Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 3: Um Lugar Caótico

Miguel saltou da pilha de carros destruídos, espantando uma legião de ratos gigantes e baratas repugnantes que rastejavam entre os destroços. O som metálico de sua queda, ao atingir o teto de um sedan sem portas nem rodas, ecoou no silêncio do lixão, chamando atenção de um homem idoso que segurava as grades do portão próximo.

— Qu-quem é você?! — balbuciou o idoso, a voz carregada de medo. Ele estreitou os olhos para Miguel, avaliando-o com desconfiança, mas o que realmente o perturbava era a figura de Mia flutuando ao lado do garoto.

"Estou ficando louco?", pensou. A luz fraca do local não deixava ver o drone que projetava o holograma; ele enxergava apenas a menina diminuta, que parecia saída de um conto de fadas.

— Me desculpe. Eu estou um pouco perdido — Miguel se aproximou com os braços levantados, demonstrando que não tinha nenhuma intenção maliciosa. — Senhor, pode me dizer onde estou?

— Como assim? — o velho ficou ainda mais cauteloso.

Aquele estranho aparecer assim do nada em seu ferro-velho e ainda dizer aquelas palavras era suspeito demais, sem contar que o sujeito estava vestido como um militar e possuía armas.

Então o velho moveu seu braço para trás de seu corpo, sua calça jeans muito velha e folgada quase caiu, as sobrancelhas de Miguel se uniram ao ver o cano de um revólver sendo apontado para ele.

— Como entrou aqui? Quem é você? E que porra é essa aí do seu lado?! Que diabos é isso?!

O velho se referia, é claro, a Mia.

— Eu não sou “porra” ou “diabo” nenhum! — Mia apontou o dedo para o velho e gritou irritada. Miguel arregalou os olhos. — Sua mãe não te deu educação, não?!

Tanto Miguel quanto o velho ficaram sem palavras.

Mia, que media não mais que quinze centímetros, brigava com aquele homem idoso vestido em roupas surradas, sujas de graxa.

— ... — o velho não sabia o que dizer ou fazer. Estava totalmente perdido.

— Meu nome é Miguel, e esta é Mia. Ela não é uma pessoa de verdade... — explicou Miguel, esforçando-se para soar calmo. — É uma inteligência artificial, sua imagem é um holograma gerado pelo drone ao meu lado. Bom, essa é uma situação bastante peculiar. Eu realmente estou perdido, o fato de eu estar nesse lugar é pura coincidência.

O velho apertou os olhos. Estava cada vez mais desconfiado. Apesar disso ele ainda manteve o diálogo. Ainda que não tenha abaixado sua arma.

— O que quer dizer com isso? Você simplesmente apareceu aqui do nada?

— Heh... na verdade, é exatamente isso... — Miguel riu sem graça. — Eu sei que deve ser muito difícil para o senhor acreditar em mim, mas eu não sei onde estou nem como vim parar aqui. Espere! Espere! Eu juro!

Por um momento pareceu que o velho ia atirar, no entanto, ele observou Miguel e Mia por mais alguns segundos e guardou sua arma. Depois de ponderar ele achou que seria melhor não se envolver com esse estranho.

Ainda que fosse um garoto, ele estava muito bem equipado e armado. Mata-lo ali poderia trazer muitas complicações para sua vida. Por fim o velho abriu o portão e disse para Miguel cair fora.

— Ufa...

Miguel suspirou. Era um alivio não ter chegado ao ponto de terem que lutar.

— Miguel, desculpa — Mia tocava seus dedos indicadores de forma fofa enquanto se desculpava, tal gesto era acompanhado de brilhos sutis no canto de seus olhos.

— Não se preocupe com isso. Aquele velho que foi desrespeitoso com você.

Miguel disse de forma gentil. O comportamento de Mia gerou uma certa empatia excessiva nele, mas logo esse excesso empático recebeu um balde de água fria.

— Isso mesmo! Aquele velho miserável! — Mia resmungou depois de cruzar os braços e fazer bico. O rosto que instantes atrás era de arrependimento sumiu como se nem mesmo tivesse existido.

Miguel não pôde deixar de ficar atordoado. Contudo, ele riu da cara de pau de Mia. Mais uma vez ele se perguntou como o Dr. Tiago havia criado uma IA tão perfeita assim.

***

Enquanto andavam sem rumo, Miguel percebeu alguns olhares em sua direção, ou melhor, em Mia. Houve até pessoas que pararam de assistir aquele incidente com o avião para dar uma espiada em sua direção.

O rapaz não conseguia tirar conclusões a respeito do que estava acontecendo. Não parecia ser o caso dessas pessoas estarem vendo algo novo. O espanto e surpresa delas parecia ser em outra direção, mas Miguel não sabia o que era.

Mia também notou os olhares e ficou um pouco preocupada. Outra coisa também chamou atenção deles, aparentemente, a maioria das pessoas não parecia tão preocupada com aquela catástrofe ocorrendo, o que era muito esquisito e suspeito.

— Com licença — Miguel chamou um homem de meia idade, que parecia entretido gravando um homem e uma mulher brigando com chutes e socos no meio da rua, ao que tudo indicava o homem havia batido seu carro no carro da mulher.

— O que foi caralho?! Não tá vendo que tô ocupado aqui?! — o homem respondeu de maneira muito grosseira, Mia estava prestes a berrar de ódio, mas o homem havia se virado brevemente para olhar para a dupla e seus olhos se arregalaram quando viu Mia.

— Puta merda! Você tá com o novo modelo da Okitan?! Nunca vi uma Assistente Nina tão de perto! — exclamou o homem, cortando Miguel antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. — Isso é outro nível, hein! É um RISE, certo? Fibra de carbono, hélices retráteis... Ouvi dizer que o holograma é tão realista que parece vivo!

Miguel lançou um olhar rápido para Mia, que flutuava ao seu lado. 

— "Assistente Nina"? — Ele perguntou, franzindo o cenho.

O homem o encarou como se fosse óbvio.

— Ué, você não sabe? É o novo lançamento da Corporação Okitan! Essa belezinha veio pra substituir a Assistente Mel. Dizem que Nina é a IA mais avançada já feita. Absolutamente revolucionária! — Ele gesticulava com empolgação, parecia ser seu assunto favorito.

Miguel tentou manter a expressão neutra, mas a confusão só aumentava.

— Ah, sim... bom, Mia foi um presente de um parente — disse, coçando a cabeça e forçando um sorriso. — Acho que nunca me falaram o quanto ela era especial.

— Especial?! — O homem riu, incrédulo. — Cara, isso aí é foda pra caralho! É claro que é especial, foi projetada por Yuri, o maior gênio da Okitan. O cara reinventou metade da tecnologia que usamos hoje. Maninho, tu não sabe de nada mesmo, hein.

Miguel trocou um olhar intenso com Mia. Ela parecia tão surpresa quanto ele.

— Yuri... — Miguel murmurou, quase inaudível.

Ele estava certo de que Mia havia dito que o dispositivo RISE nunca fora lançado. Além disso, quem era esse Yuri? Ele pensava no Dr. Tiago, que sempre fora tão orgulhoso de suas criações. Não fazia sentido que algo desse nível fosse apropriado por outra pessoa.

“O que está acontecendo?”

O homem notou o silêncio e ergueu uma sobrancelha.

— E aí? Tá escondendo o jogo, né? Pagou quanto pro cara que roubou essa belezinha?

— Nada — respondeu Miguel, cortante, enquanto virava as costas e seguia em frente, levando Mia consigo.

Ela permanecia calada, algo raro, mas Miguel podia sentir a tensão no ar.

Miguel originalmente queria perguntar sobre o ataque terrorista, mas acabou perdendo o foco com a conversa daquele homem. De qualquer forma, ele teria tempo para investigar mais tarde.

***

Miguel avançava por um beco escuro e fétido, os passos ecoando contra paredes manchadas de grafites e um cheiro insuportável de urina e lixo. O som de passos abafados atrás dele o alertou. Seis homens surgiram, cercando-o em um semicírculo hostil.

Ele suspirou, cansado.

"Esse país está mais caótico do que nunca..."

Dois se aproximaram pela frente, os outros quatro fechavam a retaguarda. Suas roupas combinavam: calças largas estilo cargo, camisetas estampadas com figuras obscenas, e jaquetas brancas rasgadas que mal protegiam contra o frio.

— Ei, pirralho. Perdeu alguma coisa? Quer uma ajudinha? — disse o homem que liderava o grupo. Seu moicano rosa-neon brilhava sob a fraca luz do poste próximo, enquanto os dentes roxos reluziam em um sorriso vulgar.

Ao lado dele, um homem mais magro mantinha os braços atrás das costas. O cabelo alaranjado também em moicano, os braços tatuados com padrões geométricos. Ele segurava um cano de ferro.

— Você não é daqui, né? — continuou o de moicano rosa, inclinando a cabeça com falsa curiosidade. — E, sinceramente, não devia andar por aí com algo tão caro assim, — seus olhos se viraram para Mia.

— Obrigado pelo conselho. Algo mais? — A voz de Miguel era fria, seu olhar afiado.

O líder hesitou, seus instintos acendendo um alerta. Algo na postura de Miguel o incomodava: a calma excessiva, as armas no coldre, ou talvez os olhos, que o encaravam friamente.

"Ele tá sozinho... São só umas arminhas penduradas. A gente dá conta."

— Na verdade, sim. — O moicano rosa sorriu ainda mais largo, sacando um canivete da cintura com um movimento ágil. Ele fez um gesto com a mão livre, e os outros seguiram o comando, sacando pedaços de madeira, canivetes e canos de alumínio.

Sem aviso, os seis avançaram contra o rapaz.

O primeiro golpe veio de cima. Um pedaço de cano enferrujado cortou o ar onde Miguel estava um segundo antes. Com um passo para trás, ele escapou do ataque, enquanto o objeto atingia o chão com um barulho agudo, soltando faíscas.

Antes que o atacante pudesse reagir, Miguel se moveu. Um golpe rápido com a lateral da palma da mão acertou o pescoço do homem, que recuou segurando a garganta, o ar engasgado no pescoço. Girando o corpo com precisão, Miguel empurrou a nuca do homem, que tropeçou para trás, derrubando um dos companheiros.

O líder de moicano rosa mal teve tempo de reagir quando um soco cruzado atingiu seu queixo, lançando-o contra a parede grafitada. Ele deslizou até o chão, tonto.

Outro atacante tentou a sorte com um pedaço de madeira. Miguel se abaixou no último instante, o golpe passando por cima dele soprando seus cabelos. O homem girou demais, escorregou em uma poça de urina e caiu com um baque vergonhoso, a arma escapando de sua mão.

— Inútil... — murmurou Miguel, virando-se para outro que vinha com um canivete brilhante.

Com um movimento preciso, ele desviou o braço atacante para o lado, forçando o homem a perder o equilíbrio. Um golpe rápido na garganta o deixou ofegante, e um segundo, no queixo, o desorientou. Miguel finalizou com um chute certeiro no peito, lançando o homem para trás. Ele caiu desmaiado no chão sujo.

Miguel olhou para o restante do grupo, seus olhos estreitos, afiados como navalhas.

— Mais alguém? — perguntou, o tédio evidente em sua voz.

Os homens recuaram, apavorados, e o silêncio do beco retornou.

Sem mais palavras, Miguel virou-se e saiu caminhando tranquilamente. Mia, que observava a cena à distância, flutuou ao seu lado.

— Parece que ainda não recuperou nem vinte porcento da sua força — comentou ela, com um leve sorriso.

— Bem, estive dormindo por cem anos, é claro que estou enferrujado — respondeu ele, alongando o pescoço. — Que tal passarmos a noite ali?

O prédio apontado por Miguel era antigo e precisava de uma reforma urgentemente, possuía um grande letreiro escrito “Hotel Rio Roxo” feito com lâmpadas que brilhavam em um tom de violeta-neon.

— Parece que o prédio irá desabar a qualquer instante — murmurou Mia.

— É isso ou dormir na rua — disse ele com um sorriso amargo.

— Deveríamos mesmo ter saído de dia...



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