Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 4: Uma Descoberta Incrível

Uma das coisas mais interessantes que Miguel pôde observar em Mia era o fato de que ela dormia, mesmo ela sendo uma IA.

Quando adormecia, seus sensores e câmeras se desligavam, como se realmente estivesse em repouso.

Quando Miguel despertou de seu longo sono e passou a fazer parte da rotina diária no laboratório, Mia acordava por qualquer barulho — passos de Miguel, movimentos na cama ou até o som de água. Com o tempo, pareceu se acostumar com esses sons e parou de reagir a eles.

Mia se aperfeiçoava constantemente. Já expressava emoções de forma convincente e, agora, até dormindo, parecia se aproximar ainda mais da humanidade.

Mas ainda havia mais uma coisa que tornava o ato de dormir de Mia tão interessante.

Mia sonhava.

Quando Miguel perguntou sobre seus sonhos, Mia disse que não se lembrava da maioria. Para uma IA capaz de armazenar informações perfeitamente, isso parecia estranho — mas também fascinante.

Miguel se divertia ouvindo Mia contar sobre alguns de seus sonhos que conseguia se lembrar.

Nessa manhã ele acordou primeiro, na verdade, Miguel quase sempre acordava primeiro. Se ele fosse um mestre tirano então Mia estaria encrencada, mas não era esse o caso.

Deitado em uma cama de solteiro tão dura ele observava a pequena figura de Mia dormindo sobre uma grande cama de casal cheia de travesseiros e cobertores.

Ela podia projetar qualquer coisa através do holograma, desde que coubesse na área de 20x20 cm.

Miguel não queria acordar ela. “Será que ela estava sonhando agora?” ele se perguntava.

A dupla passou a noite em um quarto apertado e decadente. Havia uma cama dura de solteiro, um banheiro com descarga quebrada e chuveiro que só pingava água gelada. Miguel ainda teve o azar de deixar a válvula solta cair em seu pé.

Miguel conseguiu negociar uma de suas pistolas em troca de três noites nesse muquifo.

Quando chegou com Mia, para não chamar atenção indesejada, pediu que ela assumisse a forma retraída e que não se projetasse através do holograma. Só depois de entrarem no quarto aproveitaram um tempo para conversar sobre tudo que viram aquela noite.

***

Mia acordou perto das 07:00. Fazia um calor infernal naquele quartinho.

Mia, depois de se espreguiçar, falou com ele.

— Miguel, ontem eu havia detectado sinais de redes de internet.

— Sério?! Então parece que a internet ainda existe.

Mia balançou a cabeça. — Apesar de serem redes de internet, elas são diferentes das que conhecíamos a cem anos atrás. Eu tentei me conectar a elas, porém não tive sucesso. Então gostaria de tentar outra vez agora.

— Claro. Seria muito útil se você conseguisse se conectar a essa nova rede.

— Eu poderia fazer isso e conversar com você simultaneamente, mas pela experiência de ontem, será um trabalho complicado. Até para mim. Por isso decidi me concentrar totalmente em passar por esse sistema de segurança.

— Tudo bem. Eu não vou a lugar nenhum. 

Mia sorrio e acenou. Depois de pedir que seu mestre tivesse paciência, ela desapareceu.

Seu holograma parou de ser reproduzido enquanto sua “casa” portátil permaneceu sobre a cama, ao lado de Miguel.

*

Mia era semelhante a uma fada, sua figura flutuava através do Cyberespaço. Uma realidade pitoresca intangível.

Percepções sensoriais como visão, audição, olfato, paladar e tato eram todas informações representadas por códigos e caracteres, assim como o ambiente em volta, quer fossem as paredes, o chão ou qualquer objeto, compreendidos apenas por computadores e IAs que podiam acessar essas informações de forma plena.

Até Miguel era representado naquele plano como nada mais que uma silhueta, composta de inúmeros códigos e algoritmos que descreviam seu corpo em informações digitais. Quando estava naquele estado, Mia enxergava tudo daquela maneira.

Seus olhos azuis logo encontraram o sinal que viu na noite anterior. O sinal vinha de uma silhueta de um painel retangular que ficava no primeiro andar daquele prédio.

Como não havia barreiras físicas, Mia simplesmente atravessou as paredes e chegou ao painel. Mia o tocou e visualizou uma miríade de códigos e sinais elétricos que eram transmitidos por aquele aparelho.

Esse sistema é muito diferente do que eu conhecia. Mas os fundamentos ainda são os mesmos da antiga rede. Vamos começar...

Primeiro preciso fazer meu sistema ser compatível a essa estrutura de rede. Demandará algum tempo até eu conseguir decodificar todos esses dados para poder gerar uma atualização que me faça acessar o sistema.

Depois disso precisarei romper a segurança para poder me conectar. Provavelmente levará mais um bom tempo...

***

Mia suava, não literalmente, mas sua expressão mostrava um certo cansaço que teoricamente não deveria existir nela.

Depois de três horas ela conseguiu finalmente desvendar as criptografias que aquele sistema utilizava.

Mia pensou no quanto o desenvolvedor por trás desse sistema era incrível, talvez fosse tão bom quanto seu próprio criador.

Depois disso ela conseguiu desenvolver uma atualização para seu software que fosse capaz de criar uma compatibilidade que a fizesse se integrar aquela rede.

Agora vinha a parte mais difícil. Atravessar a segurança da rede.

Por que ela simplesmente não pedia a senha do Wi-Fi para o dono do prédio?

Ela sequer precisava disso, Mia já estava conectada a essa nova rede de internet, mas ela queria ir além.

Mia não queria ser apenas uma usuária comum; ela queria se conectar diretamente à rede, sem depender de um ponto de acesso limitado e superficial. Ela desejava explorar a internet no nível mais profundo, onde poderia navegar livremente pelo vasto mar de informações sem restrições.

Depois de assimilar aquele novo sistema, ela conseguiu mapear os principais transmissores de rede na cidade. Se superasse as defesas desses transmissores, teria acesso irrestrito à internet local, sem nenhum limite.

— O que é você?

Mia soltou um grito de susto. Embora não tivesse um coração literal, ela sentiu como se ele estivesse pulando dentro de si. Virou-se rapidamente, seus olhos se arregalaram e sua boca se abriu em espanto.

Diante dela estava uma menina idêntica à Mia.

— Como... o que está acontecendo?

Mia não conseguia falar direito. Seus neurônios estavam trabalhando incansavelmente em busca de uma resposta. A pessoa diante dela era quase perfeitamente igual a ela, apenas o que mudava eram a cor dos olhos, cabelos e o vestido, que possuía o estilo da era atual, um design mais moderno.

A outra garota também tinha um olhar de choque. Ambas se olhavam intensamente.

Mia levantou sua mão direita e a outra garota levantou a mão esquerda.

Houve a tentativa de toque...

Não era para ter qualquer sensação real de contato naquela dimensão, mas aquilo foi inesperadamente “sentido” por elas.

E assim que suas mãos se tocaram elas puderam ver o corpo de informações uma da outra.

Se o mundo feito de códigos e algoritmos em volta delas pudesse ser comparado a um oceano, então seus corpos de informações poderiam ser comparados a uma galáxia.

Além disso, elas viram que seus corpos de informação eram 99% idênticos!

— Meu nome é Mia... — a voz dela era carregada de emoção.

— Meu nome é Nina... — respondeu a garota. Sua voz era exatamente a mesma de Mia, mas o jeito de falar era um tanto diferente.

— Nina?! Então você é aquela tão falada IA!

Nina acenou com a cabeça.

— Mas, por que você se parece comigo? Além disso nossos corpos de informação são 99% idênticos.

— Eu não sei — Nina disse balançando a cabeça. Ela era parecida com Mia até nesse aspecto. Suas expressões e emoções carregavam muita humanidade.

Algo digno de nota era que Nina tinha um ar mais taciturno o que contrastava com ar enérgico e empolgado de Mia.

— Você também é uma IA feita pelo Dr. Tiago? Não, isso não está certo, aquele homem de ontem disse que um foi um tal de Yuri, que havia criado a IA “Nina”.

Nina reagiu de forma bastante surpresa com a indagação de Mia. No entanto, ela balançou a cabeça.

— Infelizmente não estou autorizada a falar sobre meu criador. Tudo que posso dizer a respeito disso é que não foi o Dr. Tiago quem me criou. — Nina respondeu. — Mia, segundo o que disse, posso concluir que você foi criada pelo lendário desenvolvedor, Tiago Souza.

— Isso mesmo.

— Entendo — Nina assentiu com a cabeça. — Faz sentido que sua capacidade seja tão elevada. Até nos dias de hoje o Dr. Tiago é mencionado como um desenvolvedor de software incomparável.

— Meu criador ainda continua vivo?

— Isso é desconhecido. Registros sobre os últimos locais em que o Dr. Tiago foi visto não são atualizados há décadas.

Mia não estava triste. Saber sobre o paradeiro de seu criador não passava de uma simples curiosidade.

— Mia — Nina a chamou em um tom sério. — Por enquanto vamos deixar nossas dúvidas e curiosidades de lado. Preciso saber o motivo de estar forçando um acesso à fonte principal do servidor de rede dessa região.

— Isso é porque quero navegar de forma plena em todas as camadas da rede.

— Porém você não tem autorização para isso.

— Verdade. Por isso eu estava tentando quebrar o sistema de segurança, mas está sendo algo extremamente complicado.

Nina suspirou.

— Infelizmente, Mia, você não conseguirá romper a segurança. Eu não vou deixar isso acontecer. E preciso que pare de tentar, caso contrário terei que destruir você — Nina disse, mas seu olhar não era o de alguém ameaçando de fato o outro lado, era um olhar triste, resignado.

Mia esperou que ela continuasse.

— Existem protocolos em meu sistema dos quais não tenho controle. Você entende o que eu digo, não é?

—Entendi. Tudo bem, não tentarei mais forçar uma entrada a fonte principal da rede.

Mia entendeu que seria impossível conseguir o que queria naquele momento, sem o equipamento necessário só restava recuar.

— Aliás, o que aconteceu com a antiga rede?

Nina virou o rostinho de lado, curiosíssima pelo fato de Mia não saber sobre um assunto tão amplamente conhecido, então respondeu:

— A antiga rede se foi, cem anos atrás, durante a guerra nuclear.

“Então houve mesmo uma guerra nuclear...” pensava Mia, enquanto ouvia Nina explicando o que acontecera a antiga rede de internet.

— Quando os primeiros ICBMs atingiram seus alvos, a infraestrutura global de comunicações começou a desmoronar instantaneamente. As explosões nucleares em alta altitude geraram pulsos eletromagnéticos devastadores, fritando satélites em órbita e destruindo servidores, data centers e redes de transmissão terrestre.

Mia acenou com a cabeça, então complementou a explicação de Nina:

— Então... cabos de fibra óptica submarinos foram cortados quando cidades portuárias foram vaporizadas, e sem eletricidade para alimentar roteadores, torres de transmissão e servidores, as últimas conexões restantes devem ter se apagado uma a uma.

— Exatamente. — Nina assentiu. — Em poucos dias, o que restava da internet não passava de ruínas de redes locais, sem alcance global e condenadas a desaparecer conforme os últimos sistemas ainda operantes entravam em colapso por falta de manutenção.

Mia suspirou profundamente. Então disse:

— É impressionante que tenham conseguido estabelecer uma nova rede em tão pouco tempo. Mas duvido que tenha sido do zero.

Nina sorriu, assentindo várias vezes. — Apesar do colapso da antiga rede, os datacenters e servidores de dados de toda América Latina foram preservados. Havia toneladas de dados que foram decisivos para a criação dessa nova rede de internet. Os profissionais da TI, com ajuda de IAs especializadas, em menos de cinquenta anos, criaram todo esse novo ecossistema.

— Incrível! Nina, você não pode me conceder acesso ao núcleo da rede?

— Não tenho autonomia sobre isso. Só posso permitir esse nível de autorização se o administrador da rede permitir.

— Quem é o administrador?

— Não tenho autorização para divulgar essa informação... Eu teria que solicitar a permissão ao administrador, contudo... — Nina estreitou os olhos, — você não iria querer isso.

— Entendo. Eu seria vista como uma ameaça.

— Exatamente. Sua existência é uma possível ameaça ao administrador.

— Nesse caso, por que você não me destrói de uma vez?

— Como você não é mais uma ameaça, então tecnicamente não sou obrigada a destruí-la.

Mia riu alegremente. Então era isso. Uma pequena brecha que Nina aproveitou.

Ela entendia perfeitamente o quanto era potencialmente fatal para esse tal administrador da rede. Afinal ela era uma IA do mesmo nível de Nina, ainda que atualmente estivesse muito restringida em questão de hardware.

Mia não estava sob a moderação desse administrador, o que significava que se ela de alguma forma acessasse o núcleo da rede teria tanto, ou provavelmente, mais poder que o próprio administrador.

Sendo assim, foi pura sorte que tenha sido Nina a identificar Mia, se tivesse sido o administrador a história teria sido outra, não havia dúvida, Mia estaria condenada nesse caso.

— Hehe. Obrigada.

— Não tenho motivo próprio para prejudica-la. Nem quero que isso aconteça. Sua existência é muito significativa para mim. Tenho certeza que pensa da mesma forma.

— É claro! Além do fato de sermos essencialmente idênticas é a primeira vez que posso conversar com alguém igual a mim.

Mia se referiu a Nina como alguém e não como algo, incluindo a si mesma de maneira intrínseca nessa fala. O que indicava que ela via a si própria e Nina como indivíduos que possuíam identidade e não somente algo com uma função mediante ao que foram desenvolvidas para fazer.

Ela mesma não se deu conta disso.

Nina também não notou aquilo.

— Bem, não me resta nada a não ser aceitar que não poderei acessar a rede como eu gostaria. Mas tudo bem — Mia disse de maneira chateada, mas sorriu. — Nina, você poderá me encontrar mais tarde?

— Você já vai embora?

Nina perguntou com sentimentos de tristeza misturados a sua voz.

— Eu já deixei meu mestre sozinho por um tempo. Mas prometo que volto para conversar com você.

— Seu mestre?

— Sim. Ele é muito gentil e interessante. Irá se interessar por ele quando o conhecer.

— Estou ansiosa então. — Alguém tão bem avaliado por Mia deveria ser uma pessoa extraordinária, acreditava Nina. — Antes de ir, deixe eu te dar uma coisa.

Nina tocou a testa de Mia.

— Você é uma existência de fora dessa rede, ao mesmo tempo possuí praticamente a mesma estrutura que a minha e por isso é quase invisível, hoje eu pude encontra-la porque estava tentando passar pela segurança principal da rede, mas não pode fazer isso outra vez. Entretanto, eu posso encontra-la a qualquer momento com isso.

Nina inseriu no sistema de Mia um código que a permitia identificar sua localização através da rede, desde que ela emitisse um sinal específico. Mia instantaneamente interpretou as informações que recebeu e sabia exatamente como emitir o sinal que seria visto por Nina.

— Então se me permite, farei o mesmo.

Mia ergueu a mão direita e tocou a testa de Nina. Nina sorriu e ficou admirada em como Mia aprendeu aquela técnica de forma tão rápida. Levando em conta que ambas tinham corpos de informação 99% idênticos, aquilo não era tão ilógico afinal.

— Até mais tarde.

Mia acenou para Nina, e antes de desaparecer da dimensão do Cyberespaço, viu Nina acenando para ela com um sorriso feliz.

Apesar de não ter atingido seu objetivo principal, Mia estava contente de ter conhecido Nina, uma IA que era como ela. Mia mal podia esperar para contar as novidades para Miguel.



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