Volume 1
Capítulo 6: Arco-íris perigoso
Na lanchonete, Miguel devorava seu sexto hambúrguer duplo o “Four”, o mais pedido no Red’s.
A gordura escorria pelos dedos, pingava na bandeja e se acumulava nas bordas da embalagem como óleo de motor.
Mia, ao lado, ainda estava na metade do milkshake de morango. Tinha comido apenas um único hambúrguer — o “One”, o mais simples da categoria artesanal.
Luna, sentada à frente deles, não sabia ao certo o que mais a impressionava: o garoto com um buraco negro no estômago ou a androide que comia como se fosse humana — nunca ouvira falar de um androide que possuía essa característica.
Ela olhou para as próprias batatas, já murchas, frias e sem sal. O refrigerante à sua frente tinha perdido o gás havia tempo. Suspirou cansada.
Eles eram... esquisitos.
O Red’s estava lotado.
Telas em loop exalavam luz avermelhada dos painéis acima do balcão, mostrando propagandas de hambúrgueres suculentos, refrigerantes , e combos que vinham com brinquedos de brinde.
Garçonetes iam e vinham carregando bandejas com os pedidos dos clientes.
O ar tinha cheiro de fritura reciclada, metal aquecido e baunilha artificial.
E no meio de tudo aquilo… eles.
— Vocês parecem diferentes de antes... — murmurou Luna, sem pensar.
A frase escapou meio torta.
Ela franziu a testa, tentando traduzir a sensação.
Era como se Miguel e Mia tivessem passado por uma transformação substancial desde aquela manhã.
Antes, pareciam deslocados — como quem caiu ali de paraquedas. Agora... pareciam inseridos demais. Como se sempre pertencessem aquele lugar.
Isso deixava tudo ainda mais estranho.
O que estou perdendo?
Aquilo estava deixando Luna desconfortável pra caralho.
— Hm?
— Nada. Deixa pra lá — resmungou, pegando o refri e virando um gole. — Droga, isso aqui já virou suco aguado... Tsc. Enfim, vocês são mesmo despreocupados, né?
Miguel e Mia trocaram um olhar rápido. Sorrisos irônicos brotaram nos cantos dos lábios.
— Você acha?
— Seu sonso... — Luna suspirou, os ombros caindo. Lidar com esses dois era fácil. E ao mesmo tempo, cansativo pra porra. Mesmo assim, ela não podia se deixar levar. Tinha um trabalho a fazer.
Mudou de postura, mais séria:
— Quem são vocês de verdade?
Miguel prestes a morder o último pedaço do hambúrguer, parou. Pensou por uns instantes, como se mastigasse a pergunta mais do que o lanche.
— Essa é uma pergunta bastante vaga.
Mia concordou com um aceno leve, ainda sugando o milkshake com o canudinho.
— ... — Luna ficou um instante atordoada. Ou melhor, irritada. Sentia como se Miguel estivesse tirando com a cara dela.
Mas a verdade era que ele tinha razão — e ela refletiu sobre isso naquele momento, como se finlamente percebesse que tal pergunta casual poderia ser tão profunda. “Quem é você de verdade?” era uma pergunta tão aberta que podia significar tudo ou nada. Quem responde pode inventar, filosofar, se calar. Ou simplesmente não saber responder.
Era o tipo de coisa que nem quem pergunta entende bem.
♦
— Então vamos reformular a pergunta — disse uma nova voz.
Sem cerimônia, uma garota sentou-se ao lado de Luna como se já estivesse ali desde o começo. Roubou uma das batatas da bandeja e mastigou sem hesitar.
— Aff, estão murchas.
— Vic...? — Luna foi a única a se surpreender.
Cabelo carmesim preso em um rabo de cavalo e olhos em tons de arco-íris. Uma presença difícil de ignorar.
Ela olhou fixamente para Mia. Seus olhos pareciam estrelas em rotação. Fascinada.
Depois, voltou-se para Miguel. O olhar ficou ainda mais intenso. Fome e curiosidade misturadas. Quase como se quisesse devorá-lo com os olhos.
Mia franziu o cenho. Fez bico, levemente irritada.
Miguel não demonstrou nada. Rosto estoico, como sempre. Mas por dentro... estava surpreso.
Essa garota...
Ainda assim, nem ele nem Mia pareciam surpresos com a chegada dela.
— Você é muito interessante, Miguel — disse a garota, cravando os olhos nos dele. Um sorriso ambíguo emoldurava sua boca. — Você realmente percebeu.
Miguel deu de ombros.
Ela sorriu, como se satisfeita. Relaxou o olhar e finalmente desviou. Deveria estar se referindo ao momento em que Miguel, pouco antes de entrar no Red’s, lançou um olhar "desinteressado" para uma direção específica. Um olhar de meio segundo, rápido demais pra chamar atenção.
Miguel percebeu Luna suspirando cansada.
— Eu disse que viria sozinha... mas já devia saber que alguém ia aparecer. — Voltou o olhar para a garota. — Quem mais está com você?
— Pergunta pra ele — disse, pegando outra batata murcha e mergulhando no milkshake de Mia.
Mia inflou as bochechas, puxando a taça de vidro de volta como se estivesse protegendo um filhote.
Luna suspirou outra vez e virou-se para Miguel, encarando-o.
Parecia ter alguma expectativa.
— Miguel não é um rato de laboratório — bufou Mia.
Miguel riu. E pela forma como parecia desinteressado, ficou claro que ele não iria corresponder a nenhuma expectativa de Victoria ou Luna.
Luna estalou a língua.
A tal "Vic" gargalhou, parecendo achar Mia muito divertida.
— Então vamos começar de novo — disse ela , juntando as mãos com um estalo leve. — Ah, quase esqueci. Meu nome é Victoria, segunda em comando na Crimson Wolf. Podem me chamar de Vic.
— Crimson Wolf? Vocês são tipo… uma gangue? — perguntou Mia, arqueando uma sobrancelha.
— Hm-hum. — Vic sorriu como quem achava graça da pergunta. — Aliás, Luna é uma das gerentes. E por falar nisso... estamos em débito com vocês. Obrigada por ajudarem nossos companheiros a escapar da polícia hoje de manhã. Se pudermos retribuir de alguma forma, é só falar.
— Sendo assim... gostaríamos de um lugar pra ficar, pelo menos por alguns dias — disse Miguel, sem nem piscar. — Eu e Mia não temos onde cair mortos.
— Hahaha! Você é bem direto — Vic gargalhou, de verdade.
Luna também riu da cara de pau.
— Okay! — Um dos olhos de Vic brilhou em tons iridescentes, mudando gradualmente até atingir um azul cristalino. — Mano, arruma um lugar pros dois. Por favorzinho. Ah, ótimo, valeu! — Ela piscou para Miguel. — Prontinho. Depois que sairmos daqui, mostro o apê de vocês.
Simples assim...?
Miguel e Mia se entreolharam.
Foi nesse instante que perceberam — de forma mais nítida — que essa tal gangue não podia ser subestimada.
Aquela fábrica, que eles pensaram genuinamente ser uma fornecedora de doces, na verdade era um centro de fabricação e distribuição da nova droga sintética Aurora Phase.
E agora, essa guria de olhos coloridos fazia uma ligação mental e — pronto — arranjava um apartamento como quem pede um lanche.
Vic observava a dupla com calma. Seu olhar era leve, mas afiado como uma faca escondida numa bolsa de pelúcia.
Ela mudou de assunto com a mesma naturalidade de quem vira uma página.
— Como foi que vocês entraram na nossa fábrica? Pela porta da frente obviamente não foi. Nem pelo portão lateral, não tinha nenhuma filmagem de vocês até a hora da fuga.
É quase como se já estivessem lá dentro o tempo todo.
Ela fez uma pausa breve, os olhos semicerrados.
— Mas isso seria esquisito, né? A outra entrada, nos fundos, tava bloqueada. Uns desgraçados sem-teto explodiram um dos prédios de acesso semana passada.
Ah, então era por isso que aquele lugar estava tão acabado.
Miguel ponderou por um segundo. Depois falou com calma, sem rodeios:
— Foi mal. No momento, isso não é algo que possamos contar pra vocês.
— “No momento” ... então quer dizer que vai contar depois? Por que não agora?
— É complicado — disse Miguel, desviando os olhos e coçando a bochecha, meio constrangido.
Luna soltou um suspiro. Nem ela nem Victoria pareciam realmente aborrecidas, no entanto.
Afinal, aquilo não era um interrogatório. Era uma conversa entre possíveis aliados.
— Hm. Tudo bem — disse Luna, aceitando com certa tranquilidade, Miguel achou um pouco estranho, mas não tinha motivo para recusar.
Vic lançou um olhar enviesado pra ela.
— Tá, então podem dizer de onde vieram? — perguntou Luna. — Você não conhece a gente, mas já deve ter notado que somos bem conhecidos por aqui.
Miguel de fato tinha notado.
Logo que chegaram ao Red’s, não havia mesa livre. Mas bastou o garçom olhar para Luna pra que, num piscar de olhos, arrumasse um lugar pro grupo. Ela nem precisou pedir.
E o atendente não era um robô doméstico sucateado — era um humano de verdade. Outro detalhe que dizia muita coisa.
— Qualquer pessoa nessa região conhece nossa fama. Mas naquela hora... quando te mostrei nosso emblema, você não o reconheceu. E também... — ela fez uma pausa. — Por que aquela cara quando fugimos da fábrica? Foi quase como se um caipira tivesse vendo a cidade pela primeira vez. Mas você claramente não é um caipira.
Victoria franziu o cenho, lançando um olhar lateral para Luna.
As duas se voltaram para Miguel e Mia, em silêncio.
— Viemos de... bem longe — disse Miguel.
O sorriso que tentou esboçar era tão fraco que se dissolveu no semblante.
Nenhuma das duas soube o que responder.
— Tá... — murmurou Luna.
Luna resolveu mudar o foco, como se se resignasse ao fato de não estar conseguindo avançar na conversa.
— Ok, podemos aceitar que você não conhece a gente. Mas qualquer imbecil reconheceria a PM. Ainda assim, lá na fábrica, você atirou neles sem nem hesitar.
Ela o encarou.
— Quando paro pra pensar nisso... não faz sentido. Vocês podiam ter se entregado. Naquela situação, seriam vistos como vítimas. A polícia acabaria soltando depois de investigar. Teria sido mais simples fugir com essa desculpa.
— Ju tem razão — disse Vic, cruzando os braços.
As mangas da jaqueta escorregaram, revelando tatuagens ao longo de seus braços finos — desenhos de traços suaves adornando a pele pálida.
— Por acaso são criminosos procurados?
Ela virou-se para Mia, o olhar afiado, como se uma fagulha de ideia estivesse ganhando forma.
— Talvez seja por causa dela?
O tom mudou.
— Jorge comentou que, quando analisaram ela com o Mike, não conseguiram classificá-la como uma Assistente Nina. Disseram que poderia ser um protótipo. Mas mesmo sendo um protótipo, estamos falando do protótipo da androide mais avançada e cara do mundo. E olhando de perto... Mia, você nem parece um robô. Seu comportamento é humano demais. Fala sério... você come, bebe... e aí?
Ela inclinou o corpo pra frente, sorriso nos lábios.
— Você caga também?
Mia quase se engasgou com o restante do milkshake.
Bufou, desviando o olhar com um “Humpf” abafado.
Miguel riu. Sentiu um déjà vu.
— Não é por causa da Mia — respondeu, ainda com um sorriso torto. — Mas... é mais ou menos isso. Temos que evitar a polícia.
A frase pareceu simples.
A verdade é que eu não existo.
Ele não tinha uma identidade no sistema.
Nenhum registro de nascimento. Nenhum número. Nenhum nome que pudesse ser rastreado.
Se a polícia decidisse investigar mais a fundo... não encontraria nada.
E o problema era exatamente esse.
Nada chama mais atenção quanto um vazio absoluto.
E no mundo deles, todo buraco nos dados é uma sirene para as megacorporações.
Se começarem a cavar... principalmente aqueles caras... vão acabar descobrindo.
Vão perceber de quem eu sou filho.
E se isso acontecer, já era.
Vão me apagar antes que eu consiga encontrá-la.
Ou pior... me usarão para chegar até ela.
Miguel apenas tomou mais um gole do refrigerante, encarando o fundo do copo como se tentasse encontrar respostas lá.
No mínimo devo recuperar minha antiga força. Até lá, bem, tenho que tomar mais cuidado.
— Deve ser algo do caralho pra te forçar a matar PMs sem hesitar — comentou Luna, como quem joga conversa fora.
— Bem, além disso — murmurou Miguel.
— Além disso? — Vic repetiu as palavras dele.
— Aqueles caras não estavam lá para prender ninguém. Se eu tivesse hesitado por um fração de segundo estaríamos mortos.
— ... e como sabe disso? — Luna sondou.
— Instinto.
Vic soltou uma risadinha e Luna encolheu os ombros. Luna então se levantou um pouco, acenou para o garçom e pediu uma cerveja.
Vic aproveitou o embalo e pediu alguns petiscos.
Então veio.
— Talvez tenha a ver com o fato de você possuir o Primordium...
A frase de Luna saiu natural. Sem peso.
Quase como se falasse do tempo nublado ou de um tênis bonito.
Mas o impacto foi imediato.
A atmosfera mudou como se alguém tivesse abaixado a luz da sala. Até o barulho do restaurante pareceu diminuir por um segundo.
Mesmo Miguel, com sua cara estoica de sempre, não conseguiu segurar um leve sorriso de canto.
— Pois é — disse, sem se omitir.
Mia franziu o cenho. Mas, depois de um suspiro, se voltou para seu milkshake.
Luna era mesmo atenta.
Ela realmente tinha reparado nos olhos de Miguel horas antes — no meio do caos da fábrica.
Aquela coloração carmesim, o brilho estranho nas veias oculares... aquilo só podia ser o Primordium.
Então... finalmente chegamos nesse ponto.
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