Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 3: Um lugar caótico

Luna, a ruiva que comandava aquele lugar, brincava com a pistola que pegara da mochila de Miguel.

Sugava seu vaper com a mão esquerda, soltando uma fumaça roxa que escapava pelo nariz e pela boca, enquanto atirava em latas e garrafas alinhadas sobre a carcaça enferrujada de um carro. A mira era boa.

— Luna, terminamos de analisar a garota — disse Jorge, o cabelo lambido colado na testa.

Luna deu um último disparo. A bala explodiu a última garrafa em estilhaços.

— Essa arma... é uma merda — resmungou, antes de virar-se. — E aí?

— Ela não é uma assistente Nina.

A resposta seca fez Luna franzir o cenho. O olhar de Jorge dizia que tinha mais.

— Continue.

— Tentando resumir... é como se fosse um protótipo. Uma versão experimental do que mais tarde virou a Nina. — Coçou a cabeça, ajeitando os fios grudados. — Pra um protótipo, até que é bem feita. A capacidade neural é quase no nível dos modelos atuais. Mas o corpo... é fraco.

— É mesmo?

Jorge deu de ombros.

— Perderia uma briga até pra sua irmãzinha.

Luna soltou uma risada pelo nariz, curta.

— Que porra tá rolando aqui? Quem é esse moleque?

Ela começou a andar em círculos lentos, pistola girando entre os dedos.

— Militar não é. Aquele traje é suspeito, mas nunca vi antes. As armas… bem construídas, mas o poder de fogo é de descartável.

— Também não é um sangue azul. Se fosse, a FEMI já teria vindo arrombar a gente — balbucio Jorge.

Luna parou. O olhar cortou em direção ao galpão enferrujado, onde o garoto e a androide estavam presos.

— E ainda por cima... onde o pivete conseguiu esse protótipo da assistente Nina?

Foi em meio ao seu soliloquio que ela ouviu um grito rouco vindo lá de dentro.

♦♦♦

Mike estava inquieto. Caminhava de um lado pro outro como um rato de laboratório em abstinência, esfregando as palmas suadas na calça engordurada. Seus olhos iam e vinham por Mia com um brilho febril, doentio. Olhava pra ela do mesmo jeito que se olha para algo raro... ou pior, completamente à mercê.

Ele já tinha passado um scanner de leitura a laser pelo corpo dela. As leituras estavam num terminal todo riscado, encardido, coberto de poeira fina. Mas não era mais por ciência. Não era mais por curiosidade técnica. Era outra coisa agora. Algo nojento.

— Bem... acho que precisamos fazer uma análise mais profunda, né?

Disse, mais pra si mesmo, com um sorrisinho torto. Os dedos tremiam, não de medo, mas de ansiedade. Sua respiração estava pesada, as narinas inflando devagar, como se saboreasse o momento.

Os olhos dele não piscavam. Só devoravam a garota de beleza imensurável à sua frente.

Mia ficou pálida, como se seu estomago estivesse revirando por dentro.

A expressão de Mike era de quem já havia cruzado a linha dentro da própria cabeça.

Mia tentou se afastar, mas Tom, o brutamontes, a segurava pela nuca como quem segura uma cadela raivosa. O aperto não era só firme — era dominador. Frio.

Ela gemeu baixo, uma mistura de raiva e pavor.

Foi aí que veio a voz demoníaca.

Cheia de ódio contido.

— Toca um dedo nela e eu arranco seu braço.

Mike parou na hora. O sorrisinho morreu. O corpo inteiro enrijeceu, como se tivesse levado um choque.

Tom piscou devagar. A mão dele ainda estava na nuca de Mia, mas agora tremia um pouco. 

Miguel ainda estava preso — contido por uma braçadeira de nylon, apertada ao ponto de marcar a pele, prendendo-o a um cano grosso e corroído pelo tempo.

Seus olhos negros, intensos, meio escondidos por uma franja desalinhada que caía em filetes sobre a testa. Tinham um brilho silencioso, frio — como lâminas molhadas sob a luz. E havia algo mais neles... uma profundidade que não pertencia a um garoto comum.

Não pareciam olhos humanos.

Pareciam fendas abertas no tecido da realidade.

Abismos antigos, disfarçados de pupilas, prestes a engolir tudo ao redor.

Mike bufou, indignado. Ser intimidado por um moleque dez anos mais novo e ainda por cima algemado parecia demais pro seu ego inchado. Riu, seco, sem humor, e lançou a Miguel um olhar carregado de escárnio.

— Vai fazer o quê, merdinha? — murmurou, e sem hesitar, deu um passo à frente.

A mão suja, tremendo levemente, subiu e apertou um dos seios de Mia por baixo da camiseta negra. Um gesto sórdido, cruel, como se quisesse deixar claro quem mandava ali.

O mundo parou.

Mike ainda sorria — ou achava que sorria.

O som dos caldeirões, do vapor que escapava pelas válvulas enferrujadas, virou um zumbido distante. O calor do galpão parecia dissolver no ar pesado.

E então, Miguel estava ali. Na frente dele.

Os olhos de Mike se arregalaram.

Miguel ainda deveria estar preso. Ele viu, viu claramente. Mas agora, parado a menos de um palmo de distância, Miguel o encarava com olhos negros que pareciam não conter fundo. Um vazio antigo, impassível, sem raiva ou misericórdia.

Mas além daquele olhar, havia outra peculiaridade que Mike não teve a chance de perceber...

Foi só nesse instante que Mike percebeu que seu corpo não respondia mais. Tentou se mover, gritar, qualquer coisa — mas era como se estivesse preso dentro de si mesmo.

A mão de Miguel se ergueu. Lenta, firme.

O ombro direito de Mike cedeu com um estalo seco.

Mas ainda havia mais.

O sangue explodiu do seu lado direito em um jato grotesco. Ele virou os olhos, puro reflexo, e viu... o nada.

O braço não estava mais lá.

Só um coto sangrando, pulsando desespero no ritmo do coração.

— AAAAARRRGGHHH!

O grito cortou o galpão como uma lâmina, se misturando ao vapor e ao cheiro adocicado da panela ao lado, criando um eco que parecia não ter fim.

Luna e Jorge entraram segundos depois. E congelaram.

A cena era brutal. Mike se contorcia no chão, sem um braço enquanto os olhos já perdiam o foco. Parecia um peixe morrendo fora d’água. E no centro de tudo, Miguel com uma pistola apontada para a testa de Tom.

E o mais aterrador: ele nem olhava para o brutamontes.

Os olhos de Miguel estavam cravados no corpo agonizante de Mike, sem piscar, sem demonstrar prazer, raiva ou pena. Apenas um vazio absoluto.

— Que porra tá acontecendo aqui?! — gritou Luna, sacando a arma.

Não teve tempo nem de mirar direito.

O disparo veio como um estalo seco. Um instante depois, gemeu de dor, apertando os dedos da mão direita como se algo tivesse os esmagado. A pistola voou da mão dela, rodopiando até bater com força contra o chão imundo.

Miguel nem havia mudado a expressão.

Jorge correu até Mike, ajoelhando-se ao lado do colega sem saber o que fazer. Estancava o sangue em desespero, tremendo. Miguel não o impediu. Nem mesmo olhou para ele.

Falou apenas:

— Eu disse que se ele encostasse um dedo nela, eu arrancaria o braço dele.

A voz veio baixa. Áspera.

Não havia grito ali, nem orgulho. Apenas constatação. Uma sentença proferida após o veredito já ter sido executado.

Luna ofegava. O suor escorria pela testa no calor sufocante do galpão. Seu corpo inteiro tremia como se estivesse no impasse entre correr ou lutar.

Foi então que os olhos dela se arregalaram ainda mais — como se só naquele instante tivesse notado a mudança nítida no rosto de Miguel.

O garoto a encarava — o mesmo olhar indiferente, os mesmos olhos escuros — mas agora com um carmesim se espalhando pelas pupilas e esclera. O rosto pálido parecia drenar cor a cada segundo, enquanto veias avermelhadas inchavam ao redor dos olhos, salientes sob a pele pálida.

— Você...!!!

BOOOMMM!

A explosão sacudiu tudo, como se o mundo tivesse desabado sobre eles. Os vidros do galpão explodiram com um estalo agudo, estilhaços voando como agulhas.

— Mia! — Miguel gritou.

Mesmo em meio ao caos, sua mente funcionava como uma máquina — foco absoluto. Um comando seco foi suficiente.

Mia reagiu no mesmo instante, quase no mesmo frame, se desvencilhando de Tom e correndo até Miguel.

— Luna! Fudeu! É a Narcóticos! — gritou Jorge, uma das mãos na orelha esquerda. — Eles explodiram a entrada!

— Foram vocês?! — rosnou Luna.

Miguel iria responder que não fazia ideia do que tava acontecendo, mas não teve tempo.

Mais explosões. Gritos. Disparos ecoando. Sirenes. E então, da névoa de poeira e luz estourada na entrada do galpão, surgiu uma silhueta negra. O sujeito carregava um fuzil fosco — um modelo que Miguel nunca tinha visto antes.

Ele ergueu o cano da arma. O dedo já no gatilho.

Os instintos de Miguel reagiram no mesmo instante.

Aquele desgraçado ia atirar. Sem hesitar. Sem aviso.

Em menos de um décimo de segundo, Miguel já havia decidido: era um inimigo. Alvo a ser eliminado.

Num único movimento — rápido demais para qualquer humano comum — ele ergueu a pistola e puxou o gatilho.

A bala cortou o ar, roçando os cabelos de Luna, quase tocando sua têmpora antes de atingir o capacete do invasor.

O disparo sequer arranhou o capacete do homem — uma carcaça negra, opaca.

Mas o impacto bastou para desviar sua mira.

Os tiros dele explodiram contra a panela industrial à esquerda, transformando o inox em peneira. O líquido espesso e multicolorido que estava dentro espirrou pelas frestas, tingindo o chão como sangue de vísceras alienígenas.

Luna arregalou os olhos, primeiro em puro terror. Miguel não havia hesitado nem por um segundo. Mas, ao ouvir os disparos atrás de si, entendeu: ele a salvara, mesmo que sem intenção.

O desvio causado por seu disparo salvara a vida dela. Os projéteis passaram tão perto que cortaram o ar junto à base da nuca dela — um centímetro a menos, e seria o fim.

Ela se jogou no chão, rolando, a mão mergulhando para dentro da jaqueta. Sacou sua arma — uma pistola robusta, semelhante a uma Desert Eagle do século passado, decorada com ramos de cerejeira e pintura rosa fosca.

— Bang!

O disparo rugiu como um trovão.

A bala rasgou o ar, atingindo o crânio do invasor com uma força brutal. A blindagem do capacete foi atravessada como papel. Miolos e sangue explodiram no ar como pétalas rubras de uma flor grotesca.

TÁ PORRA!

Os olhos de Miguel brilharam, um misto de surpresa… e inveja.

Luna riu. Mostrou a língua pra ele, atrevida, ainda ofegante.

— Onde você conseguiu essas arminhas de atirar feijão, hein? Até pistola descartável faz mais estrago.

Ela puxou Miguel pela manga, arrastando-o até uma cobertura improvisada.

— Jorge, qual a situação?

— Batalhão da PM, doze homens! Já bloquearam o portão sul, ainda dá pra sair pela ala leste!

Jorge respondia enquanto coordenava com sabe-se lá quem pelo comunicador.

— Quer vir com a gente? — Luna perguntou a Miguel, sem olhar diretamente. — Com essas arminhas aí, vão acabar transformando você e sua namorada em peneira.

— Do que tá falando, Luna?! Esse filho da puta quase matou o Mike! — protestou Tom, se aproximando com o corpo desacordado de Mike jogado sobre o ombro.

— Vamos resolver isso mais tarde! Temos que dar o fora daqui primeiro!

— Porra! — Tom berrou.

Miguel refletiu rapidamente.

Luna tinha razão. Ele viu com os próprios olhos: suas pistolas não tinham força nem pra arranhar direito o capacete daquele sujeito. E agora um batalhão inteiro cercava o local. Ele não conhecia aquele território, estava em completa desvantagem. Lutar ali seria complicado e Mia não era do tipo combatente.

— Tá. Vou com vocês.

Luna sorriu, acenando com a cabeça.

Contudo, Miguel notou o olhar ambíguo. A tensão curiosa que pairava em Luna.

— Miguel... — Mia chamou baixinho, colada a ele.

Ele apenas acenou, oferecendo um sorriso que não era um sorriso. Aquilo bastou. Ela não disse mais nada.

Pega isso. Mas devolve depois! Luna jogou a pistola para Miguel.

Ele a pegou no ar, surpreso. Era incrivelmente leve apesar do design robusto.

Sem perder tempo, Luna enfiou a mão no outro bolso interno da jaqueta e puxou uma segunda arma. Essa era branca, com rosas em alto-relevo entalhadas no corpo metálico.

Vamô! — gritou, já se movendo.

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