Volume 1
Capítulo 4: MAS QUE PORRA É ESSA?!
Assim que os pés tocaram o concreto frio do subsolo, ele ouviu vozes. Não murmúrios — discussões acaloradas que ecoavam pelo corredor mal iluminado.
— Eita, quanta barulheira — comentou a garota ao seu lado, com um sorriso que destoava da tensão no ar.
A longa trança carmesim dançava nas costas conforme ela andava, os passos quase saltitantes, como uma garotinha animada em meio ao caos. Era impossível ignorar aquele contraste.
— Tsc... Quanta bagunça fizeram dessa vez. O que a Luna tava pensando? — resmungou o rapaz.
Os cabelos do jovem também eram vermelho sangue, penteados num topete ousado que lhe dava uma aparência indomável. Caminhava firme, postura ereta, irradiando uma presença intensa — intensa demais para alguém que mal aparentava vinte anos. Tatuagens adornavam seu pescoço.
Seu sobretudo negro de material sintético parecia sugar a luz trêmula dos refletores de emergência. O capuz caía sobre a nuca, revelando um rosto pálido, quase albino. Vestia-se por completo de preto, como se quisesse ser engolido pelas sombras. Os olhos azuis claros, mas fundos e sombrios, completavam o quadro.
Ao lado dele, a garota — vestida exatamente igual — parecia sua cópia. Tinha a mesma pele clara e traços parecidos, mas com olhos opostos. Enquanto os dele eram túneis sem fim, os dela brilhavam como se o mundo fosse um parque de diversões. Pareciam sempre curiosos, alertas, famintos por novidade e ainda, coloridos como um arco-íris.
— A culpa deve ter sido daqueles idiotas — disse ela, empurrando os cabelos vermelhos para trás. — Mike e Tom nunca foram muito confiáveis.
— Pois é… Eu devia ter te ouvido, Vic.
— Hehehe... — Victoria riu baixinho, se agarrando ao braço dele. — Ah, tanto faz. Você sempre arruma tudo, mano.
Victor soltou o ar pelo nariz num meio sorriso. Eles cruzaram o porão sem pressa. O concreto úmido e a ferrugem das vigas traziam cheiro de mofo. Victor girou a maçaneta enferrujada da porta metálica e empurrou.
Um estalo agudo ecoou.
Do outro lado, parecia um matadouro. A luz fria do teto oscilava sobre a cena: Mike se debatia sobre uma mesa de aço inox, contorcendo-se em agonia, banhado no próprio sangue. Tom o segurava com força, enquanto as mãos ensanguentadas de Jorge moviam-se com uma fluidez antinatural — especialmente a direita, a prótese cromada com oito dedos articulados, segurando diferentes ferramentas: bisturi, agulha e fio, seringa, pinça e tesoura.
O braço esquerdo de Mike terminava em um coto envolto por ataduras grossas, e um maçarico jogado no chão denunciava como a ferida havia sido selada.
O cheiro de carne cauterizada ainda impregnava o ar.
Victor franziu o cenho, farejando o caos. Procurou Luna, a encontrou num canto, parecendo alheia à confusão, apesar de uma mulher alta de cabelos esverdeados berrando em seus ouvidos.
— Alguém cala a porra da boca do Mike! — berrou a mulher, a voz rouca de ódio.
Mas nem precisava do grito. Mike finalmente desmaiou de dor.
Em seguida, agarrou Luna pela lapela.
— Sua vaca! Meu irmão quase morreu e você deixou o filho da puta que fez isso ir embora! Eu devia te matar!
— Heh. Tenta. — Luna estapeou o braço da mulher, se desvencilhando. — E eu não o deixei ir embora. Vamos nos encontrar mais tarde.
— AHN?! Tá doida?! Bateu com a cabeça, caralho?!
— CHEGA! — gritou Victor, sua voz cortando o ar como uma lâmina. — Calem a boca um segundo. Dá pra ouvir vocês lá de cima.
Por um segundo, o silêncio reinou. Mas só por um.
— Oi, Luna! — disse Victoria, saltando de alegria. — Vocês tão em todos os noticiários! Caramba, que bagunça foi aquela?!
Victor suspirou fundo. Olhou para a irmã com uma exaustão fraternal. Fechou o punho, pronto para dar um cascudo, mas acabou abrindo a mão e acariciando os cabelos dela. Era mesmo um cachorrinho nas mãos da irmã.
Virou-se para Luna. O tom agora era frio, exigente.
— Luna... que porra foi essa? Vocês explodiram um helicóptero da polícia e mataram metade do batalhão deles.
Luna piscou devagar, ombros murchando. Suspirou.
— Mano... na real, a pergunta é: como fizeram isso?
Victor congelou por um momento. Olhou para Victoria, e sorriu. Ela era realmente diferente. Especial. Ele sempre acreditou nisso.
Virou-se novamente para Luna, a voz menos agressiva, apesar de ainda a manter fria.
— Me conta... o que realmente aconteceu lá?
Ele conhecia bem as capacidades daquele grupo. Sabia o que Luna, Jorge, Tom e Mike podiam ou não fazer. E aquilo que assistira nas notícias... Aquilo não tinha sido obra só deles.
Luna respirou fundo. Por fim, murmurou:
— Tivemos ajuda...
E então começou a contar, o que havia acontecido duas horas atrás.
♦♦♦
...é isso mesmo que vocês ouviram, meus amigos!
Enquanto a divisão de Narcóticos, acompanhada de um batalhão da Polícia Militar, realizava mais uma daquelas operações de “limpeza” num amontoado de fábricas apodrecidas no Distrito 8, o glorioso delegado Garcia, o próprio responsável pela segurança deste distrito, era flagrado bem longe da ação... na cama do amante.
E, pra surpresa de absolutamente ninguém que conhece o porco, ele estava vestido de carneirinho: cinta estourando nas banhas, orelhinhas tremelicando e — a cereja do bolo — um plug com rabo balançando entre a bunda enquanto Gabriel Zinn, astro do pop nacional e queridinho do povo, o chicoteava fantasiado de lobo mal!
Confiram as imagens a seguir!
Para a sorte e paz de espírito de todos, um metrô interrompeu a transmissão ao passar por entre o holograma.
... e enquanto nosso bravo defensor da lei era enrabado pelo novo ícone do pop, metade do seu batalhão era abatida por meia dúzia de mercenários. Isso mesmo. Eles perderam até a porra de um helicóptero!
A operação, que já se arrastava há três meses, terminou num fracasso retumbante. Não só falharam em impedir a produção da nova droga da vez — Aurora Phase, que tá vendendo mais que prótese peniana pra velho broxa — como também não prenderam um mísero suspeito.
Isso mesmo, meus caros: esses cosplays de polícia deixaram quase todos os criminosos escaparem e mataram todos que podiam servir de testemunha. Mas, ó... que grande novidade nessa cidade de merda, hein!
Outro metrô rasgou o holograma, interrompendo a transmissão da cobra de CGI — vestida num terno engomado, tragando um cigarro virtual enquanto destilava veneno sobre o escândalo da manhã. O trem atravessou os trilhos sobre o viaduto, desaparecendo entre outros que costuravam o céu da cidade.
Carros aéreos circulavam em várias direções, cortando o espaço entre colossos de concreto e vidro que se erguiam até quase furar as nuvens. Prédios. Megaprédios. Torres corporativas com intestinos de neon pulsando em suas fachadas.
Hologramas pairavam por toda parte — flutuando, girando, piscando — vomitando propaganda por cada canto: batons holográficos, brinquedos eróticos com IA integrada, hambúrgueres de proteína reciclada, armas que poderiam perfurar a melhor das blindagens.
Drones zumbiam feito enxames nervosos: alguns carregavam pacotes, sacolas de papel engorduradas; outros filmavam sabe-se lá o quê. Muitos transmitiam anúncios relâmpago direto nos olhos de quem ousasse olhar pra cima.
Era dia, em teoria. Mas o céu parecia uma poça de tinta cinza aguada, um filtro sujo que abafava qualquer esperança de luz natural. Ainda assim, tudo brilhava demais. As luzes artificiais gritavam — uma overdose de néon em tons berrantes, saturados, hipnóticos.
Dirigíveis cruzavam o espaço aéreo pesado, arrastando banners animados com os rostos sorridentes e frios de campanhas corporativas.
… e não percam! Ainda hoje, teremos a presença de Frantchesca Garcia, esposa do nosso querido delegado! Ela vai contar pra gente tudo sobre o relacionamento deles — ou melhor, o antigo relacionamento, porque no Orkit ela já anunciou que iniciou o processo de divórcio! Que bomba, hein, meus amigos? Aqui encerramos, meu nome é...
Outro metrô rasgou o holograma reproduzido pelos drones que flutuavam no centro daquela selva de concreto.
… e este é o Jornal Matinal da Neo Alvorada!
O holograma se desfez sozinho dessa vez. Os drones sumiram, evaporando no céu cinza-chumbo, perdido entre as nuvens sujas da cidade.
No topo de um prédio, duas figuras encaravam um panorama que parecia saído de um sonho distorcido. Estavam imóveis, como estátuas de mármore. Só dava pra saber que estavam vivos pelos olhos arregalados e pelos dedos trêmulos.
O ar frio, misturado com um cheiro enjoativo de perfume barato, gordura velha e fumaça, roçou o rosto de Miguel enquanto o vento bagunçava seus cabelos. Os olhos dele estavam estranhamente vazios — não, ao contrário, brilhavam, dilatados demais, como se sua mente não fosse capaz de processar aquele caos.
E a única coisa que ecoava dentro dele era:
MAS QUE PORRA É ESSA?!
Mia, ao lado, deveria estar sentindo exatamente o mesmo.
♦♦♦
— Luna, tem certeza? — perguntou Victor.
— Acho que sim. Quer dizer, não é qualquer um que encara de frente os caras do batalhão da PM. Todo mundo sabe o tipo de cromo que aqueles bostas carregam.
— Mas ele pode ter implantes militares também, não? — rebateu Victoria.
— Não. O cara não tinha um único implante no corpo — disse Jorge, direto. — Quando os sensores captaram os dois rondando a fábrica, conferi os dados. Corpo 100% orgânico.
Luna puxou o vaper e soltou uma nuvem doce e espessa antes de continuar:
— Na hora que ouvimos os gritos do Mike e corremos até lá… acho que ninguém reparou, mas os olhos dele tinham mudado. As pupilas e o branco do olho estavam quase todo carmesins. Veias saltadas ao redor da região ocular.
Ela se virou para o fundo da sala.
— Tom, fala aí. Como exatamente Miguel arrancou o braço do Mike?
Tom franziu a testa, hesitou, coçando o braço, mas acabou falando:
— Ele simplesmente... apareceu. A gente tinha prendido ele. Mas do nada, tava ali, bem na nossa frente. Mal consegui acompanhar o movimento. Só lembro dele puxando o braço do Mike e... arrancando. Simples assim.
Victor tirou um cigarro do bolso do sobretudo, acendeu com calma. Tragou e falou com frieza:
— Mesmo com o braço esquerdo do Mike sendo sintético, a força necessária pra arrancar um membro daquele porte ainda é absurda. E enfrentar um soldado de elite da PM no mano a mano, com corpo orgânico? Isso não é normal...
— Então… esse tal de Miguel... ele tem o Primordium? — sussurrou Rita, quase sem ar.
O silêncio caiu na sala.
— Talvez. Mas precisamos confirmar — disse Victor, soltando a fumaça devagar. — Luna, quando pretende se encontrar com ele? E mais importante... tem certeza de que ele vai aparecer?
— Quase certeza. Não... tenho certeza que ele vai me encontrar hoje à noite.
— É mesmo? E por quê?
— Instinto.
— Ok... e o seu instinto também diz que ele pode ser um aliado?
Luna acenou.
— Aliado?! Depois do que ele fez com o Mike?! — protestou Rita, furiosa. — Eu quero é matar esse filho da puta!
— Mike tentou estuprar a namorada dele. Miguel só reagiu — disse Luna, cruzando os braços. — Se alguém encostasse um dedo na Samira, eu teria feito pior. Muito pior.
— Foda-se, Luna! A Samira é uma pessoa de verdade, não uma boneca com alma artificial feita só pra ser fodida!
— E isso não torna tudo ainda mais impressionante? — Victoria se meteu.
Luna e Rita viraram pra ela — não só interrompendo a discussão, como também silenciando de imediato, como quem escuta alguém com voz de comando.
— Ué — deu de ombros, rindo como se fosse óbvio. — Se o cara arrisca tudo por uma… sei lá, boneca sexual, como a Rita chamou… uma coisa que, se quebrasse, ele podia simplesmente jogar fora e pegar outra… então imagina o que ele faria por alguém de verdade?
— Exatamente. Eu penso o mesmo — disse Victor. — Mas você também tem direito de estar puta, Rita. O Mike é seu irmão, no fim das contas. Mas isso não muda o fato: se Miguel é tudo isso que parece ser, ele pode virar um aliado poderoso. Coragem ou loucura, ele enfrentou os Crimson Wolf pela namorada. Não se vê esse tipo de coisa todo dia, ainda mais nesse poço de bosta que vivemos.
Todos assentiram. Até Rita, mesmo contrariada.
Mas Luna interrompeu:
— Tem outro detalhe... Miguel não faz a menor ideia de quem somos.
— O quê?! — gritou Rita.
Luna tapou os ouvidos. Que mulher irritante do caralho.
— Qualquer idiota de Neo Alvorada conhece a gente!
— Eu sei. Mas é isso mesmo que eu tô dizendo. Bom, pelo menos foi a impressão que eu tive. — Luna se jogou numa cadeira e apoiou as botas na mesa de inox onde Mike estava desmaiado.
Rita ficou a um passo de surtar.
Victor soltou um suspiro longo.
— Explica isso direito, Luna.
— Quando a gente se separou, eu disse onde deveríamos nos encontrar. Brinquei com ele... — ela se levantou, girou e apontou o polegar para o lobo estampado nas costas da jaqueta branca. — Disse: “É melhor você vir, ou a loba aqui vai devorar você.”
— Hahaha! Mas que bosta brega! — riu Rita. — Por acaso tá querendo dar pra ele, é?
Luna ficou vermelha. Nem tinha pensado direito quando falou, mas agora que lembrava... era brega mesmo. E meio sugestivo.
— Vai se foder, porra!
— Ih, ala! — Rita apontou para ela, se virando para Victor. — Cuidado, chefe, Luna pode te trocar por esse moleque esquisito aí.
Mais um suspiro de Victor. Tragou profundamente, como se buscasse alivio no tabaco que invadia seus pulmões.
— Luna não é namorada do meu irmão. E claramente ela não tá afim desse cara. Além disso, mesmo se fosse o caso, Luna pode ficar com quem quiser — disse Victoria, séria.
— Heh... mas todo mundo sabe que seu irmãozão vez ou outra come ela.
— E isso te diz respeito desde quando?
A frase de Victoria saiu afiada. Apesar da aparência muito jovem, sendo dez anos mais nova que Rita, bastou um olhar e aquelas palavras para calar a mulher. Ninguém riu.
— Tá. E o que rolou depois disso? — Jorge tentou mudar de assunto.
Luna voltou à cadeira, tragou o vaper e respondeu:
— Ele fez aquela cara de otário, tipo quando te mostram algo que deveria ser famoso, mas você não faz ideia do que é. Olhou o nosso emblema... e nada. Disse que não ia se atrasar e foi embora.
— Quanto mais você fala desse cara, mais confusa eu fico! Me dá um cigarro aí, Luna — disse Rita, coçando os cabelos verdes desbotados.
Luna mostrou o dedo do meio, mas jogou um cigarro pra ela mesmo assim.
— Mas Victor, você não tá totalmente errado.
— No quê?
— Miguel pode não saber quem somos, mas ninguém é tão burro a ponto de não reconhecer um policial. E ainda assim... ele não hesitou. Matou os filhos da puta sem pensar duas vezes.
A sala mergulhou num silêncio denso.
— Vou dar um jeito de recrutar ele e a garota. Nem que eu precise usar uns truques — disse Luna.
Victor assentiu.
— Tá, tá... mas agora fala logo! Como caralhos vocês derrubaram o helicóptero da polícia?! — explodiu Victoria, quase pulando de empolgação.
— Quem derrubou foram Miguel e a namorada dele. — disse Luna.
— Como assim? — até Victor se curvou um pouco pra frente, curioso.
Jorge explicou:
— A androide pediu acesso ao sistema da fábrica. A gente já tava na merda mesmo, então deixei. Depois que ela se conectou ao meu link neural, disse algo pro moleque... e ele saiu correndo. Pro meio do fogo cruzado. Um completo maluco! Mas funcionou... O helicóptero foi atrás dele. E do nada... BUM! Um container despencou lá de cima direto na fuselagem. Filha da puta! Um plano do caralho.
— Porra! Aquilo foi muito foda! Foi igualzinho o filme que a gente viu semana passada! — disse Tom, demonstrando um rara empolgação aos seus companheiros.
— Uau! Eles são incríveis! — Victoria estava vidrada.
Luna riu alto.
— Sabe, Vic... acho que você vai gostar dele. Vocês dois são muito parecidos.
— Hã? Sério? Em quê?
Luna estreitou os olhos e abriu um sorriso malicioso.
— Ambos são sonsos. Lobos em pele de cordeiro.
Enquanto ignorava a garotinha que mostrava a língua para ela, Luna foi puxada de volta à lembrança do momento em que escaparam da fábrica com Miguel.
O que foi aquele olhar...?
Ela nunca comentou com ninguém. Guardou aquilo só pra si.
A expressão de Miguel, ao ver a cidade logo depois que cruzaram os portões enferrujados, ficou gravada nela.
Miguel parou. Ficou ali, imóvel, olhos grudados no horizonte.
Como se todo o caos deixado para trás — o helicóptero abatido, os corpos da polícia no chão, o rastro de sangue e fumaça — não significasse nada perto do que ele via ali, na frente.
Que porra ele viu que o deixou tão chocado?
E por que perguntou onde ficava o Red’s? Todo mundo conhece a melhor hamburgueria do distrito 4...
Ele também não fazia ideia de quem a gente era.
Será que tô pensando demais? Deve ter vindo de outro estado. Só isso...
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