Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 9: Novos companheiros

O carro avançava devagar entre os outros veículos, presos num fluxo engarrafado que se estendia até onde os olhos alcançavam. Do lado de fora, prédios pichados e monólitos de concreto riscavam o céu opaco — mas o asfalto... estava liso. Liso demais. Sem buracos, sem rachaduras. Como se alguém tivesse passado verniz por cima.

Miguel dirigia com uma mão no volante e a outra apoiada na moldura da janela aberta. O olhar era fixo, cortante, mas calmo. Mesmo assim, algo o incomodava. Uma sensação persistente de estranhamento.

Não era só o asfalto perfeito — era o carro. Totalmente diferente dos modelos que ele lembrava do século passado. O volante não era circular, parecia um modelo simplista dos volantes de formula 1 do século passado. O painel era todo digital, com luzes pulsando e comandos por toque. A IA embutida murmurava sugestões em segundo plano, como um copiloto invisível.

Os pedais ainda existiam. E Miguel fazia questão de usá-los.

Pietro lançou um olhar lateral, franzindo a testa, parecendo intrigado.

— Você se preocupa mesmo com sua namorada, mesmo ela sendo um robô — disse.

Miguel não respondeu de imediato. Só apertou levemente o volante, e seus olhos piscaram devagar.

— Mia não é minha namorada. — O tom foi plano, sem raiva. — Mas é muito importante pra mim.

Virou ligeiramente o rosto, só o suficiente para encarar Pietro de canto.

— E não a trate como se ela fosse só um robô. Mia está viva. Tem consciência. Tanto quanto eu. Tanto quanto você.

O silêncio que se seguiu foi mais incômodo que a buzina aguda de uma moto ao lado.

Pietro recostou-se no banco, soltando o ar pelo nariz.

— Não é sua namorada? Jura? — perguntou enfim, em um tom mais baixo. — O jeito que ela olha pra você... parece que o resto do mundo desaparece. Só existe você. A forma como se movem juntos, a distância entre vocês, os silêncios... é difícil acreditar que ela é só “alguém importante”.

O carro avançou mais alguns metros. O motor sussurrava. Miguel ficou em silêncio, os dedos tamborilando no volante, os olhos presos à estrada.

— É complicado — disse por fim, quase como se falasse consigo mesmo.

Pietro lançou um olhar lateral, rápido. Não insistiu. Apenas puxou um cigarro do bolso, acendeu com um estalo breve e tragou em silêncio. A fumaça se espalhou devagar pelo interior do carro, misturando-se ao ar saturado de tensão.

— Bom... assim como você se preocupa com a sua companheira — começou, a voz mais firme —, eu me preocupo com os meus.

Virou-se para Miguel, olhos afiados como lâminas.

— Sendo assim... se eu sentir que vocês representam perigo pro grupo, mato vocês na hora.

Miguel não piscou. Nem uma mudança no tom do olhar. Não houve desdém, nem deboche. Muito menos incredulidade diante da ameaça feita por alguém com feições tão suaves.

— Justo.

♦♦♦

Depois que Miguel saiu com Pietro, Mia esperou enquanto Ed atendia o grupo que tinha chegado um pouco depois deles.

— Luna não tá? — perguntou a mulher loira.

Ed balançou a cabeça. — Deu uma saída. — Tentava, com todas as forças, não encarar aquele par de seios escancaradamente provocativos.

— Hm. Depois eu falo com ela então. Vou querer a sala de sempre.

Ele assentiu, mantendo a cabeça baixa.

Mas antes de a mulher seguir pelo corredor que levava às cabines de karaokê, se virou mais uma vez para Ed.

— Aliás, desde quando vocês ficaram tão covardes a ponto de engolir as ameaças de um moleque?

A voz veio carregada de desdém. Ela lançou um olhar afiado para Mia, seguido de um sorriso impossível de decifrar.

— Miguel se juntou à gente ontem — explicou Ed, tentando soar neutro. Apesar do visual punk, parecia bem covarde. — A Luna avisou que ele era assim mesmo, mas disse que não tinha com o que se preocupar, desde que ninguém mexesse com a garota dele.

A mulher pareceu ainda mais interessada. Se aproximou de Mia, cara a cara. Mia ficou desconfortável, não por medo, mas pela situação: os peitos enormes da mulher quase encostavam nos seus. Comparados aos seus, pequenos, Mia se sentiu meio... diminuída.

— Você é uma dessas assistentes Nina? Primeira vez que vejo uma de perto. As propagandas não estavam mentindo, viu? Você é perfeita.

Ela fez um leve bico, irritada. De novo isso?

— Não sou uma dessas assistentes Nina. E meu nome é Mia.

A mulher piscou, surpresa.

— É mesmo? É que você é a cara da androide dos holo anúncios. Desculpa pela confusão.

Mia deu de ombros. A tensão aliviou um pouco.

— E você? Parece conhecer bem o pessoal da Crimson Wolf.

— Hehe. Selina. Sou só uma cliente frequente. Mas tá certa, conheço bem os lobinhos. Todos uns fofos. Até mais, Mia.

Mia assentiu em silêncio.

Selina pegou a chave da cabine com Ed e desapareceu no corredor.

Ele soltou o ar, aliviado, passando a manga da jaqueta pela testa suada. Os ombros, enfim, relaxaram.

— Uau... você e seu namorado são mesmo impressionantes. Nunca vi ninguém lidar tão bem com a Selina logo de cara.

— É mesmo? O que sabe sobre ela?

Ed coçou a cabeça, envergonhado.

— Não muito. A Luna que é mais próxima... talvez possa perguntar pra ela depois. O que sei é que a Selina tem trinta e poucos, trabalha como enfermeira numa clínica clandestina no Distrito 14... e, bem... tá sempre cercada de homens. Dizem que ela é meio insaciável. Um dos boatos mais antigos é que um dos amantes dela chegou a ter um infarto — enquanto ela estava por cima dele.

— Oh... — os olhos de Mia brilharam.

— Vem, vou te mostrar o lugar.

Mia assentiu e o seguiu com passos leves.

O corredor era apertado, com várias portas numeradas de maneira caótica. Ed abriu uma das salas vazias e mostrou o interior a Mia.

Por dentro, a cabine lembrava os modelos asiáticos antigos, populares no século passado. Uma mesa de centro redonda ocupava o meio do ambiente, cercada por um sofá branco de couro sintético já meio gasto.

No teto, quatro canhões de LED giravam devagar, piscando cores em padrões aleatórios que iluminavam o globo espelhado suspenso no centro. Uma televisão de tela plana presa em uma das paredes. Microfones sem fio de design retrô estavam presos nas laterais, e os autofalantes, embutidos, vibravam em silêncio.

Ed comentou que, apesar da fachada de karaokê, a maioria usava o lugar pra chapar, foder ou fazer qualquer outro tipo de bagunça. A política da Vênus era bem liberal: podia quase tudo, desde que não envolvesse assassinato ou violência.

Mia jurou ter ouvido gemidos abafados vindos da cabine ao lado. Decidiu ignorar. Ed também não demonstrou reação — talvez nem notasse mais.

Ela deu uma olhada rápida no tablet sobre a mesa: o cardápio. Tinha de tudo. Drogas sintéticas, bebidas, lanches, camisinhas, brinquedos eróticos descartáveis. A Aurora Phase aparecia no topo da lista, com destaque berrante.

Depois pegaram o elevador e foram ao subsolo. Ed comentou que os andares superiores seriam mostrados depois por Luna, já que uma parte funcionava como moradia de funcionários, incluindo ela e a irmã, Samira.

Assim que as portas se abriram, Mia soltou um suspiro empolgado.

O subsolo era dividido em dois setores.

À direita, um laboratório tecnológico bem equipado. Bancadas extensas cheias de monitores e sistemas conectados entre si. Em um dos cantos, uma cadeira de aparência futurista chamava atenção — lembrava um trono espacial. O assento acolchoado em couro preto contrastava com a estrutura plástica robusta que o envolvia. No topo, um capacete estranho com um cabo grosso se conectava diretamente à base da estrutura.

Do lado esquerdo, separado por uma parede de vidro grosso já meio fosco, duas máquinas industriais agitavam um líquido espesso e colorido em caldeiras ferventes. O vapor subia lento, tingido de neon. Mia reconheceu o processo na hora — igual ao da fábrica onde conhecera Luna. Produção da Aurora Phase. Sem dúvida.

Algumas pessoas trabalhavam por ali. No lado dos computadores, vestiam roupas casuais, num estilo funcional misturado com utilitarismo urbano. Já no lado das caldeiras, todos usavam trajes de proteção e máscaras de ar.

— Bem, fique à vontade — disse Ed, já se virando pra ir embora. — O pessoal aqui não é muito sociável, então não estranha se te ignorarem. Qualquer coisa, me chama.

Mia acenou e foi direto até um dos rapazes diante de uma tela. Ele parecia absorto demais pra notar sua aproximação.

— Oi... — murmurou, e imediatamente se arrependeu.

Na tela, uma personagem 2D se movia ritmicamente... Sozinha. Brincando com—

O cara trocou de aba no reflexo, como se tivesse treinado pra isso. Tentou manter a postura, mas o vermelho que subiu até as orelhas dizia tudo.

— Desculpa — Mia ficou tentada a sair andando dali. Mas quando deu um passo, ele esticou o braço e tocou nela, só pra recuar no mesmo instante.

— Fo-foi mal! É que... é que...

A gagueira era sincera. Mia não sabia se ele tava com vergonha por ter sido pego, ou com medo dela, ou os dois ao mesmo tempo.

— Vo-vo-você é a Mia, certo? — ele conseguiu articular, quase num soluço.

Na mesma hora, os outros pararam o que estavam fazendo e se viraram. Ela sentiu o peso coletivo dos olhares.

Instintivamente, recuou meio passo. Mas não havia ameaça nos rostos — só uma mistura estranha de expectativa, nervosismo e... empolgação?

— É... sou. — Mia curvou levemente. — Quem são vocês?

A resposta tímida os fez congelarem por um segundo.

— Eu sou o Julian!

— Alex!

— Rufus!

As vozes se atropelaram. Empolgados demais pra parecerem naturais.

Apesar do começo esquisito, Mia não se incomodou. Eles tinham aquele jeito nerd-introvertido, mas eram simpáticos.

Fizeram questão de mostrar o laboratório: bancadas bem organizadas, telas com visual moderno, algumas interfaces de toque que pareciam redesenhadas por eles mesmos.

Os sistemas rodavam lisos. As cadeiras eram ergonômicas e bem estilosas, as luzes tinham um tom vibrante, e a ventilação era agradável.

No fim, Mia se sentou diante de um dos computadores. Sentiu o desconforto subir quando percebeu que os três ainda a observavam de canto, mas ignorou.

Estendeu o braço sobre a mesa, e seu pulso direito se abriu com um discreto clique. Um compartimento circular deslizou de lado, revelando o cabo interno, enrolado como um músculo metálico. Ela puxou com firmeza e conectou a ponta tipo-C em uma das entradas do servidor.

Um pulso elétrico percorreu sua pele, e os monitores reagiram de imediato.

O sistema operacional exibido na tela lembrava o antigo Linux — enxuto, funcional, direto. Mas Mia não precisava de teclado ou mouse. Pastas e aplicativos se abriam com comandos mentais, como se sua mente fosse o próprio sistema.

A familiaridade com aquela estrutura facilitou tudo. Em segundos, ela havia linkado seu próprio sistema interno ao do computador, e começou a programar uma atualização sob medida. Seria seu passaporte para se conectar à nova rede de internet.

O processo levou menos de cinco minutos.

Os nerds ao redor estavam hipnotizados, observando a androide interagir com o sistema como se fosse parte dele. Em poucos minutos, ela criou um pacote completo de atualizações para si mesma, concluiu a sincronização e desconectou o cabo.

Não precisava mais dele.

Agora, Mia podia acessar a rede tanto por conexão física quanto via Wi-Fi.

Ela lançou um sorriso tímido para os rapazes — e pôde jurar dois deles tampando os narizes com as mangas da camisa.

— Por favor, cuidem de mim. Vou acessar o ciberespaço agora.

— Vamos proteger você com nossas vidas! — gritaram em uníssono.

Mia corou de vergonha, suspirou e fechou os olhos. Precisava se concentrar. O que estava prestes a fazer ia além de uma simples navegação.

Sua consciência mergulhou fundo.

E então, ela abriu os olhos.

O mundo ao redor havia mudado. Linhas de código brotavam do nada, formando estruturas abstratas, colunas de dados, blocos monolíticos se erguendo num horizonte infinito de bits. Aos poucos, texturas começaram a recobrir o cenário, dando mais substância àquele lugar surreal.

Ela havia entrado no ciberespaço.

Um ambiente imersivo, onde a consciência se condensava em forma digital. Aqui, o corpo era feito de dados, mas ainda assim sentia peso, movimento, presença. Mia olhou para as próprias mãos — idênticas às de sua forma real. Não ficou surpresa. Já havia sido assim no século passado.

Naquela época, ela era a única capaz de acessar o ciberespaço.

Agora, sentia milhares de outras consciências conectadas, fluindo ao seu redor como ecos de pensamentos em trânsito.

Ela ergueu os olhos para o céu.

Era negro. Negro como um abismo de zeros e uns, onde bilhões de bits se enroscavam como uma teia viva. Mas, apesar da quantidade de dados, o céu permanecia inalterado — escuro, intacto, como se os dados jamais fossem capazes de ocultar sua escuridão. Era uma cúpula silenciosa, como um véu de silêncio sobre o caos.

E lá no alto, uma luz.

Uma fonte de brilho vermelho carmesim pulsava, irradiando linhas de dados em todas as direções. Das suas bordas partiam conexões que se ramificavam, tecendo uma teia complexa que ligava incontáveis pontos da rede.

Aquele era o núcleo.

O coração da nova internet.

Se Mia conseguisse acessá-lo...

Ela teria domínio sobre todos os sistemas conectados àquele ponto. Literalmente, poderia se tornar uma deusa naquele mundo virtual.

Ela sorriu.

E com um simples pensamento, começou a voar.

Atravessou os blocos de dados em segundos. Quando chegou à fonte carmesim, estendeu a mão.

Era um gesto redundante, quase teatral — mas mesmo assim, ela tocou a luz.

♦♦♦

Os nerds aguardaram por algum tempo até começarem a ficar entediados. Claro, apreciavam a beleza etérea de Mia, mas queriam fazer mais do que apenas ficar ali assistindo. Quando cogitaram se revezar para acessar a rede e o ciberespaço, viram Mia abrir os olhos e quase saltar da cadeira inclinada.

Ela parecia completamente estupefata, aterrorizada — como se acabasse de voltar de um pesadelo. Suava e tremia. Seus olhos se encheram de lágrimas, e o choro veio sem barreiras.

Todos ficaram chocados com a sequência de eventos. Ninguém sabia o que dizer. Só puderam ficar em silêncio, tentando imaginar o que poderia ter acontecido com Mia.

Por que ela parecia tão desesperada?

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