugo ergueu uma sobrancelha, a mão ainda ocupada no corpo da mulher.

— Vender pra caralho? — Ele repetiu, o tom carregado de sarcasmo. — Menina, minha boate não precisa de ajuda. Não preciso de “balinhas mágicas” pra encher meus bolsos.

Ele se levantou de repente. A mulher ao seu lado se afastou ligeiramente, mas Hugo não parecia notar ou se importar. Ele caminhou até Samira, parando perto o suficiente para invadir seu espaço pessoal.

— Agora me diga, lobinha... — Ele começou, o tom baixo. — Não preciso do dinheiro que, talvez, essas balinhas possam trazer. Então, por que eu deveria abrir espaço pra você na minha casa?

Samira, embora incomodada, manteve o tom desafiador.

— Que tal, poder? Aurora Phase é exclusivamente vendido pelos Crimson Wolf, se você tiver nossa droga em seu portfólio demonstrará que é um dos nossos sócios, por consequência, sua autoridade aumentaria, não é? Possa ser que você realmente não se interesse pela grana, e cara, duvido muito disso, mas ainda assim, ter mais poder nessa região não é nada mal, né?

Hugo riu novamente, mas dessa vez o som era mais sombrio. Ele segurou o queixo de Samira com dois dedos, forçando-a a olhar diretamente para ele.

— Poder, é? — Ele murmurou, seus olhos analisando cada detalhe dela. — Garotinha, você realmente acha que essa ganguezinha que faz parte é tão forte? Você não faz ideia do que é poder.

Miguel, até então em silêncio, deu um passo à frente, mas Hugo sequer olhou para ele. Soltando Samira, ele se virou e gesticulou sutilmente para seus homens.

O silêncio que se seguiu foi quase insuportável. Hugo voltou a sentar-se, cruzando as pernas e retomando sua posição descontraída, mas o olhar predatório nunca deixou Samira.

— Sabe o que eu acho? — Ele disse, depois de um momento. — Eu acho que você é corajosa. Idiota, mas corajosa. Invadir minha boate, trazer essa porcaria pra cá... Isso exige ousadia.

Samira deu um passo atrás, sentindo o ar mais pesado.

— Então, vai aceitar o negócio ou não? — Ela perguntou, tentando manter a voz firme.

Mas no fundo, Samira já sabia a resposta.

Hugo riu, um som baixo e ameaçador.

— Aceitar? Não. Mas vou te ensinar uma lição sobre quem manda aqui. Ninguém invade a minha casa e saí sem mais nem menos.

As palavras de Hugo foram acompanhadas de um movimento autoritário, e logo quatro homens se posicionaram ao redor do casal, fechando o cerco.

Foi então que Miguel falou, a voz fria cortando a tensão no ar como uma lâmina afiada.

— Tem certeza de que quer fazer isso?

Hugo, foi pego de surpresa pela frieza de Miguel. Seus olhos vazios de emoção, sua postura implacável. Hugo, o macaco velho, experiente nos jogos sujos das ruas, sentia por puro instinto que aquele garoto não era qualquer um. Mas ainda assim, ele riu, com desdém.

Se levantando com uma rapidez inesperada, Hugo disparou seu braço esquerdo como um raio, atravessando o ar com brutalidade. Mas, ao contrário do que Samira esperava, o golpe não foi dirigido a Miguel. Ele foi direcionado a ela.

A garota fechou os olhos instintivamente, esperando o impacto. Mas, no último segundo, sentiu um empurrão violento em seu ombro, sendo lançada para o lado. Quando abriu os olhos, foi só a tempo de ver Miguel sendo arremessado com uma violência quase desumana. O golpe de Hugo, imbuído da força brutal do “Braço de Hércules”, atingiu Miguel com precisão, lançando-o para trás com força.

O impacto foi devastador. O parapeito de madeira estalou sob o peso do golpe, quebrando-se em pedaços enquanto Miguel voava para o primeiro andar da boate. Samira, atônita, sentiu um calafrio percorrer sua espinha. A visão de Miguel sendo lançado daquele jeito a abalou mais do que qualquer outra coisa até aquele momento. Ela quase não conseguia acreditar no que acabara de ver.



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