Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 5: Mundo deslumbrante

Miguel e Mia caminhavam lado a lado — ou melhor, colados.

Acima deles, drones zumbiam como mosquitos industriais, cuspindo hologramas translúcidos em todas as direções. Um deles projetava na calçada o rosto de uma mulher sorridente demais, oferecendo a nova linha de implantes cibernéticos da série Hércules — "Potência e durabilidade garantidos!", dizia a legenda piscando em cinco línguas ao mesmo tempo.

Miguel esbarrou sem querer num dos projetores instalados na frente de uma lojinha, distorcendo o holograma de refrigerante que flutuava no ar. O dono da banca gritou com ele em russo, cuspindo cuscuz no chão enquanto sacudia um chinelo na direção dele.

Mia se agarrava ao braço dele com a desculpa de que, no meio daquela multidão, poderiam acabar se perdendo. Ele não se importou. Na verdade, não via problema nenhum em ter uma garota linda grudada nele.

Mas não era só isso.

A verdade é que os dois estavam distraídos demais.

Miguel e Mia se sentiam como sapos saindo do poço e dando de cara com o oceano. Nada ali era como tinham imaginado antes de deixar o laboratório.

A antiga região de Samambaia já não existia. Pelo menos não da forma que as velhas memórias ou documentos antigos descreviam.

Agora aquilo era o Distrito 4.

E o velho Distrito Federal tinha virado Neo Alvorada. Um nome bonito pra um lugar que parecia engolir tudo com o tempo.

O céu deveria estar limpo e o sol queimando, como nos tempos antigos — cem anos atrás. Mas ali, o que cobria tudo era uma crosta cinzenta, espessa, que transformava o dia em crepúsculo.

Parecia um filtro solar natural. Seria ótimo… se não fosse basicamente poluição acumulada por gerações.

E acima da névoa, os megaprédios. Torres residenciais e comerciais empilhadas como ossos verticais. Uma delas, a torre Okitan, subia tanto que o topo desaparecia no mar de nuvens.

Meio-dia. Mas a luz era fria, morta, como um fim de tarde. E ainda por cima era junho. Inverno.

— Aí! Colem aqui, chega aí! Chegou o novo lote de pistolas da FEMI! Essas gracinhas transformam blindagem leve em queijo suíço! Ou então dá uma olhada na coleção Scorpion, espingardas personalizadas que venderam igual água mês passado!

Miguel passou os olhos pelas armas espalhadas na mesa do ambulante. A tenda parecia um mini-arsenal: pistolas, espingardas, rifles, submetralhadoras, lança-chamas... até espadas samurais e shurikens.

Os olhos de Miguel brilharam. No final, ele ainda era um garoto como qualquer outro.

Ele passou a mão pelas pistolas presas nos coldres da calça e quase soltou um suspiro. Lembrou da arma da Luna. A força brutal daquele troço fazia as dele parecerem brinquedo.

Mia também olhava, mas com outra curiosidade. Não era desejo ou necessidade. Era como alguém vendo algo novo e interessante, só pela experiência.

Parecia inevitável. O ambiente ao redor provocava isso em qualquer um.

— Vem, rapaz! Pode olhar à vontade! Se quiser testar, só falar! Só não vai atirar em ninguém aqui, senão tu vira peneira! Hahaha!

Miguel riu sem graça.

Droga... como eu queria ter dinheiro.

— Depois eu volto, tio.

Mia também acenou pro "tio", e o homem até corou, esquecendo por um instante de gritar suas ofertas.

Por onde passavam, os dois atraíam olhares.

Não era por causa das roupas militares. Nem pelas pistolas nos coldres de Miguel. Isso, ali, era quase normal.

O que fazia as pessoas virarem o pescoço... era Mia.

Uma beleza fora de escala, entre o fascínio e a dúvida. Gente demais sussurrava: “Ela é real?" ou "Então essa é a Assistente Nina?”

Apesar da maioria a confundir com essa tal Nina, os que não a confundiam, perguntavam se ela era uma modelo desconhecida. Os cabelos azul-escuro, os olhos brilhando num tom ftalocianina... tudo isso, a destacava, mas sem fazê-la parecer fora do lugar.

Na verdade, Mia parecia pertencer aquele mundo. Miguel, não.

A cidade era um desfile. Gente com cabelo fluorescente, cortes insanos, peles brilhantes. A rua cheirava a óleo queimado e fritura barata misturada com perfume amadeirado e tabaco. O ar era grosso, quase pastoso.

Um homem engravatado esbarrou em Miguel. Normal. A rua estava lotada.

Colegiais passavam aos montes, uniformes que lembravam os usados no século passado em escolas do leste asiático. Engravatados iam e vinham, cigarros na boca, os olhos grudados em telas. Mesmo no horário de almoço, negociavam, brigavam, fechavam contratos.

Operários lotavam barracas de comida, corpos enormes, suados. Muitos com próteses metálicas expostas — braços, pernas, colunas, mandíbulas.

— Oi, bonitão! — disse uma mulher de cabelo curto, puxando Miguel pelo braço. Enfiou o rosto dele entre os próprios seios, cheios e frios ao toque. Neon vibrava nos mamilos: um azul, outro roxo. Piercings em cada um.

— Quer dar uma rapidinha? Pode trazer a namorada também, se quiser.

— Quer, Mia? — perguntou Miguel, com a maior naturalidade.

A mulher riu, surpresa com a ousadia.

Mia piscou, cristalina.

— Talvez outra hora. Tudo bem?

— Ela que manda — disse Miguel.

— Hahaha! Vou esperar, hein!

De volta à multidão, Mia beliscou o braço dele, fazendo beicinho.

Miguel soltou uma gargalhada.

— E aí, o que conseguiu? — perguntou ela, de canto de olho.

Miguel enfiou a mão no bolso e tirou duas carteiras: uma preta de couro, outra rosa de camurça.

Estendeu a rosa pra Mia, enquanto abria a preta.

— Parece que a moeda ainda é o Real. Você viu, né?

— Hm. O mais interessante é que ainda exista cédulas. Cem anos atrás elas eram quase extintas — disse ela, vasculhando a carteira da prostituta. — Aqueles estudantes estavam pagando pelos sorvetes com cédulas de cinco reais. Mas também vi gente usando celular... retina também.

Depois de juntar o que tinham, um total de 123 reais, Miguel jogou as carteiras numa lixeira enferrujada.

— Agora sim. Vamos comer. Tô morrendo de fome.

Mia parou por um instante. Puxou Miguel pela gola da camisa e ficou o encarando, séria.

— Você tá bem? — perguntou, baixinho. — Não devia usar o Kaihōtai com o corpo ainda em recuperação...

— Tô bem. Usei só por alguns segundos.

Fez uma pausa. O olhar pesou por um instante.

— Mas... mesmo com tão pouco, já senti a pele querendo rasgar.

Ele desviou o olhar.

— Não me olha assim. Vamos, quero ver que tipo de podrão vamos encontrar por aqui.

— Hm.

♦♦♦

O óleo pingava, encharcando a caixinha de papel. A gordura escorria em filetes brilhantes pelos tokoyakis no espetinho.

Gole.

A aparência era duvidosa, quase ofensiva. Mas o cheiro... o cheiro era delicioso. Quase uma piada de mau gosto.

Gole.

Miguel levou à boca e mordeu. A massa desfez entre os dentes, e o recheio — polvo frito com tempero picante.

Era...

Era delicioso.

Gole.

Dessa vez foi Mia quem engoliu em seco. A expressão de Miguel enquanto comia era séria demais pra algo tão simples.

Não era possível que aquela coisa, com aquele visual suspeito, fosse gostosa. Mas estava escrito na cara de Mia "preciso provar essa coisa".

Pegou o espetinho e levou à boca. Miguel a observava sério — como quem acompanha um experimento.

Não era a primeira vez que via Mia, uma androide, comendo. No laboratório, eles faziam refeições juntos.

Lembrava de já ter perguntado como ela podia sentir sabor. Se precisava comer. E — com o tato de um jumento — se ela cagava.

Mia respondeu da forma mais natural possível. Disse que, um dia, simplesmente decidiu provar a comida. E pra surpresa dela, sentiu.

Sabor. Textura. A tal sensação de barriga cheia.

Ela não precisava se alimentar — seu corpo se movia à partir de uma bateria que alimentava todo seu sistema. Mas desde aquele dia, passou a sentir fome. E sede.

Segundo ela, seu "intestino" só servia pra triturar as substâncias ingeridas e convertê-las em energia. Uma energia praticamente inútil pro seu sistema — quando comparado a energia que seu “coração” artificial carregava.

Quanto à pergunta escatológica...

Não, Mia não cagava. Afinal, qualquer alimento ingerido era completamente convertido em energia, sem nenhum desperdício, sem subprodutos sólidos como fezes, logo não havia o que ser evacuado.

Agora, de volta ao presente, Mia encarou o espetinho.

Hesitou.

Mordeu.

Mastigou.

Era delicioso. Estava escrito em seu olhar.

— Hahaha! Olha a cara de vocês! Parece até que nunca comeram um tokoyaki! — riu o dono da barraca, misturando português com um japonês pra lá de suspeito na mesma frase.

Bem... deu pra entender.

Era fato: pareciam dois idiotas ali, parados, em choque com um espetinho.

Como não havia mesas sobrando, ficaram de pé no balcão da tendinha.

O homem — um senhor de meia-idade, suado, alegre e rodeado de fumaça — fritava todo tipo de coisa no óleo que parecia não ser trocado a semanas.

Na chapa fervente: tokoyaki, camarão empanado, algo que parecia lula. Na outra chapa, peças de carne e frango cortados em cubos e fatias.

Do outro lado, duas garotas se moviam agilmente. Uma, com uns dez anos, servia os clientes com pratos e latas de refrigerante ou cerveja. A outra, talvez com doze, limpava o que podia e recolhia restos. Filhas dele, provavelmente.

— Mia, come isso! — disse Miguel, estendendo um espetinho de camarão empanado.

Ela pegou com naturalidade e deu uma mordida sem frescura. Os olhos arregalaram.

— Agora você — disse ela, oferecendo outro espetinho. Tinha cheiro de carne, textura de carne...

Miguel mordeu sem pensar.

Delicioso.

Definitivamente carne.

Provavelmente.

Bem, melhor não pensar muito nisso...

— Cerveja ou refri? — perguntou o dono da barraca.

Miguel pediu refri de melão.

No centro da barraca, um holoprojetor transmitia o noticiário do meio-dia. A imagem girava em 360°, clara de qualquer ângulo.

A notícia era a mais quente do dia: a falha da operação de limpeza no complexo de fábricas abandonadas do Distrito 8. A ação da polícia visava capturar integrantes de um novo grupo criminoso na área, especializado na fabricação e distribuição da nova droga sintética: Aurora Phase.

Mas tudo deu errado. Nenhum membro da gangue foi preso e não havia provas do envolvimento deles no local, exceto pelos maquinários que produziam a droga sintética, mas não dava para ligar isso aos suspeitos, não era o bastante.

Oito suspeitos escaparam, nove foram mortos no local — os nove eram freelancers sem ligação direta a gangue, e sete agentes da polícia militar morreram e um helicóptero foi abatido.

— Luna não mentiu — disse Miguel, tomando um gole do refrigerante. — Nossos rostos... estão censurados.

Na transmissão, todos os suspeitos apareciam com os rostos distorcidos. O trabalho de um hacker de verdade.

— Aquele Jorge... é bom — disse Mia.

Miguel lançou um olhar breve em sua direção. Ela parecia ter mergulhado em alguma lembrança, os olhos perdidos por um segundo.

— Que foi, Mia? — perguntou, tentando trazê-la de volta.

— É que... naquela hora — Mia hesitou. — Quando eu falei meu plano... era arriscado. Muito. Mas você confiou em mim sem hesitar.

— Ah... — Miguel coçou a cabeça, envergonhado.

Corou, desviando o olhar.

— Como eu poderia não confiar na pessoa que cuidou de mim por cem anos?

Os olhos de Mia brilharam.

O mundo desacelerou.

Suas pupilas se fixaram nele, dilatadas.

Miguel falara de forma tímida, quase casual, mas com uma sinceridade crua. Foi um voto de confiança total. Um reconhecimento profundo.

O rosto dela foi tomado por um rubor que ia de uma orelha a outra.

— … você é mesmo incrível — disse ela, quase num sussurro.

Miguel não respondeu.

Sabia o que aquilo significava pra ela. Sabia dos sentimentos dela — Mia já tinha se declarado.

E apesar da intimidade entre eles, apesar da leveza… ele não conseguia corresponder.

Gostava dela. Muito.

Mas ainda não era capaz.

Porque por trás da ironia, da postura descontraída… Miguel carregava luto.

Ele ainda pensava nela.

A dor veio rápido, queimando o peito. Um sufoco. Um nó na garganta. Um choro que quase escapou.

Mas ele engoliu tudo.

E sorriu.

Mia retribuiu o sorriso. Mas dava para ver o brilho de preocupação em seus olhos, quase como se ela tivesse lido os pensamentos dele.

♦♦♦

Ainda faltava muito tempo até a hora marcada com Luna.

Como não tinham nada para fazer, decidiram que seria indispensável conhecer esse mundo louco que estava completamente fora de suas expectativas.

O que deveria ser reconhecimento virou quase um passeio.

Funcional, ainda assim.

Claro que era impossível descobrir tudo que rolou nos últimos cem anos em apenas algumas horas, mas puderam constatar inúmeras mudanças e como teriam que proceder de agora em diante, afinal se misturar era muito importante.

A moeda ainda era o real. Porte de arma? Legal — e escancarado. Banners flutuantes mostravam até criança posando com fuzis.

Liberdade ou colapso? Difícil dizer.

O que barrava tudo ainda era o dinheiro.

Letreiros em LED pulsavam nas fachadas dos prédios, misturando línguas, cores e mensagens: de campanhas corporativas a alertas do governo sobre “comportamento antissocial”. Um holograma gigante travado projetava metade de uma mulher vendendo escovas de dente inteligentes e a outra metade era uma propaganda política de algum vereador com sotaque argentino.

As roupas tinham virado um delírio urbano. Tirando os engravatados, que ainda se agarravam aos ternos pretos. Casacos longos de corte militar dividiam espaço com jaquetas de vinil rasgado, ombreiras exageradas dos anos 1980, saias assimétricas, botas pesadas. Tecidos plastificados, couro sintético, lã industrial.

Neon escapava pelas bordas das jaquetas, colunas de vinil colado nas pernas, tecidos sintéticos brilhando fraco sob a luz suja da cidade. Couro gasto, transparência barata, muitas das roupas eram remendadas com fita adesiva, alfinetes, zíperes improvisados.

Miguel já tinha perdido a conta de quantos mamilos sob tecidos transparentes viu naquela tarde. Pudor parecia peça de museu.

A liberdade era tanta que beirava o absurdo — flertando com o que, cem anos antes, chamariam de atentado ao pudor. Agora? Era só terça-feira.

Lojas de brinquedos eróticos eram encontradas de forma banal, misturadas entre os mais diversos estabelecimentos, como se fossem boutiques ou farmácias.

Das versões básicas de paus de borracha, passando por alguns com design de chifre de unicórnio aos tentáculos giratórios com IA e funções que Miguel preferiu não investigar. Tinha bonecas hiper-realistas de todos os gêneros — ou misturas deles — em vitrines de vidro, com olhares vazios e pele perfeita.

Na primeira loja, Mia virou um tomate.

Depois de uns encontros repetidos com esse tipo de loja, tudo começou a parecer... normal.

Quase.

Entre um furto e outro, juntaram grana o suficiente pra comprar roupas novas.

Andar com uniforme tático no meio da cidade chamava atenção até ali.

Mia vestia agora uma camiseta azul ciano com um pandinha estampado, jaqueta puffer lilás, shorts jeans curtos, meia-calça preta e tênis branco.

Miguel escolheu algo discreto: camiseta preta, jaqueta de sarja cheia de bolsos, calça de material sintético e botas de cano médio.

Também compraram mochilas novas e guardaram nelas seus trajes especiais.

Era hora de se misturar de verdade.

O tempo passou rápido. Era informação demais, choque demais.

Notaram que a população era extremamente miscigenada.

Brasileiros e estrangeiros de todo tipo.

E a comunicação nessa sociedade?

Um caos funcional. Cada um misturava o que sabia: português, espanhol, inglês, russo, francês, japonês, iorubá. A pronúncia mista de tudo era um desastre — mas de algum jeito, todos se entendiam.

Parecia que uma nova língua tinha surgido.

E então...

Era hora de ir se encontrar com Luna.

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