Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 7: A decisão de Victor

A luz da manhã mal atravessava a cortina rasgada, tingindo o quarto com um tom amarelo pálido, quase sujo. O ventilador de teto girava lento, exalando um bafo morno que fazia mais barulho do que vento.

Mia estava sentada na beirada da cama.

Descalça, joelhos juntos, a camiseta de algodão descia até as coxas. Os cabelos azul-escuros, ainda bagunçados, cobriam parcialmente o rosto.

O olhar...

Preso nele.

Miguel dormia de lado, de costas para ela. Respirava fundo, o peito subindo e descendo devagar, os músculos do pescoço ainda tensos mesmo no sono.

Ela sabia o porquê.

O uso do Kaihōtai uma habilidade do Primordium, mesmo breve, cobrou seu preço. Ontem, ele forçou demais. Aguentou firme o dia inteiro, movido pela adrenalina de estar num mundo novo. Mas quando finalmente pôde relaxar, Miguel simplesmente desabou.

Caiu na cama e apagou — como um soldado que só consegue descansar quando a guerra acaba.

Mia sabia que ele não acordaria fácil. Miguel havia sido treinado desde cedo para reagir a qualquer ameaça mesmo dormindo. Um reflexo. Um instinto. Mas com ela...

Não.

Ela não era ameaça.

Mesmo assim, o pensamento persistia.

E se...?

Aproximou-se.

Passou os dedos com leveza pelo cabelo escuro, afastando a franja desalinhada da testa suada. O toque era suave, como se temesse quebrá-lo. Por um instante, fechou os olhos. Sentiu o calor da pele dele em seus dedos — uma ânsia silenciosa percorreu seu corpo.

Seu rosto se aproximou do dele.

Milímetros.

Só mais um sopro e os lábios se tocariam.

Mas ela parou.

Ficou ali, com a respiração presa na garganta, os olhos arregalados pela súbita consciência do que estava prestes a fazer. Os lábios tremiam. Os dedos, antes confiantes, agora hesitavam no ar.

"Não", pensou.

Virou-se rápido, o rosto quente de vergonha e culpa. Sentou-se de novo na beirada da cama, os pés pendendo sobre o chão em silêncio. O olhar perdido no canto do quarto, onde um velho terminal de luz azul piscava de forma intermitente.

Miguel ainda pensava nela.

Teresa.

Mesmo que não dissesse. Mesmo que fingisse estar bem. Mia sabia.

E ela entendia.

Miguel precisava de tempo.

E Mia, mesmo sendo uma máquina — ou talvez por isso mesmo — era boa em esperar.

♦♦♦

Luna bebia um expresso duplo, encostada na carenagem fosca da sua moto esportiva vermelha, velha, mas turbinada com peças de contrabando — parada em frente ao estacionamento principal do Pitanguinha, o café mais popular da Zona Central.

Em cima do toldo vibrava um letreiro holográfico, saturada de pixels mortos. O cheiro de ozônio queimado e café forte se misturava com a fumaça dos exaustores industriais.

Ela não prestava atenção em nada específico enquanto observava o fluxo daquela manhã. Um bando de corpos apressados, cruzando as vias elevadas, desviando de entregadores em motos elétricas ou drones de patrulha sobrevoando a região. Gente indo pro turno, pra escola privada — se a família tivesse grana pra bancar — ou só vagando à toa.

Sentiu uma pontada de inveja ao ver uma menina cruzando a faixa com um uniforme branco de marinheiro e saia preta curta. Visual escolar importado, copiado do padrão educativo do leste asiático que virou moda há algumas décadas.

Luna queria ter usado algo assim um dia. Ter frequentado uma escola de verdade.

Mas em vez disso...

Não. Interrompeu o pensamento. Balançou a cabeça como se pudesse rejeitar seu passado. Tomou um gole distraída — e queimou a língua.

— Merda... — xingou. Pelo menos isso a trouxe de volta à realidade.

— Pelo menos a Samira pode ir... — murmurou.

Suspirou, o olhar perdido entre o reflexo das fachadas espelhadas e os anúncios flutuantes. Uma propaganda da nova linha de lentes arco-íris roubou a atenção de quase todas as garotas que passavam por ali — os olhos delas brilhando em sintonia com o holograma.

— E mesmo assim, aquela pirralha... onde caralhos ela se enfiou?!

O celular vibrou em seu bolso — uma placa de vidro fosco, com fissuras nos cantos e a borda iluminada em roxo. Finalmente, a ligação que tanto esperava.

Huuuuaaah...

Luna bocejou junto, meio no automático.

Booom diaaa, Lu... A Sam não tá aqui. Passou aqui rapidinho... mas foi antes de ontem.

A voz arrastada denunciava que a garota ainda estava na cama.

— Ela disse pra onde ia?

Não. Brigaram de novo, né?

— Tsc...

— O que rolou agora?

— Nah... nem foi nada demais.

Aham. Ela parecia bem irritada pra não ter sido nada demais.

Luna bufou. Outro gole. O gosto amargo ainda latejava na língua.

— Samira bateu num colega da turma. Quebrou o nariz do moleque. Pegou uma semana de suspensão. Teria sido expulsa se eu não tivesse me ajoelhado diante daquele diretor filho da puta. Brigamos porque eu falei que ela precisava se controlar, que a escola era cara.

— Hm. E ela ficou brava só com isso?

— Não. Samira não é idiota. É que... O moleque disse que ela não devia estar ali, que aquele lugar era pra “gente de bem”. Como se existisse “gente de bem” nessa cidade de bosta. Depois chamou ela de vadia, filha de uma suicida e de um pai que abandonou a família. E ainda falou de mim...

— Como esse garotinho descobriu essas coisas?

— Sei lá, porra. Mas quando eu descobrir, vou arrancar a língua de quem contou.

Luna perdeu a vontade de tomar o café. Atirou o copo na lixeira próxima com força. O plástico rachou, espirrando líquido quente na calçada — e acertando a barra da calça de uma mulher de terno prateado. A executiva começou a gritar, furiosa.

Luna nem se mexeu. Mostrou o dedo do meio e mandou a mulher ir se foder.

— Eu só falei pra Samira que precisava pegar leve, que eu não conseguiria bancar outra escola se ela fosse expulsa. Aí ela disse que nunca pediu essa vida. Que tava bem do jeito que tava. Eu insisti. Levantamos o tom. E... bem, dei um tapa nela.

— Que droga...

— Pois é. Desde então, desligou o celular. Não consigo rastrear.

— Não tá com o Leo?

— Leo? Já chutou a bunda dele faz mais de um mês. Tem ideia de onde ela pode ter ido?

Hmm... Me dá um segundinho...

Nem trinta segundos se passaram e a resposta logo veio:

Ela tá no Distrito 6.

Luna franziu a testa, tentando puxar da memória. Distrito 6... Zona de torres comerciais abandonadas, cobertas de painéis solares quebrados e estruturas espelhadas que só refletiam a decadência.

Então, uma nova chamada apareceu no visor do seu celular.

— Valeu, Ju. Tenho que ir. Tenho uma reunião com o pessoal.

— Reunião, é? Agora fiquei curiosa.

— Depois te conto. Aposto que vai pirar com o tesouro que a gente achou.

Desligou a ligação com Júlia. Ignorou a chamada seguinte. Mandou apenas uma mensagem:

“Tô a caminho.”

Encaixou o capacete vermelho na cabeça. O motor da moto rugiu alto, assustando alguns transeuntes. Luna arrancou, cortando a rua, desaparecendo num mar de automóveis que parecia sem fim.

♦♦♦

O “Bar do Juca” era o ponto certo para mercenários na Neo Alvorada. Fincado na Zona Central, o lugar tinha fama de território neutro — negócios eram fechados, alianças formadas, e quem só queria uma bebida ou jogar sinuca entre um trabalho e outro também achava seu canto ali.

O bar nunca fechava. Mas, naquele horário, apenas o térreo e o primeiro andar estavam abertos; o subsolo, segundo e terceiro andar permaneciam trancados. Ainda assim, o movimento já era considerável.

Mesmo de manhã, mercenários bebiam pesado ou cochichavam acordos com olhos atentos. Até alguns policiais ocupavam uma mesa ao fundo, fumando e virando doses como se não tivessem uma ronda a cumprir. Ninguém se importava.

Na cozinha, espaçosa e funcional, um cozinheiro dividia tarefas com um robô antigo, preparando os pedidos do turno da manhã. Um segundo cozinheiro cuidava de algo especial: o café da manhã reservado a um grupo especial reunido na enorme mesa central. Outros autômatos domésticos estavam em modo de espera — poucos pedidos, pouca necessidade.

Na mesa principal, estavam os membros centrais da Crimson Wolf.

Compartilhavam o café da manhã juntos, pois combinaram de se encontrar ali para uma reunião.

Juca permitiu que o grupo se encontrasse ali, não era a primeira vez que isso acontecia.

— Cadê a Luna? — perguntou Leo. Parecia ter trinta anos, mas mal tinha passado dos vinte. Enorme como um armário de ferro, os braços de prótese reluziam: aço, fibra de carbono e músculos sintéticos moldando o visual ameaçador. — Passa a manteiga, Vic.

— É margarina — corrigiu Victoria, jogando o pote amarelo para ele. — A Lu disse que tá chegando.

Mordeu uma torrada e mandou um gole de achocolatado goela abaixo.

— Humpf. Desde que subiu de cargo ficou toda folgada — resmungou Rita, os olhos semicerrados.

Ninguém deu bola. Ela mesma parecia ter acabado de sair da cama: os cabelos crespos bagunçados, presos de qualquer jeito por uma bandana. Mal conseguia manter os olhos abertos.

— Então o plano acabou não dando muito certo — comentou Victor, na ponta da mesa, antes de morder um pedaço de pão de queijo.

Victoria, sentada ao lado dele, deu de ombros. Mas sorriu, animada.

— Ele é esperto. Em vez de baixar a guarda por causa da minha aparência, ficou ainda mais atento — disse, tomando mais um gole do chocolate. O olhar meio perdido deixava claro que revivia a noite anterior. — A forma como ele pensa, como se comporta… é fascinante.

— Bem diferente desses idiotas — cutucou, olhando de canto para Leo, Tom e Jorge.

Os três apenas deram de ombros, acostumados com as alfinetadas da Vic.

— Heh... — Rita não perdeu a deixa. Riu, debochada. — Tu também quer dar pra ele?

Victoria a ignorou completamente, como se ela fosse só barulho de fundo. Rita estalou a língua, despejou mais café na caneca. Segunda xícara da manhã.

— Ele não pôde dizer de onde veio, nem por que estava na fábrica — pontuou Victor, de forma mais séria. O grupo silenciou. — Também disse que precisava evitar a polícia, por isso confrontou os agentes daquele jeito. Jorge vasculhou a rede e não encontrou nada sobre ele. Se fosse um criminoso procurado, estaria nos fóruns dos caçadores de recompensa. Mas nem o rosto apareceu nas buscas.

Jorge assentiu. Na noite anterior, enquanto Victoria lidava com Miguel, ele havia se concentrado em vasculhar os arquivos na internet. Nada. Nem Miguel, nem Mia.

— A androide que o acompanha não é um modelo Nina — continuou Victor. — Mas a capacidade de software dela é quase equivalente. Como o Jorge disse, pode ser um protótipo. Mesmo assim, nenhum registro. Nenhum documento. Nenhuma menção.

— Esses dois são muito suspeitos. Parece até que surgiram do nada — comentou Rita, franzindo o cenho.

Os outros concordaram com acenos breves.

Um robô humanoide se aproximou da mesa e, em silêncio, pousou dois pratos no tampo metálico. Um com fatias de bolo de chocolate. O outro, com biscoitos de queijo recém-assados.

— E pra completar, ele de fato possui o Parasita Primordium.

Depois das palavras de Victor, a cozinha mergulhou num silêncio opressor. Só se ouvia o ar-condicionado zumbindo no teto e os estalos de ferrugem dos autômatos que se moviam preguiçosos pelo ambiente. O grupo ficou quieto.

A porta principal se abriu.

Luna entrou carregando o capacete vermelho debaixo do braço.

— Foi mal aí, tava resolvendo umas paradas — disse, largando o capacete no armário de alumínio na parede. A cozinha estava quente, o oposto da rua lá fora, onde fazia quase oito graus. Tirou o casaco branco, jogou por cima de uma cadeira vazia e se sentou. Serviu-se de café com leite numa caneca de porcelana.

— Ainda não encontrou a Sam? — perguntou Vic com a boca cheia de bolo de chocolate.

Luna suspirou. Os ombros caíram. Balançou a cabeça, negativa.

— Há quanto tempo ela tá sumida? — Leo perguntou, a voz mais alta do que o normal. As mãos estavam cerradas, tensas.

— Não é por isso que a gente se reuniu, né? — cortou Luna, fria.

Victor suspirou. Não era o mais velho, mas acabou se tornando o que segurava todo mundo. Liderar aquela gente dava trabalho. Mesmo com a expressão endurecida, ele sorria, ainda que de leve. No fim do dia, eram sua família.

— Então... esse cara, Miguel, disse se vai se juntar a nós?

Pietro falou, voltando ao assunto. Sentado num canto, sua presença era quase invisível. Baixinho, de feições andróginas, parecia um fantasma esquecido. Quem o via pela primeira vez sempre ficava na dúvida: menino ou menina? A maioria apostava em garota — o cabelo liso e preto, caindo até a cintura, e o rosto delicado deixavam essa impressão.

— Podemos dizer que sim — respondeu Luna.

— O que isso quer dizer? — perguntou Rita, desconfiada. Ela não simpatizava com Miguel desde o incidente com seu irmão mais velho. Pra ela, tanto fazia se ele entrasse pro time ou não.

— Miguel disse que se juntaria a gente... desde que os interesses dele e os nossos não entrassem em conflito.

— E quais são os interesses dele? — quis saber Victor.

— Ele não disse.

— Que filho da puta arrogante.

Rita foi a primeira a explodir. E, tirando Victor, Luna e Victoria, os outros pareciam sentir o mesmo.

— O que acha, Vic? — Victor perguntou, sério, para a irmã mais nova.

Victoria não respondeu de imediato. Ficou pensativa. O bolo agora intocado no prato, os olhos fixos em algum ponto da parede. Quando finalmente falou, foi num tom muito mais sério do que qualquer outro momento antes.

— Miguel é... lindo, calmo, sincero, inteligente e possuí instintos afiados.

— Viu? Eu disse que ela tava querendo dar pra ele também... igual uma certa pessoa aí — provocou Rita, revirando os olhos na direção de Luna.

Luna deu de ombros, bebendo o café como se estivesse sozinha.

— E o que diabos isso quer dizer? — rosnou Leo, irritado. Não era amor, era ciúme territorial. Nunca ouvira Victoria elogiar alguém assim.

— Quer dizer que esse cara é assustador.

Vic assentiu com as palavras do irmão e completou:

— Isso mesmo, mano. Miguel é assustador. Além dessas coisas que eu falei... não consegui perceber mais nada.

— Uai?! — Rita soltou, confusa.

Mas antes que mandasse alguma piada suja, Luna a cortou:

— Idiota. Se a Vic disse que isso é tudo o que conseguiu captar... quer dizer que o que ele tá escondendo, nem ela consegue ver. Ou seja, Miguel é uma incógnita total.

Um novo silêncio se espalhou pela cozinha.

Victoria não era respeitada só por ser irmã do líder. Era respeitada porque tinha talento. Dentre todos ali, sua maior habilidade era ler pessoas — como se desmontasse alguém por dentro só com o olhar. Se nem ela conseguia entender Miguel... era porque o cara era realmente perigoso.

— E você, Luna? O que acha? — Victor voltou-se agora pra ela.

— Acho que dá pra confiar nele.

— O quê?! Porra! — Rita gritou, levantando da cadeira. — Tu que quer dar pra ele e não sabe como pedir!

Uma veia quase estourou na testa de Luna. Ela respirou fundo. Não valia a pena.

— Instinto? — Victor perguntou ao mesmo tempo que lançava um olhar frio para Rita.

Rita engoliu em seco e se calou.

Luna assentiu.

— Miguel é transparente demais. Mas no caso dele... isso é uma casca quase perfeita pra esconder quem ele realmente é. Não é uma máscara. Máscaras caem. Essa casca... ninguém vê por dentro. Mas mesmo assim... — fez uma pausa, encarando o fundo do copo — sinto que dá pra confiar. Lá no fundo, acho que ele é só um idiota com um senso de proteção absurdo por quem ele se importa.

Victor ficou em silêncio, pensativo.

Victoria era lógica, analítica, quase fria. Luna era instinto, tato, experiência. Ela vinha de um passado difícil, sabia sentir perigo a quilômetros. As duas eram as melhores em ler pessoas na gangue.

Victoria não disse com todas as letras que confiava em Miguel, mas seus olhos brilhavam. Estava fascinada. Aquilo era perigoso. Não era razão... era impulso.

Luna, por outro lado, confiava. Sem provas. Só com o instinto. Mas isso, vindo dela, pesava bastante.

Miguel…

Ter alguém com o Parasita Primordium dentro da gangue mudaria o jogo. O equilíbrio de poder da região balançaria. E se ele fosse recrutado por outra facção… seria muito ruim.

Tinha também a Mia. Com certeza um recurso valioso, considerando que mesmo não sendo uma androide modelo Nina, ainda possuía software de ponta.

Victor se levantou. O olhar era de decisão.

— Acho que vale o risco — disse, firme.

Ninguém protestou, mesmo que a maioria não achasse que fosse a escolha certa.

— Mas por um tempo, vamos manter os olhos bem abertos. Se eu sentir que vai dar merda...

Fez uma pausa.

— Matamos os dois na hora.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora