Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 5: Uma Parceria Inusitada

Miguel terminava de mastigar sua barra de ração escorado na janela do quarto. A vista dali não era das melhores, prédios cercavam esse hotel de quinta categoria. No entanto, Miguel sorria.

Ele se inclinou para frente, uma garota de jaqueta vermelha grafitava uma parede daquele beco. Seu braço esguio deslizava sobre a superfície, pulverizando verde limão em algumas áreas.

— Ela é boa — balbuciou Miguel.

Sua cabeça levemente inclinada, apreciando a garota terminar de pintar um grande camaleão no muro.

Então, o brilho de seus olhos sumiu assim que sua atenção se voltou para o grupo que penetrou a viela.

“Os vagabundos de ontem, hein...”

Era difícil esquecer essas jaquetas brancas e topetes coloridos.

O líder daquele grupo chutou um dos sprays vazios de seu caminho, acertando a latinha nas demais espalhadas no chão.

— Ei! — gritou a menina, indignada. Seu olhar raivoso se voltando para os desgraçados que a fizeram errar a pintura.

— Que foi?! Hein, pirralha de merda. Dá o fora daqui caralho!

— Vai se foder, cuzão! — a menina gritou mostrando o dedo do meio.

— Como é que é?! — vociferou o homem. Com passos rápidos ele se aproximou da menina, levantando a mão tentou agarra-la, contudo... — Argh!!! Filha da puta!!!

— Otário! — debochou a menina.

Depois de borrifar tinta na cara daquele homem ela ainda acertou a latinha em sua testa. Seu queixo empinado, um sorriso de desprezo estampado em seu rosto delicado. “Hora de dar o fora daqui”, pensou.

Mas assim que ela apanhou sua do mochila do chão e se virou, estalou a língua. Para seu desprazer havia outros cinco homens invadindo aquele beco pelo outro lado.

— Filhos da puta... — reclamou a menina.

De repente um vulto caiu ao seu lado. Ela ficou rígida e soltou um gritinho, observando a figura preta que veio sabe-se lá de onde.

Quando os olhos da garota encontraram os desse novo personagem ela prendeu a respiração inconscientemente.

Havia algo nesses olhos negros que ela não conseguia entender. Sentia uma espécie de singularidade bizarra. Eram claramente os olhos de um humano, mas era como se contivessem uma infinitude cósmica.

O aparecimento repentino de Miguel também assustou a gangue. Alguns deram um passo ou dois para trás quando viram seu rosto. Outros se entreolharam e assentiram.

— Porra! PORRA! Alguém mata essa filha da puta!

O único que não conseguia enxergar direito gritava enfurecido, seu ombro foi agarrado por um de seus comparsas que disse: “Fique calmo, John, a pessoa que estamos procurando está na sua frente agora.”.

— Calma o caralho, porra! Não é a sua cara que tá—

Ele não pôde continuar. Um chute impiedoso de um homem alto o lançou ao chão.

— Você é o moleque que espancou aqueles idiotas ali? — perguntou o homem alto, seu polegar apontado para trás de seu ombro.

Miguel nem sequer olhou para eles quando perguntou: — E se foi?

— Hehehe — o homem riu, lambendo os lábios. — Nunca te vi por aqui, moleque. Tu é de qual gangue? — Então, seus olhos se viraram para a menina atrás de Miguel. Ele franziu por um momento, reconhecendo o lobo carmesim estampado na lateral da jaqueta da garota. — Você... Tsc.

— Ele tá comigo! — a menina exclamou.

Miguel escondeu a surpresa atrás de seu olhar frio. A menina saiu detrás dele. Ela cruzou os braços com uma sobrancelha deliberadamente levantada. Sua estatura era a menor ali, mas sua imponência era digna de nota.

— Heh... quer que eu acredite mesmo nisso? Até você ficou surpresa quando ele apareceu, como se não o conhecesse. E além disso... — o homem apertou os olhos. — Quem garante que você é realmente uma Crimson Wolf?

A menina olhou para ele como quem olha para um idiota. “Duh!” resmungou enquanto apontava para seus cabelos tingidos de carmesim, então soltou outro “Duh!” apontando para o lobo carmesim estampado na jaqueta.

— Qualquer pessoa pode pintar o cabelo e falsificar a roupa deles.

— E qualquer idiota sabe que fazer isso é suicídio — ela disse com desprezo.

O homem grunhiu.

— Dessa vez vou deixar você ir, mas o garoto fica. Temos contas a acertar.

— Não ouviu o que eu disse? Ele tá comigo.

— Hehe, acho melhor não testar minha paciência pirralha.

Dizendo isso ele andou lentamente até eles. Entre passos pegou um cigarro e o acendeu com um isqueiro. Após uma longa tragada ele soprou a fumaça de seus pulmões na direção deles, então estreitou os olhos para a garota e continuou:

— É melhor dar o for—

Bang!

O tiro rasgou o silêncio do beco. Miguel cobriu os olhos da garota com a mão enquanto o líder caía para trás, o sangue marcando os posteres rasgados da parede como se fosse um grotesco grafite.

Por um instante, ninguém se mexeu. Então, um dos capangas deu um passo hesitante. Miguel o interceptou com um olhar frio e a pistola ainda fumegante.

Em meio ao choque sentido por todos, o rapaz, ainda mantendo sua mão sobre os olhos da garota, falou monotonamente:

— O líder de vocês se foi. Acham que ainda vale a pena lutar?

Além de rostos estupefatos houve fúria. O primeiro a tentar sacar uma arma teve a testa atravessada por um projetil. Ele sequer teve tempo de puxar o revólver da cintura.

Miguel olhou de lado e, finalmente soltando a garota, percorreu sua mira em todos a sua volta. O cano da arma foi apontado diretamente para outro homem, que, no último segundo, desistiu de pegar sua arma.

O garoto estava sozinho, cercado, mas o controle da situação estava em suas mãos. Sua presença esmagava os adversários, e o brilho em seus olhos sedento por sangue.

— Querem mesmo continuar? — Miguel disse com sarcasmo.

— Que foda! — Em meio ao silêncio que se instaurava a menina falou empolgadamente, seus olhos brilhando, a boca arregalada.

“Ei... leia o clima!”

Miguel reclamou em pensamento.

***

— Ei! Aquilo lá atrás foi foda pra caralho!

— É mesmo? — Miguel balbuciou. — Tem certeza que não deveríamos pelo menos esconder os corpos daqueles caras?

— Relaxa, só tava a gente lá e mais aqueles idiotas, não tinha câmeras e não é como se eles fossem chamar a polícia — a menina soltou uma gargalhada. — Além disso, a polícia não tem tempo pra ficar investigando qualquer maluco que morre em um beco.

— Entendo...

—Mas foda-se isso! — exclamou. Suas pupilas violetas fixamente encarando os olhos de Miguel, como se estivesse hipnotizada. — Você tem namorada? Se não tiver, ou até se tiver, tanto faz, quer sair comigo?

— Quantos anos você tem mesmo? Aliás, qual é o seu nome?

— Samira. Farei dezesseis semana que vem. Por que? — Samira perguntou com o rostinho inclinado, a franja carmesim tampando metade de seu rosto. Não desgrudava seu olhar dele nem por um segundo.

— Meu nome é Miguel, — ele se apresentou —, você não é muito nova?

— Nova? — Samira perguntou novamente, inclinando o rosto para a outra direção. — Como assim “nova”?

Miguel coçou a bochecha dizendo:

— Bom, eu sou bem mais velho que você.

Samira franziu e soltou uma risada seca.

— Bem mais velho que eu? Hahaha! Você deve ter no máximo uns dezoito anos. Chama isso de “bem mais velho”? E mesmo que tivesse, sei lá, uns cem anos a mais, qual o problema?

Miguel quase tropeçou na calçada desnivelada enquanto andavam.

— Que foi? — ela perguntou desconfiadamente.

— Nada... enfim, aquele cara parecia com medo de você.

— É por causa disso — ela apontou para o lobo estampado na jaqueta. — A maioria das pessoas dessa região temem os Crimson Wolf. É sério que não conhece a gente?

— Sou novo por aqui.

— Sei... — ela deu de ombros. — O que precisa saber é que não deve procurar problemas com a gente.

Miguel riu. Samira era pequena e magra, muito fofa, como uma boneca. Em outras palavras, não era nada intimidadora.

— Você é estranho.

— Estranho? Por que?

— Sei lá... você parece deslocado de alguma forma... me diz, por que tampou meus olhos naquela hora? — Samira perguntou, no entanto, como se chegasse a compreensão antes de obter uma resposta, falou: — Calma aí! Fez aquilo porque acha que sou criança?!

“E não é?” pensou ele.

— Humpf! — ela bufou com os braços cruzados. — Já vi coisas bem piores do que aquilo! Várias vezes, viu! Heh... é por isso também que não quer sair comigo? Pra sua informação, eu fui criada em um puteiro, então sei fazer muitas coisas!

Miguel sentiu sua cabeça girar.

— Você...

— Nem! Eu não era puta. Até parece que eu iria deixar algum velho com bafo de merda tocar meu corpinho perfeito — Samira disse, empinando o queixo. — As vezes eu me escondia e ficava olhando as garotas de lá trabalharem.

Miguel suspirou cansado.

— Você ainda mora nesse puteiro?

— Nem. Faz um ano que sai de lá com minha irmã. Demos sorte de um doidinho da Crimson Wolf acabar se apaixonando por ela, por causa disso acabamos entrando pra gangue.

— Que coisa boa, hein. Mas esse cara, ele trata você e sua irmã bem?

— Ah, ele virou peneira duas semanas depois que nos juntamos a gangue.

— ...

— Acontece ué. Apesar disso, o líder deixou a gente ficar, desde que trabalhássemos. Bom... ele come minha irmã de vez em quando, isso também ajuda. Luna cuida de um dos pontos de distribuição de Aurora Phase, já eu, entrego para alguns clientes.

— O que é isso?

Samira parou de andar.

— Cara, você saiu de um buraco?

— Na verdade, é mais ou menos isso...

— Hum... — Samira estreitou os olhos. Apesar da desconfiança que começava a ter de Miguel, explicou: — Aurora Phase é uma droga sintética que causa umas alucinações do caralho. Não tô com nenhuma aqui, senão eu te daria um pouco.

— Você usa essa droga?

— Usei só uma vez, escondida da minha irmã. Foi uma doidera da porra! — Samira gargalhou. — Bom, foi pica, mas nunca mais. Fiquei uma semana passando mal. Minha irmã quase comeu meu rabo.

— Hahaha! Tá, não preciso nem experimentar. Só ouvir já é o bastante pra mim.

— Medroso — ela zombou mostrando a língua. — Você parece sem rumo algum.

— Esse é o caso — ele disse.

— Olha, eu não te conheço direito, mas senti uma química entre a gente.

Samira voltou a andar, puxando a manga dele, continuou:

— Tá na cara que tu não tem nem onde cair morto. Então, que tal trabalharmos juntos?

— Tá, pode ser — Miguel respondeu com um sorriso.

— Que rápido!

— Eu também gostei de você. E dá pra ver que é bem esperta.

— Hehe. É preciso ser esperto pra sobreviver nesse mundo.

“Pois é, nesse aspecto, esse mundo não mudou nenhum pouco...”

— E então, tem algo em mente? A verdade é que estou mesmo precisando de dinheiro.

— Hummm... — ela ponderou por um tempo. — Você é bom de briga?

— Sou.

— Gostei. Então vem comigo.

— Antes disso, preciso deixar um recado pra uma pessoa. Não vai demorar.

Miguel obviamente se referia a Mia. Ele havia deixado o RISE no quarto, escondido junto com sua mochila. Como não sabia se ia demorar para voltar, precisava avisar Mia que havia saído, no caso de ela retornar antes dele.

— Tá bom.

***

A multidão ali reunida estava bastante agitada. Gritos, vaias e assobios ecoavam. No centro da roda composta por várias pessoas, Miguel, sem suas armas, estava prestes a entrar em uma luta corporal contra um homem que tinha o dobro de seu peso.

— Puta merda! O primeiro é logo esse gordão! Caralho!

Samira xingava, batendo o pé no chão.

As pessoas ao redor olhavam com desprezo para Miguel, seria uma luta rápida, completamente unilateral, o gordão iria estraçalhar o rapaz.

Outrora esse lugar era uma quadra esportiva, entretanto, agora é um espaço usado para apostas em brigas de rua. Cercado por prédios deteriorados pelo tempo, a maior parte das grades da quadra foram removidas; os gols, assim como os aros nos pilares para jogar basquete não existem mais.

Folhetos de anúncios estavam espalhados pelo chão despedaçado, além de latinhas, embalagens de salgadinhos sintéticos e garrafas de plástico. Ervas daninhas cresciam por entre as fissuras do solo.

O juiz, um velho magrelo de camiseta xadrez manchada de óleo, soltou um bocado de fumaça pelo nariz e, depois de jogar o cigarro fora, gritou: “Lutem, porra!”.

O gordão ria, encarando Miguel de cima para baixo. Além de ser mais corpulento era mais alto. Ele fez bico e mandou um beijo para o rapaz, então disse: “Vem gracinha”.

De repente, Miguel chutou o chão. Sua velocidade surpreendeu a todos. Ele alcançou o gordo num instante e pulou. Seu braço direito, levantado na altura da cabeça, desceu, acertando um poderoso golpe de cotovelo no meio da testa do sujeito.

Baque!

O enorme corpo caiu para trás.

Silêncio...

“Droga... será que ele morreu...?”

Miguel estalou a língua. Ele ainda estava no processo de recuperar sua antiga forma, por isso não economizou força nesse ataque, porém, parece que subestimou a si mesmo.

— Boa, porra!

O berro de Samira despertou a todos, que assim como ela, começaram a gritar euforicamente. Ainda que a maioria tenha perdido uma boa grana ao apostarem no homem gordo. Afinal, quem não gosta de um azarão?

Miguel olhou para ela e riu sem graça. Essa menina era mesmo uma figura.

— Podem mandar o próximo! Meu parceiro vai acabar com qualquer um nessa caralha!

Depois que ela gritou isso surgiu um novo oponente para Miguel...



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