Volume 1
Capítulo 6: Inimiga da Humanidade
Quando Miguel voltou para o hotel Mia ainda não estava presente.
Como não havia nem mesmo um ventilador no quarto, o calor estava terrível. Mesmo o tempo estando tão fechado.
Ele foi até a janela e depois de abri-la, deu uma olhada no beco. O corpo do homem que matou mais cedo não estava mais lá, somente uma mancha de sangue.
“Talvez é como Samira tenha dito, alguém levou o corpo e o jogou em uma caçamba de lixo ou algo assim...”
Miguel suspirou. Em todo caso, ele não se preocupava mais com aquilo. O mundo podia estar agora mais alheio a violência, contudo, a vida dele, desde cem anos atrás, sempre foi marcada por muita violência...
No ar, o cheiro de poeira acumulada persistia. O rapaz não via a hora de arrumar um lugar decente para ficar.
Miguel jogou o colete e o coldre sobre a cama, tirando a camisa em seguida. O calor sufocante, mesmo com a janela aberta, o deixava sem escolha.
Então, um tempo depois a porta do quarto foi aberta, não era outra senão Samira, que após adentrar o cômodo, usou o calcanhar para fechar a porta.
— Quanta coisa — comentou Miguel, olhando as sacolas penduradas nos braços da menina.
— Uau! — exclamou a garota. Seus olhos ardendo. — Você é muito gostoso!
Miguel riu sem graça, mas não pensou em colocar a blusa de volta, estava morrendo de calor.
— Nem é tanta coisa assim. Toma, essa aqui é a sua parte das lutas de hoje e isso aqui é o almoço — disse ela, entregando várias cédulas de reais e uma tigela de plástico para Miguel.
Ele pegou o dinheiro, e, sem contar o quanto tinha, enfiou no bolso. Segurando a tigela plástica, notou o quanto estava quente. Ela tinha um cheiro forte de tempero e galinha assada. Na embalagem cintilante estava escrito: “LamenKing sabor Galinha Caipira”.
— O cheiro é bom — Miguel comentou.
— O que, não pode ser que essa seja sua primeira vez comendo um LamenKing? Tá brincando, né?! — perguntou, boquiaberta.
Miguel torceu os lábios sem saber o que dizer. Ele já tinha comido macarrão instantâneo antes, mas não dessa marca nem desse tamanho.
Ainda abismada, Samira colocou as sacolas sobre a cama. Tirou a mochila e a jogou em um canto, em seguida atirou a jaqueta sobre a bolsa. Parecia estar em sua própria casa. Flores de cerejeira adornavam boa parte de seu braço esquerdo, tatuagens de traços delicados e cores suaves.
— Sério cara, tu é muito, muito estranho! — murmurou, ao mesmo tempo pegou seu LamenKing, puxou todo o lacre de plástico, apanhou os hashis descartáveis e começou a comer.
— Sou tão estranho assim? — Miguel perguntou. Ele soprou duas vezes seu macarrão e então comeu. — Isso é muito bom!
— Hehehe. Você é mesmo muito estranho. Mas é fofo. — Ela sugou o macarrão, bebeu um pouco do caldo e mastigou um pedaço de carne sintética. — Huhummm! Isso é bom demais! Pena que cada pote desse é menos um ano de vida, hehe.
Como não havia mesa ou cadeiras no quarto eles se sentaram no chão. Mas nenhum parecia incomodado com isso.
Além do macarrão instantâneo, Samira comprou guloseimas; chocolates, balas, salgadinhos e energéticos.
Samira observava Miguel devorando tudo como uma criancinha, como se fosse a primeira vez que ele estivesse comendo doces.
— Agora, me fala! Onde aprendeu a lutar daquele jeito? Você deu uma surra em todo mundo. Quando aquele gordão apareceu, putz, achei que ele ia moer você na porrada, mas aí você foi lá e pá — ela se levantou e imitou o movimento que Miguel fez naquela hora. — Aquilo foi foda demais!
Miguel se encostou perto da janela, ainda sentado no chão. Ele ria observando a garota toda animada. Quando estava prestes a dar uma explicação qualquer, sua parceira apareceu.
— Miguel, voltei.
— Eita porra! Que susto! — Samira gritou com um pulinho.
— Bem-vinda de volta, Mia.
Quando olhou melhor para a pequena figura flutuando a sua frente, os olhos de Samira se arregalaram como pires.
— Você tem uma assistente Nina?! — berrou.
Mia olhou para a garota estranha. Ela franziu, mas rapidamente recuperou seu olhar de sempre.
— Olá. Meu nome é Mia. Quem é você?
— Ah! Oi! Meu nome é Samira. Sou a namorada de Miguel.
— Namorada?! — Mia levantou a voz, encarando Miguel intensamente. Vendo que ele estava sem camisa pensamentos descontrolados começaram a causar tilt em seu sistema.
— ... haah... ela está só brincando. Nos conhecemos algumas horas atrás. Samira está me ajudando a ganhar um pouco de dinheiro, somos meio que parceiros.
Em profundo alívio Mia suspirou com a mão no peito. Samira notando isso arregalou ainda mais o olhar, então ela sorriu travessamente e comentou:
— Ah... entendi... você prefere IAs.
Mia congelou, constrangimento pulsando em sua expressão. Seu rosto ficou tão vermelho que quase parecia emitir calor.
Miguel suspirou novamente.
— Eu e Mia não temos esse tipo de relacionamento.
— Oh, sério? Boa parte das pessoas andam preferindo Ias. Ou mulheres com pau grande.
Miguel quase engasgou, mas tossiu e disse:
— Mia é minha amiga.
Miguel falou resoluto. Mia desviou os olhos, Samira notou um toque melancólico nela.
— Essa IA... aqueles putos realmente fizeram algo tão perfeito assim... — sussurrou para si mesma.
— Então, Mia. Conseguiu?
— Infelizmente não foi como eu queria, mas já tenho acesso a Internet. Ao menos poderemos descobrir muitas coisas sobre esse mundo.
Miguel assentiu. — Isso é ótimo. Você já sabe o que fazer, não é?
Mia acenou com a cabeça e imediatamente fez uma pesquisa na internet. Porém, seu rostinho perdeu toda cor.
— Mia? O que houve?
Vendo o estado estupefato de sua companheira, Miguel ficou preocupado, ela nunca havia demonstrado uma reação tão intensa. Mia olhou para ele, seus lábios tremeram, abriram, mas se fecharam, as palavras simplesmente não saiam.
Hesitantemente ela levantou o braço e gesticulou da esquerda para direita. Uma página da web surgiu ofuscando sua figura, na aba estavam as informações que ela havia acabado de pesquisar.
Quando Miguel leu um pouco, arregalou os olhos e saltou do chão, como se tivesse acabado de ser atingido por um raio.
— Hum? O que foi? — Samira achou muito estranho o comportamento desses dois, principalmente de Miguel, que até agora sempre fora tão calmo. Ela chegou perto deles e conferiu o que os deixou tão atordoados. — Sara Janau? Por que estão pesquisando sobre ela? Qualquer criancinha sabe que foi ela quem causou a guerra nuclear cem anos atrás.
Miguel parou, a mente girando em um turbilhão. Sua respiração tornou-se pesada enquanto ele encarava as palavras na tela, as mãos enrijecendo. "Mãe..."
***
O quarto ficou quieto por um tempo, até finalmente o silêncio ser rasgado pela voz de Samira, que até então observava os cabisbaixos Miguel e Mia.
— Bom, não vou ser tão intrometida e perguntar o que tá rolando com vocês — ela disse, deitada preguiçosamente sobre a cama do quarto. — Mas estou aqui para o que precisar.
Miguel sorriu. Ele balançou a cabeça como se para dissipar a aflição que sentia. Logo falou:
— É impressão minha ou está realmente preocupada?
— Claro que estou preocupada, você é meu futuro namorado, quero te ver bem!
— Puff! Hahaha!
— Humpf...
Enquanto Miguel gargalhou, Mia bufou discretamente.
— Ainda está nessa?
— Fique vendo, você vai se apaixonar por mim!
— É mesmo? Mas, por que está tão focada nisso, nem nos conhecemos direito.
— E daí? — resmungou Samira fazendo beicinho. — Na hora que bati meu olho em você, já sabia!
— Sabia o que?
— Que estamos destinados um para o outro! Pare de rir! Humpf! — Samira bufou, mas as bochechas vermelhas entregavam seu constrangimento. Ela sorriu e disse: — Agora sim, sua cara tá bem melhor.
Mia tinha as bochechas inchadas, estava com ciúmes de Samira, contudo, também estava contente por ver Miguel mais relaxado.
O rapaz se levantou e andou até Samira, que, deitada de bruços, abraçava descaradamente sua camiseta que havia jogado ali mais cedo.
— Talvez, se soubesse quem eu sou de verdade, desistiria de querer se relacionar comigo.
— Oh... é mesmo? Eu já te disse antes, não sou criança. Já vi e ouvi sobre coisas muito bizarras! Nada do que falar vai me deixar surpresa.
— Será mesmo?
— Tenta! — ela respondeu, desafiando-o com olhos felinos.
Miguel riu. Se aproximando mais dela, falou:
— Estava suada, não tem nojo?
Samira ficou um pouco perdida com a mudança de ritmo, mas, ainda segurando a camiseta dele, respondeu:
— Sei lá, não tá fedido, seu cheiro é bom.
— Tarada — sussurrou Mia.
— ... então tá... — Miguel coçou a bochecha sem jeito.
— E aí, não vai me contar quem é de verdade?
— Então, acontece que Sara Janau é minha mãe.
Samira piscou várias vezes. Quase cuspindo na cara de Miguel, ela caiu na gargalhada.
— HAHAHAHA! Aí minha barriga! Aí! Hahaha! Cara, que tipo de droga você usou?! Puta que pariu! Hahaha! Você tem que me dar um pouco!
Miguel se agachou, encostou-se na cama, com o queixo apoiado sobre a mão. Ele sorria, porém, seus olhos não refletiam um tom de piada.
Samira esfregava o canto dos olhos e ainda se contorcia, com a barriga doendo de tanto rir. Então, dando uma olhada na cara de Miguel e percebendo a seriedade de Mia, Samira resmungou:
— ... isso é uma piada, né?
— Consegui te deixar impressionada?
— ... não... não, isso é... impossível! — murmurou, ficando de joelhos sobre a cama.
— Por que acha que é impossível?
— ... consegue me provar que o que está dizendo é verdade?
Miguel respirou fundo, desviando o olhar para a janela, mas sua mente estava em outro lugar, perdida entre memórias de um passado caótico. Apoiando o braço no colchão amarelado da cama, começou a falar: — Minha mãe nunca me contou tudo. Mas... o que eu sei é que ela sempre estava fugindo.
A voz dele falhou, e ele fechou os olhos por um momento antes de continuar.
***
— Então, sua mãe estava sendo caçada mesmo antes da guerra nuclear... pela Farmacêutica Mendes? — Samira murmurou, com o olhar fixo em Miguel. — O que ela tem de tão importante para eles? Algo grande o suficiente para justificar toda essa perseguição?
Miguel inclinou levemente a cabeça, os olhos cansados, mas firmes. — É isso que eles acreditam. Algo... que vale qualquer preço.
Samira se ajeitou, cruzando os braços, a testa franzida. — E você acha que a guerra nuclear... foi um pretexto? Jogaram a culpa nela pra transformar o mundo inteiro numa máquina de caça? Não apenas a Mendes, mas... todo mundo? — A voz dela abaixou, quase um sussurro. — Isso explicaria a recompensa absurda pela cabeça dela...
— Quase isso... — Miguel suspirou, o peso das palavras arrastando sua voz. — Naquela época, o mundo já estava na corda bamba. Conflitos, disputas... tudo girava em torno da Vacina Primordium. Minha mãe não começou a guerra, mas fizeram dela o bode expiatório perfeito.
Ele fez uma pausa, os olhos perdidos em alguma memória distante. — Pode ter sido um golpe de sorte. Com as maiores potências aniquiladas, a Farmacêutica Mendes tinha o tabuleiro inteiro para si. Sem concorrência, sem obstáculos, podiam manipular tudo e todos para chegar até ela.
Samira inclinou-se um pouco mais para perto, ansiosa por respostas. — E o que ela tinha de tão importante pra eles?
Miguel balançou a cabeça lentamente. — A coisa mais valiosa que ela possuía consigo era o Parasita Primordium. Mas apesar de ser tão valioso, não justifica essa perseguição toda.
Ela ficou decepcionada com essa resposta, mas não havia o que fazer além de aceitar.
Então, enquanto ainda digeria a conversa, Samira de repente se deu conta de algo.
— Espera, sua mãe tem o Parasita Primordium?! Por isso que mesmo depois de cem anos ela ainda continua sendo caçada. Ela ainda pode estar viva!
— Tsc. Você não sabe de nada — Mia zombou. — A senhora Sara é especial. Esqueça cem anos, poderia se passar trezentos anos e ela continuaria viva, aliás, com a mesma aparência!
— Porra! O Parasita Primordium é tão pica assim?! Agora eu sei porque essa porra custa milhões de reais...
— Não é bem assim — Mia balançou a cabeça. — Como eu disse a pouco, a senhora Sara é especial. Única. Mas não entrarei em detalhes, ainda não confio em você.
— Humpf — Samira bufou. — Não precisa me contar! Miguel me conta depois.
Elas mostraram língua uma para outra. Miguel só conseguiu sorrir amargamente.
— Heh... agora entendo porque você parece tão deslocado. — Samira riu, mas havia uma tensão subjacente em sua voz. — Admito, sua história é a coisa mais insana que já ouvi. Então... você tem cento e dezessete anos?
— Cronologicamente, sim. — Foi Mia quem respondeu antes de Miguel, sua voz calma cortando o silêncio. — Mas, biologicamente, ele envelheceu apenas dez meses. Miguel ainda tem dezessete anos. E, durante todo esse tempo, ele esteve inconsciente. Sua mente também reflete essa idade.
Samira observou Miguel por um instante, como se tentasse ver além do que ele mostrava. Então, cruzou os braços atrás da cabeça, recostando-se na parede. — Olha, sinceramente? É difícil acreditar em tudo isso. Mas, se for escolher entre você e aqueles cuzões, acho que prefiro acreditar em você.
Miguel ergueu uma sobrancelha, avaliando a sinceridade no tom dela. — Agora que sabe disso tudo, ainda quer ficar por perto?
— E se eu decidir cair fora...?
— Não vou te impedir.
Ela o estudou por um momento, inclinando a cabeça. — Não tem medo de que eu conte tudo pra alguém?
Miguel soltou um leve suspiro, seus olhos assumindo um brilho frio, quase cruel. — Não importa.
— Por quê?
Ele sorriu, mas não havia calor naquele gesto. — Porque não importa quem venha atrás de mim. Se entrarem no meu caminho... eu os destruirei.
O silêncio que se seguiu era quase palpável. Samira engoliu em seco, a expressão zombeteira substituída por algo mais sombrio. Ela não duvidava das palavras dele.
Apesar de tudo, Samira apenas deu de ombros, como se o peso daquela revelação fosse insignificante. Logo, seu sorriso tranquilo e descontraído voltou a surgir, iluminando sua expressão.
— Então, é isso. Vamos atrás da minha sogrona!
Miguel não conseguiu evitar um sorriso sem jeito. Samira era meio doida, mas seu jeito parecia tornar qualquer situação mais leve.