Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 8: Rosa Azul Banhada em Sangue parte 1

Vênus era mais do que um karaokê. O estabelecimento, com suas várias salas privadas, lembrava um modelo popular no século passado, especialmente no leste asiático. No entanto, o charme vintage escondia um núcleo sombrio.

O prédio de três andares destinava os dois primeiros andares às salas privadas. No terceiro, o acesso era exclusivo para funcionários e servia de moradia para alguns, incluindo Samira e sua irmã, Luna. Mas o verdadeiro segredo de Vênus estava enterrado no subsolo — um espaço clandestino dedicado à produção da droga sintética conhecida como Aurora Phase.

Na superfície, Vênus operava como um karaokê qualquer, mas as salas privadas poucas vezes eram usadas para cantar. Grupos se reuniam ali para consumir Aurora Phase e outras substâncias, sem discrição. O ar carregado frequentemente denunciava o uso intenso de drogas, enquanto bebidas eram apenas um complemento. No dia seguinte, era comum encontrar camisinhas usadas no carpete ou no sofá, além de manchas suspeitas em locais inesperados.

A polícia não os incomodavam, afinal, o suborno era bom o bastante para fazer vista grossa para quase qualquer tipo de negócio feito ali.

  • Região Noroeste do Distrito Federal. 19:34.

Miguel parou a moto esportiva nos fundos da boate “Rosa Azul”. Samira que estava agarrada a ele desceu do veiculo tirando o capacete rosa.

Enquanto Miguel terminava de estacionar a moto, Samira conferiu o interior de sua mochila.

— É, tá tudo aqui. — Ela sorriu.

Miguel se aproximava, deixando para trás o traje negro de antes. Sua nova roupa refletia a moda atual, mas sem perder o estilo sombrio que o definia.

Ele usava um sobretudo curto, que batia pouco abaixo da cintura, feito de um tecido preto fosco e resistente, nas costas, uma costura quase invisível traçava padrões geométricos minimalistas, algo que apenas os olhos mais atentos captariam. Por baixo, uma camisa térmica da cor do carvão, de gola alta e mangas longas.

As calças tinham um tom grafite, com tecido sintético ajustado, mas resistente a cortes. Nos pés, botas táticas negras, com fechos magnéticos.

O cabelo curto, levemente bagunçado, sombreava parte de seu rosto, realçando o ar enigmático que sempre o acompanhava.

Com olhos felinos, Samira analisava o novo visual de Miguel, um sorriso brincando nos lábios.

— Já falei que você fica um gato nessas roupas?

Miguel riu baixo, balançando a cabeça. — Já perdi as contas de quantas vezes você disse isso nos últimos dias.

— Hehe. — Samira não resistiu. Se atirou nele, ficando na ponta dos pés e puxando o rosto dele com suas mãos pequenas antes de beijá-lo.

Nos poucos dias que estiveram juntos, os dois haviam vivido tanto que o tempo parecia ter se expandido.

Entre as correrias pelos becos sujos da cidade e os momentos de descontração em lojas de departamento exóticas, eles foram construindo algo que não sabiam bem como nomear.

Miguel, que começara como um hóspede tímido, logo se tornou uma presença constante, um parceiro confiável nas aventuras caóticas de Samira.

Ainda se lembrava da primeira vez que entrara no quarto dela. O ambiente era tão vibrante quanto Samira, cheio de luzes coloridas e objetos que pareciam escolhidos a dedo para combinar com sua personalidade.

Foi lá, sob a luz artificial das lâmpadas neon, que o primeiro beijo aconteceu, interrompido bruscamente pela irmã dela, Luna, que apareceu à porta com uma expressão de puro divertimento. A cena os deixou rindo depois, mas desde aquele momento algo havia mudado entre eles.

Agora, os beijos se tornaram mais frequentes, surgindo em momentos inesperados, como depois de uma discussão sobre qual rota seguir na cidade, ou no meio de um trabalho ilegal. Ainda eram toques imaturos, repletos de uma curiosidade mútua que beirava o experimental, mas a leveza com que aconteciam fazia tudo parecer natural.

A convivência intensa, somada às experiências compartilhadas, criou uma espécie de bolha para eles. As tensões do mundo exterior, tão opressivas e cheias de perigos, pareciam desaparecer quando estavam juntos.

Samira, com sua energia impetuosa, e Miguel, com sua calma quase resignada, encontraram um equilíbrio peculiar. Cada riso, cada provocação ou desafio enfrentado lado a lado parecia cimentar algo mais forte, ainda que nenhum dos dois soubesse exatamente onde aquilo os levaria.

Miguel não se permitia pensar demais sobre o que sentia. Talvez fosse pelo calor nos olhos de Samira quando ela olhava para ele, ou pelo jeito como ela se apoiava em seu braço durante os passeios pela cidade. Talvez fosse simplesmente a necessidade de pertencer a algo, ou a alguém. Seja como for, ele já sabia que, naquele novo mundo que exploravam juntos, Samira começara a se tornar importante para ele.

Somente após Miguel fazer cócegas em sua cintura que Samira o soltou. — Vamos concluir o trabalho, depois disso, podemos comemorar seu aniversário.

Os olhos dela brilharam em antecipação enquanto acenava com a cabeça.

— Mia, tudo pronto?

A voz de Mia soou pelo fone discreto no ouvido direito de Miguel.

— Sim, já tenho acesso ao servidor interno do prédio.

— Vamos.

Ainda no fundo da boate, pararam em frente a uma porta de metal pinchada.

“É com você, Mia”, chamou Samira. Mia estufou as bochechas, fazendo bico — ninguém podia ver sua expressão, mas logo abriu a trava eletrônica da porta. Ao ver a mensagem "Bem-vindo" piscando em verde, Samira elogiou:

— Você é incrível.

Apesar da relutância, Mia não pôde evitar sorrir orgulhosamente.

— Humpf, não é nada demais.

Entraram e pararam por um momento, Miguel parecia atordoado. À sua frente, dois pares de seios se roçavam, os mamilos brilhando em neon, contrastando com a escuridão da boate. As mulheres se beijavam, suas línguas se entrelaçando, os dedos explorando os corpos uma da outra.

— Uau! — Samira suspirou, e, ao olhar para Miguel, fez bico e o cutucou. O rapaz parecia hipnotizado diante da cena. Com um sorriso cínico, ele apenas encolheu os ombros.

Uma das mulheres percebeu o casal. Surpresa, sorriu e lambeu os lábios dourados.

— Querem se juntar a nós?

Ela agarrou a mão de Miguel, colocando-a sobre seu seio. A suavidade e firmeza fizeram Miguel engolir em seco. Involuntariamente, ele apertou sua mão. Sentiu o caroço vibrar, uma sensação desconcertante, mas, muito estimulante.

Uma veia se destacou na testa de Samira, que encarou irritada o rapaz, antes de estalar a língua.

— Estamos sem tempo agora. Talvez mais tarde.

— Okay! — disse a mulher, arrastando a voz melodiosamente enquanto sua companheira a beijava, observando-os com um olhar divertido.

— Aquilo... foi mal — Miguel se desculpou, mas Samira o ignorou, fazendo beicinho.

Mia deu uma leve bronca em Miguel e tentou acalmar Samira.

“Quando é que essas duas ficaram tão... unidas?”

— Pois é, esse safado. Já tem nós duas e ainda quer mais. Humpf!

Miguel quase engasgou. “Sério? Quando foi que isso aconteceu? O que eu perdi?”

— Ah... lembrei de uma coisa.

Samira levantou uma sobrancelha, curiosa.

— O que?

— Então... um dos sonhos do Miguel é...

Miguel gelou. Ela não poderia saber daquilo, né? A última coisa que ele queria era que Mia fosse contar isso. Mas foi tarde demais.

— Miguel quer ter sete esposas.

Samira parou no meio do caminho, os olhos arregalados.

— O quê? Isso é sério?

Miguel desviou o olhar, e Samira, ao perceber, deu um sorriso divertido.

— Hehe, e eu achando que você era só tímido. — Ela o olhou de canto, um brilho travesso nos olhos, mais curiosa do que brava. — Então... falta mais cinco, não é?

— O quê?!

— Que foi? Por que tá com essa cara de idiota?

Miguel tentou engolir as palavras. A ideia de ter sete esposas, algo que ele mencionara em uma conversa casual com sua mãe, parecia tão distante da realidade. Ele nunca imaginou que Samira fosse levar isso tão a sério.

Ela olhou para ele, ainda sorrindo, e a ficha caiu: Samira e Mia já faziam parte do tal “harém” dele.

Uma sensação estranha e inesperada tomou conta dele.

— Cem anos atrás isso seria... bizarro, bom, ao menos na maioria dos países. — Mia comentou, como se estivesse pensando em voz alta. — Miguel está achando estranho como você aceitou tão rápido.

— Oh... entendi. — Samira assentiu, dando de ombros. — Hoje em dia, ninguém liga pra isso. O presidente tem mais de dez mulheres, e a chefe da Corporação LEMI tem uns vinte machos.

Miguel ficou mudo. “Caralho…” O mundo definitivamente mudou mais do que ele podia imaginar.

— Mas escute bem! Nada de piranhas aleatórias. Eu e a Mia vamos decidir quem entra nesse harém, e nada de traição, hein? Só pode beijar e transar, depois que estiver oficialmente no grupo. Se tentar fazer alguma coisa antes disso, a gente vai arrancar seu pinto!

De repente, a realidade diante dele parecia uma distorção surreal. Aquilo não era um "sonho". Não poderia ser chamado assim. Como algo tão peculiar, um desejo tão íntimo e exótico, acabou registrado nos dados que Mia possuía sobre ele? E, mais impressionante, como isso começou a se concretizar de maneira tão abrupta e, aparentemente, fácil?

Samira parecia completamente à vontade com a situação, e Mia, ainda que de forma mais contida, também havia cedido à dinâmica.

Mas havia algo estranho. Ambas haviam deixado implícito, de forma desconcertante, que já faziam parte desse... harém. Miguel não sabia como lidar com aquilo. Ele nunca oficializara nada. Mia, afinal, era uma IA, incapaz de contato físico real. Samira, por sua vez, a conhecera há apenas uma semana — apesar de estarem se beijando constantemente nos últimos dias.

E agora? Como as coisas funcionariam? Quando foi que elas decidiram tudo isso sem ele?

Os pensamentos dele giravam em círculos, prestes a afogá-lo em uma torrente de incertezas. No entanto, ele não podia se perder agora. O trabalho atual precisava de foco.

— Depois a gente conversa sobre isso.

Samira mostrou a língua com um sorriso divertido e o puxou para o meio da multidão. O som pesado de uma mistura frenética de trap e eletrônico reverberava pelo ambiente, fazendo o chão vibrar sob os pés. Corpos suados e entrelaçados dançavam sem pudor sob as luzes pulsantes de neon. O ar estava carregado de calor, perfume barato e cheiro de chiclete.

Samira parecia completamente em casa, movendo-se com a música como se fosse parte dela. Diferente de Miguel, que se sentia como um estranho no meio daquele caos. Mas antes que ele pudesse protestar ou resistir, ela começou a dançar bem à sua frente, movendo o corpo com uma confiança que o deixava hipnotizado.

Seus olhos estavam fixos nele, desafiando-o, convidando-o. Não havia exigências em seu olhar, apenas um pedido silencioso: "Apenas esteja aqui, comigo."

Miguel respirou fundo, tentando controlar o desconforto que o fazia querer sair dali. Ele nunca havia estado em um lugar como aquele, nunca havia dançado na vida. Sentia-se ridículo. Mas em vez de fugir, ele manteve o controle sobre seu corpo.

Por fim, ele relaxou os ombros e começou a tentar acompanhar o ritmo. Primeiro de forma mecânica, observando os outros ao redor para imitar seus movimentos. Suas mãos se moviam de forma hesitante, seus passos eram precisos demais, estava tão perfeito que era estranho e a expressão séria em seu rosto contrastava com a leveza ao seu redor.

Samira gargalhou ao perceber o esforço dele e o puxou para mais perto, sussurrando em seu ouvido:

— Ei, não seja um robô! Quero meu Miguel, não um dançarino profissional.

Ele parou, um pouco desconcertado. Sua expressão relaxou e, dessa vez, ele apenas deixou o corpo seguir os movimentos dela.

Samira sorriu de um jeito que o fez sentir algo profundo e quente. Seus braços envolveram os dele, e antes que pudesse pensar em algo, Miguel a puxou para mais perto e a beijou.

Dessa vez, foi ele quem tomou a iniciativa, e isso a pegou completamente de surpresa. Samira sentiu o corpo quase derreter com a intensidade daquele beijo. Foi diferente. Não havia urgência ou impulsividade, apenas um carinho genuíno, uma conexão que fazia o mundo ao redor parecer desaparecer.

Quando se separaram, os olhos dela brilhavam, e um sorriso travesso apareceu em seus lábios.

— Hmm, você está ficando melhor. E amo quando toma a iniciativa.

Miguel deu um meio sorriso, levemente constrangido, mas também satisfeito.

— Estou tendo uma boa professora.

Samira deu uma risadinha e encostou a testa na dele, como se quisesse guardar aquele momento.

— Ei! Vocês dois! — Mia interrompeu, a voz descontente. — Não esqueceram que temos um trabalho a fazer, certo?

Samira revirou os olhos, mas ainda sorria enquanto se afastava lentamente de Miguel. Ele, por sua vez, a soltou com relutância, mas seus olhos permaneceram fixos nos dela, compartilhando um entendimento silencioso.

Eles não podiam ver, é claro. O dispositivo RISE estava bem guardado no bolso interno da jaqueta de Miguel. No entanto, Mia não estava exatamente alheia ao que acontecia. No Cyberpespaço, ela fazia beicinho, os braços cruzados, enquanto os observava pelas câmeras da boate que havia hackeado com facilidade.

As imagens de Samira e Miguel dançando e trocando aquele beijo a irritavam mais do que ela gostaria de admitir. Mas não era uma irritação direcionada a Samira; era um sentimento mais complexo, um ciúme que misturava tristeza e impotência. Ela não podia beijar ou abraçar Miguel.

Os motivos eram óbvios...

Mia suspirou, um som tão sutil quanto melancólico, que reverberou em sua consciência digital. Havia momentos em que sua natureza a esmagava, uma barreira intransponível entre ela e aquilo que mais desejava. Mas, antes que pudesse se perder nessa espiral, uma lembrança recente iluminou sua mente.

Ela se lembrou de uma conversa com Samira, algo que a garota havia dito que a incendiou por dentro. As palavras retornaram à Mia com força, enchendo-a de esperança. Seus olhos brilharam como as luzes de neon da boate, enquanto um coração—virtual e intangível, mas tão real para ela—parecia pulsar com expectativa.

— Aliás, já encontrei nosso alvo. — Pelas câmeras da boate, Mia encontrou a pessoa que vieram buscar.



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