Volume 1
Capítulo 7: Doce e Inocente
Se perguntassem a Miguel se ele era um rapaz virtuoso, sua resposta provavelmente seria uma variação de: ‘Depende do que você considera virtude.’ Para ele, a ideia de ser virtuoso não era algo absoluto, mas uma questão de perspectiva — um reflexo dos valores de quem julga e das circunstâncias que moldam cada ação.
Miguel não se via como uma pessoa boa ou má; para ele, essas definições dependiam das circunstâncias. Ele enfrentava as dificuldades como elas vinham, ajustando suas escolhas ao que fosse necessário para seguir em frente. Se a violência se mostrasse inevitável, ele não a rejeitaria. Era simplesmente mais um preço a pagar para alcançar seus objetivos.
Miguel aceita e até permite que pessoas ao seu redor façam o que desejam, contanto que isso não o prejudique diretamente ou contrarie seus objetivos principais. É por isso que ele não via mal algum em se aproveitar dos sentimentos de Samira por ele.
O calor de Samira, adormecida ao seu lado e agarrada a ele, não o incomodava. Pelo contrário, era surpreendentemente reconfortante. Haviam se passado apenas dois dias desde que se conheceram, mas, de alguma forma, a presença dela já parecia familiar.
Ele não correspondia totalmente aos sentimentos dela, mas permitia essa proximidade porque gosta da sensação e sabe que isso a deixa satisfeita.
Miguel sabia que não estava apaixonado por ela. Ele entendia que seus próprios sentimentos eram mornos, enquanto os dela pareciam ser impulsionados por uma atração rápida, talvez algo mais próximo de uma paixão à primeira vista.
Contudo, essa percepção não o deixava desconfortável.
Ele refletia, com uma calma fria, que se, algum dia, ambos desenvolvessem sentimentos genuínos um pelo outro, tudo se resolveria naturalmente. Mas, por enquanto, Miguel se contentava em deixar as coisas fluírem dessa forma.
Se Samira gostava de se aconchegar a ele, Miguel não iria a impedir. Não havia qualquer demérito em permitir que ela buscasse esse tipo de proximidade.
Contudo, Mia não estava nada satisfeita. Ela não demonstrava, mas internamente estava sendo corroída por ciúmes. Ela não era Samira, ou melhor, não era humana. Mia não podia criar esse tipo de conexão com Miguel por mais que quisesse. Ela amava ele, por motivos que só ela sabia. Infelizmente, o destino não ficou ao seu lado...
***
— Que saco! A grana tá quase acabando e ainda não descobrimos porra nenhuma! — resmungou Samira, franzindo a testa enquanto analisava o saldo no aplicativo bancário. Ela mordeu uma rosquinha, e, de boca cheia, murmurou: — Droga. Só nos resta tentar os Echohunters... mas vai custar um rim.
Miguel, terminando sua última série de flexões, se levantou e limpou o suor do rosto com uma toalha. Samira lançou uma latinha para ele, que a apanhou no ar com facilidade.
Depois de beber um gole, Miguel suspirou com satisfação. A combinação de café gelado com chocolate havia se tornado um vício recentemente.
— Isso é bom demais.
— Você tá ficando viciado em doces — comentou Samira, fazendo beicinho. — Vai acabar engordando.
Miguel riu.
— E se eu engordar? Vai parar de gostar de mim?
— Claro que não! — exclamou ela, cruzando os braços de forma teatral. — Mas... prefiro você assim, gostoso do jeito que tá.
Miguel balançou a cabeça, sorrindo. Ainda bem que Mia não estava presente para presenciar aquele flerte descarado.
— Quem são esses "Echohunters"? — perguntou ele, desviando o foco.
Samira lambeu a ponta dos dedos, sujos de creme de chocolate, antes de responder:
— Diferente daqueles informantes de ontem, os Echohunters são mais, como posso dizer, são mais fodas. Eles são especialistas em rastrear informações que não passam pela rede digital. O problema é que cobram o olho da cara por qualquer serviço.
— Quanto, exatamente? — Miguel arqueou uma sobrancelha.
— Depende. Eles avaliam a dificuldade e decidem o preço. — Samira mordeu o lábio, visivelmente preocupada. — Nem consigo imaginar quanto vão querer pra nos ajudar... se nos ajudarem.
Ambos suspiraram.
— Se ao menos eu estivesse com toda a minha força... que droga — choramingou Mia, surgindo de repente, após uma busca de informações na rede do Cyberespaço.
— Sabíamos que seria uma tarefa difícil. Mas não se preocupem — Miguel sorriu para elas. — Samira, arrumaremos o dinheiro e abordaremos esses Echohunters. Vamos continuar como temos feito até agora. Nada de expor diretamente quem estamos procurando, só precisamos de boas pistas.
Ele se virou para Mia, falando em tom mais calmo:
— Mia, não se cobre demais. Por enquanto, só pode acessar a superfície dessa nova rede. Ainda assim, já está fazendo um ótimo trabalho.
Os olhos de Mia brilharam com determinação.
— Na verdade, pensei em algo. Se conseguirmos os equipamentos certos, posso reativar o servidor do laboratório e usar como base. Lá embaixo eu não conseguia captar os sinais dessa nova rede, mas agora, com os dados que coletei, posso criar uma conexão direta.
— E isso ajudaria a evitar que sua nova amiga, Nina, nos detecte? — perguntou Miguel, interessado.
— Exatamente! — respondeu Mia, sorrindo confiante. — Com o servidor do laboratório, poderei ficar fora do radar dela. Mas, como eu disse, vou precisar de equipamentos para configurar tudo.
Miguel assentiu. Com isso a prioridade atual era clara: conseguir dinheiro.
***
Miguel não se cansava de vislumbrar tudo ao seu redor. Toda aquela arquitetura tão vertical era de tirar o fôlego. Os enormes prédios que se erguiam imponentemente acima das nuvens. Os inúmeros anúncios e propagandas vibrantes, exibidos em painéis de alta definição, espalhados por quase toda cidade.
Samira de vez em quando lançava olhadelas a ele, ria, divertindo-se com o olhar entusiasmado que se refletia em seu rosto.
Ruas abarrotadas se estendiam como labirintos caóticos, onde drones entregadores voavam de um lado a outro.
Nas calçadas, lojas enfileiradas competiam por atenção. Haviam lojas cujas vitrines piscavam em cores vibrantes, algumas exibindo manequins vestidos com roupas futuristas, outras com letreiros holográficos que mudavam de idioma a cada segundo.
O caos era evidente: uma loja de armas, com drones de vigilância pairando em seu interior, dividia espaço com um mercado 24 horas que exalava o aroma de comidas prontas e bebidas sintéticas.
Mais adiante, uma lan-house transbordava de jovens conectados, seus rostos iluminados por luzes multicoloridas, enquanto um sexshop ao lado exibia sem discrição alguma desde os clássicos paus de borracha até tentáculos giratórios envoltos em néon.
Os letreiros piscavam em sincronia desordenada, como se cada estabelecimento gritasse “Olhe para mim!” ao mesmo tempo. O som de propagandas automáticas ecoava, misturando-se ao burburinho das ruas, enquanto cheiros distintos — de óleo quente, perfumes artificiais e cigarro — se misturavam, criando um aroma quase enjoativo.
Pessoas de todos os estilos circulavam pela metrópole. Havia trabalhadores em ternos minimalistas, correndo contra o tempo, e adolescentes com roupas fluorescentes, seus corpos cobertos de tatuagens e piercings. Samira puxou o curioso Miguel pela manga, interrompendo sua observação.
— Ei, Miguel, vamos logo, mais tarde a gente dá uma volta.
Miguel suspirou, tentando controlar sua animação.
Mia, por sua vez, tinha decidido tirar um tempo para brincar com Nina no Cyberespaço. Ele e Samira caminharam sozinhos por mais um dos inúmeros becos, onde o odor de urina e maconha impregnava o ar e até os cartazes holográficos pareciam empoeirados. Foi quando chegaram a um prédio de três andares, chamativo o suficiente para se destacar naquele caos urbano.
A entrada exibia uma pintura detalhada de duas mulheres de traços orientais, cujos corpos quase desnudos pareciam ganhar vida sob o jogo de luzes fluorescentes que mudavam de cor a cada segundo. Bastões de néon pulsavam nas laterais da porta dupla, desenhando formas abstratas.
Miguel olhou para a pintura, reconhecendo o estilo imediatamente. Ele sorriu.
— Foi você que pintou isso?
— Hehe. Ficou legal, né? — Samira respondeu, toda orgulhosa.
Atravessaram as portas do “Vênus”, cuja fachada vibrava num laranja chamativo, e entraram em um ambiente escuro e envolvente. O cheiro adocicado de tutti-frutti pairava no ar, misturado à fina neblina azulada que flutuava sobre o chão. Totens luminosos lançavam brilhos suaves, enquanto pôsteres decorados com fitas de LED se destacavam nas paredes de um cinza grafite.
No balcão do hall, uma mulher ruiva, vestindo roupas justas, estava relaxada com as pernas apoiadas na madeira. Ela tragava um vaper rosa, soltando anéis de fumaça no ar. Quando notou os dois, sorriu ao ver Samira, mas arqueou uma sobrancelha ao observar Miguel.
— Lembrou que tem casa? — provocou Luna, com um sorriso divertido.
Samira revirou os olhos, mas correu até a irmã.
— Então foi você que pegou meu vaper!
Luna respondeu com um trago profundo, soltando dois arcos de fumaça violeta no rosto da irmã.
— Ninguém mandou deixar jogado.
— Estava na minha gaveta, não jogado! — Samira murmurou, cruzando os braços.
Luna ignorou a reclamação e voltou sua atenção para Miguel, avaliando-o.
— E quem é esse bonitão?
— Meu nome é Miguel. Você deve ser a Luna. Prazer em conhecê-la.
Luna arqueou as sobrancelhas, surpresa com o tom educado, e sorriu.
— Bonito e educado — murmurou para si mesma.
Ela puxou Samira para perto e sussurrou algo, mas Miguel percebeu o teor da conversa ao ler os lábios delas. Tentou se concentrar em outra coisa, mas era difícil ignorar o constrangimento crescente.
— Bom, é isso, ele vai morar aqui por um tempo. Vem, Miguel. Meu quarto é no último andar.
Luna acenou para ele, ainda sorrindo, antes que os dois desaparecessem pelo corredor.
Eles entraram no quarto de Samira, e Miguel parou por um momento para observar. O lugar era pequeno, mas acolhedor. Havia um toque feminino em cada canto: almofadas coloridas, bichos de pelúcia empilhados em um canto da cama, pôsteres brilhantes nas paredes de idols brasileiras e internacionais, e uma prateleira abarrotada de materiais artísticos; pincéis, tintas, papeis, telas, canetinhas, etc. O cheiro no ambiente também era marcante, uma mistura de frutas doces com um leve toque floral.
— É... um pouco diferente do que imaginei — ele comentou.
— Diferente como? — Samira arqueou uma sobrancelha, jogando sua mochila sobre a cama. — Esperava algo mais bagunçado?
Antes que ele pudesse responder, ela tirou o casaco e, sem hesitar, puxou a blusa por cima da cabeça, deixando-a jogada sobre a mochila. Ficou apenas de sutiã. Miguel travou por um instante. Ela se movia com tanta naturalidade que parecia nem se dar conta do impacto que sua atitude tinha.
Apesar de magra, seu corpo delicado transbordava em charme. Sua pele levemente bronzeada ostentava belas tatuagens coloridas que a tornavam ainda mais encantadora. Miguel ficou incapaz de desviar os olhos. Por um momento, ele sentiu um nó na garganta, a mente em branco.
— O que foi? — Samira perguntou com um sorriso travesso, percebendo o olhar dele.
— Nada — respondeu rapidamente, tentando recuperar a compostura.
Ela riu, inclinando a cabeça enquanto se aproximava dele com passos leves.
— Então o estoico Miguel é só fachada, hein? — brincou, cutucando o peito dele com o dedo. — No fundo, você só é tímido.
Miguel sentiu o calor subir em seu rosto, mas antes que pudesse reagir, Samira deu mais um passo à frente, diminuindo a distância entre os dois. Seu olhar era ousado, direto, provocador. Por um segundo, ele pensou que ela estava apenas brincando como sempre fazia. Mas então percebeu que, desta vez, era diferente.
Ela ergueu a mão, deslizando os dedos levemente pelo colarinho da camisa dele.
— Não vai fazer nada? — sussurrou, desafiando-o.
Samira o encarava, fascinada por esses olhos negros tão atraentes. Havia algo neles. Ela sentia isso, mas não conseguia saber o quer era.
Contrariando suas expectativas, Miguel não desviou o olhar. Ele agarrou Samira com firmeza, segurando-a pela cintura e erguendo-a do chão com uma força que a surpreendeu. Samira estava notavelmente chocada, mas antes que pudesse dizer algo, ele inclinou a cabeça e a beijou.
O beijo começou firme, mas Miguel não conseguiu evitar o tumulto interno. Por fora, parecia calmo, controlado; por dentro, estava apavorado. Era seu primeiro beijo. Cada movimento exigia uma enorme concentração, sentia os lábios dela contra os seus, a textura suave da pele, o gosto doce que parecia combinar com o cheiro do quarto.
Samira, por sua vez, deixou-se levar. A surpresa inicial logo deu lugar a um sorriso durante o beijo, enquanto ela envolvia os braços em volta do pescoço dele. Não havia nada planejado ou profundo naquele momento. Eram apenas dois jovens, se entregando à impulsividade e aos desejos de sua idade.
Miguel e Samira estavam tão imersos no momento, com as mãos de Miguel envolvendo a cintura dela e os dois compartilhando um beijo breve, mas intenso, que o mundo parecia ter desaparecido ao redor deles. Samira, com os olhos cerrados e um sorriso tímido, começou a se entregar completamente ao momento, quando, de repente, a porta do quarto se abriu com um barulho inesperado.
— Samira! — Luna exclamou, já atravessando o limiar da porta, com a expressão de quem não esperava ver o que acabara de acontecer. — Ora, ora. Estou atrapalhando?
Miguel e Samira se separaram abruptamente, ambos surpresos e um pouco constrangidos. Samira estava com os olhos arregalados, sem saber como reagir, enquanto Miguel, com o rosto vermelho, tentava disfarçar o constrangimento com uma cara de paisagem.
Luna observou os dois por um momento, passando os olhos entre eles, até que um sorriso malicioso tomou conta de seu rosto.
— Tem espaço pra mais um? — Luna provocou.
Samira revirou os olhos e lançou uma almofada em direção à irmã.
— Porra, Luna! — ela gritou, mas a risada nervosa no final de sua fala entregava o quanto a situação ainda a desconcertava.
Miguel, por sua vez, se afastou um passo, engolindo em seco. A leve tensão do momento, que ainda pairava no ar, foi completamente quebrada pela entrada de Luna, mas ele não pôde deixar de rir nervosamente da situação.
— Tá tá, podem continuar. Eu hein, só vim devolver seu vaper.
— Humpf. Vaza!
Luna saiu rapidamente, soltando uma gargalhada.
Samira lançou um olhar tímido para Miguel, seus olhos brilhando com um misto de constrangimento e alegria. Mesmo com a interrupção inesperada de sua irmã, ela não conseguia esconder a satisfação que sentia. De alguma forma, aquele momento desajeitado os aproximara ainda mais, deixando-a com um sorriso que parecia impossível de conter.