Volume 1
Capítulo 2: Expectativa x Realidade
Durante o último século Mia cuidou desse laboratório com o suporte de robôs de limpeza que controlava através do sistema principal desse lugar.
A água disponível no laboratório era completamente livre de impurezas. Abaixo do laboratório havia um grande deposito de água armazenada, que duraria por décadas contando com um sistema que a reciclaria sempre que fosse necessário.
Dois dias se passaram desde que Miguel acordou.
Mia e seu mestre passavam a maior parte do tempo conversando ou jogando. Miguel também praticava exercícios calistênicos a fim de recuperar logo seu condicionamento físico. Passar tanto tempo naquela câmara criogênica deixou seu corpo extremamente fraco.
Ambos também assistiam a filmes juntos e o único conteúdo que não foi acessado por Miguel até o momento foram os pornôs, Mia vez ou outra implicava com ele, dizendo que ele não precisava ter vergonha caso quisesse consumir aquele conteúdo, mas Miguel resmungava e dizia para ela parar de brincar com ele.
Miguel quase não fazia uso dos computadores daquela instalação, não tinha muito interesse nisso e quando queria descobrir sobre algo, perguntava diretamente a Mia.
— Miguel, quando iremos sair?
— Você parece bem ansiosa — Miguel disse com um leve sorriso.
— E você não ficaria? — Mia falou fazendo beicinho. — Estive neste lugar por cem anos, pense no quão entediante isso é. Estou curiosa sobre o mundo lá fora. Você não está?
Mia falava com olhos cheios de empolgação, como se estivesse falando em dar um passeio no parque.
— Claro que estou. Meu corpo já está quase bom o bastante — ele disse. — Mia, se prepare, sairemos depois de amanhã.
E assim foi decidido.
***
No meio tempo entre o dia da partida, Miguel arrumou tudo que iria levar consigo em sua jornada.
No mesmo armário que ele pegou as vestes brancas que usava, havia outro conjunto de roupas, no entanto, em vez de se parecer um pijama, tal roupa estava mais para uma vestimenta militar especial.
O uniforme negro se ajustava perfeitamente ao corpo de Miguel, cobrindo-o por completo. Ao testá-lo, percebeu a robustez da malha, resistente e surpreendentemente flexível. Seus movimentos permaneciam fluidos, como se a roupa fosse uma extensão natural de seu corpo.
O colete que cobria seu tronco era rígido, porém, leve, assim como as cotoveleiras e joelheiras. O cano longo dos coturnos de couro sintético cobria metade de suas canelas.
Miguel ficou um tempo vestido com esse uniforme de combate, se acostumando a ele. Além disso, no outro armário, ao lado desse com as roupas, haviam armas de fogo, armas brancas, munições e granadas. Ele guardou duas pistolas, munições e algumas granadas dentro de uma mochila. Estava pronto para sair dali.
Enquanto isso, Mia terminava os ajustes finais para deixar o laboratório com Miguel no dia seguinte.
Sobre uma bancada de trabalho havia um pequeno aparelho, semelhante a um smartphone de sete polegadas. Uma das pontas de um cabo se conectava a esse aparelho enquanto a outra ponta se conectava ao computador principal da instalação subterrânea.
No monitor daquele mesmo computador conectado ao smartphone, zeros e uns, letras embaralhadas e outros caracteres inundavam a tela de fundo preto. A velocidade com a qual surgiam era tamanha que pareciam estar se emaranhando no monitor.
Mia naquele momento havia desaparecido temporariamente. Ao menos da vista dos humanos. Mia estava em outra dimensão, uma dimensão onde dezenas de milhões de caracteres azuis ciano inundavam sua volta como se não houvesse fim.
No Cyberespaço Mia mexia as mãos para coordenar cada bit, letra e código daquele plano — não que ela precisasse — parecia que ela gostava de fazer aqueles gestos, como uma maestra de uma orquestra.
O procedimento foi concluído em menos de uma hora.
— Mia? — Miguel a chamou assim que todos aqueles caracteres e símbolos desapareceram do monitor.
— Estou aqui.
Mia então surgiu, como um holograma, tendo sua imagem sendo produzida a partir do dispositivo acima da bancada de trabalho, que naquele momento tinha a aparência de um pequeno drone e flutuava diante de Miguel.
Sua imagem era tão realista que, à primeira vista, parecia um ser humano de carne e osso. O único detalhe que quebrava essa ilusão era o tamanho: com apenas 15 centímetros de altura.
Ela girava no ar, como se fosse um fada. Sorria alegremente fascinada com sua própria imagem.
Obviamente era impossível tocar seu corpo, mesmo assim Miguel não pôde resistir e tentou toca-la. Seus dedos atravessaram o holograma, e por um segundo ele sentiu um vazio estranho. Era como se a realidade estivesse zombando de seus instintos humanos.
— Miguel! Não faça isso! — Mia reclamou, ajeitando a pose.
Ele riu sem jeito, mas a sensação ficou. Mia era real o suficiente para ser sua amiga, mas jamais seria algo tangível.
— Desculpa! — Miguel se desculpou rapidamente. — Esse aparelho, o velhote também o criou?
Mia assentiu e disse:
— O nome do aparelho é Radiant Intelligent Synthetic Entity. — Mia fez uma pausa e acrescentou, com um sorriso meio constrangido: — Segundo o Dr. Tiago, "os brasileiros adoram pagar pau pra gringo", então ele escolheu um nome em inglês. Achava que assim venderia melhor...
— É bem a cara dele...
— Oficialmente nunca foi lançado. E, bom, o nome é bem grande, por isso pode chamar apenas de: RISE. Mantive as siglas do inglês porque soa mais legal.
O dispositivo RISE era feito de um material muito resistente, que ao mesmo tempo era leve e possuía um hardware e software com tecnologia de ponta, Miguel não se lembrava de ter visto nada parecido na época antes do incidente que o trouxe aqui.
O aparelho ainda possuía uma bateria nuclear compacta que, segundo Mia: “funcionária por décadas"
RISE tinha duas formas: como drone, Mia se movia livremente, explorando o ambiente; retraído, o dispositivo lembrava um smartphone, discreto o suficiente para ser carregado sem chamar atenção.
Mais tarde Miguel notou que na vestimenta militar preta, havia uma base imantada com o formato exato para encaixar o RISE em seu formato retraído. A base ficava na região entre o ombro direito e o peito. Sua mãe e Dr. Tiago realmente pensaram em tudo antes de colocá-lo ali.
***
A porta de segurança do laboratório foi aberta.
Miguel atravessou o portal, já equipado com sua vestimenta militar e mochila carregada de suprimentos para a viagem.
Suas duas pistolas estavam guardadas em um coldre duplo no peitoral. Uma faca, presa ao suporte em sua perna direita, completava o equipamento.
Mia, em sua forma de drone, o acompanhava flutuando um pouco acima de seu ombro e iluminava o caminho adiante.
Eles caminharam por um tempo, atravessando um corredor extenso com paredes e teto feitos de concreto, não havia qualquer fonte de iluminação exceto a que vinha da lanterna de Mia.
No que parecia ser o fim daquele corredor eles encontraram uma escada de concreto rachado. Era de fato o fim.
Uma porta enorme e circular, feito de aço, semelhante a uma de cofre de banco se apresentou diante deles. Ao lado da porta havia uma alavanca coberta de poeira e teia de aranha, Miguel puxou a alavanca despreocupadamente, a porta começou lentamente a se abrir...
— Será que vai ser como naqueles filmes do século passado? — Mia perguntou.
— Um mundo completamente devastado? Quem sabe... cem anos se passaram. É difícil prever o que pode ter acontecido nesse último século. Mas, eu acho que sim. Talvez um deserto... cidades em ruínas...
Um rangido alto fez Miguel expressar uma careta, para sua surpresa viu Mia ao seu lado, também tampando os ouvidos com uma carranca.
“Mia é mesmo uma existência curiosa...” ele pensou.
Terra e entulho começaram a vazar para dentro, sujando todo o caminho e quase obstruindo a saída. Assim que a porta abriu completamente, foi preciso que Miguel sujasse suas botas e luvas ao cruzar toda aquela sujeira.
Após sair e se deparar com o que parecia ser um ferro-velho ele tomou o cuidado de fechar a porta e esconder aquela entrada com a terra e o entulho que havia ali. Foi depois de ter conseguido camuflar a passagem e andar um pouco que seus olhos capturaram uma cena bizarra...
O céu estava escuro, obviamente era noite. Não havia estrelas no céu, ou melhor, não dava para ver as estrelas.
Nuvens acinzentadas cobriam o horizonte até onde os olhos conseguiam enxergar. Apesar disso não estava escuro, muito pelo contrário, tudo estava muito brilhante!
Centenas ou mesmo milhares de luzes multicoloridas brilhavam intensamente de todas as direções.
Inúmeros edifícios se faziam presentes naquela paisagem onírica, alguns deles eram tão altos que ultrapassavam as nuvens cinzas e seu topo sequer podia ser visto.
Entre todos esses prédios havia banners, outdoors, painéis de led, hologramas que exibiam inúmeras imagens, grande parte propagandas das mais variadas coisas.
Drones também reproduziam hologramas com imagens aleatórias, notícias e mais anúncios.
Miguel não estava tão longe daquela cidade que via. O bunker de onde saiu se localizava originalmente em uma área deserta adjacente a uma rodovia próxima a Brasília, contudo, atualmente parecia que esse lugar estava sendo usado como um grande lixão.
Havia muitas carcaças de automóveis espalhados ali, carros e motos, televisões, diversas maquinas domésticas, robôs, drones, gabinetes de computador, além é claro de lixo; pilhas de sucatas e resíduos plásticos, metálicos e orgânicos se misturavam em várias pequenas e grandes montanhas de detritos.
De lá Miguel também pôde ver que a cidade contava com um sistema de metrô cujas linhas cruzavam acima do solo e até passavam por cima de viadutos. Diversos metrôs cruzavam por entre prédios e havia uma estação bem próxima do lugar onde Miguel estava.
No entanto, a cena mais chocante sem dúvida pertencia a um pequeno avião comercial que passou por cima de Miguel e Mia, essa última soltou um grito de susto.
O fato era que esse avião além de estar a uma altitude tão baixa ainda se encontrava em chamas, indo em direção daquela cidade.
O avião, em chamas, cruzou o céu como um cometa.
"Cuidado!" Mia gritou, flutuando para trás instintivamente.
Miguel observava em silêncio, o som crescente das turbinas ecoando em seus ouvidos.
E então aconteceu.
— BOOOOMMMM!!!
A colisão foi ensurdecedora, engolindo os prédios em uma bola de fogo que ofuscou por alguns segundos a miríade de luzes da cidade. O avião se chocou contra três edifícios que foram construídos muito próximos um do outro, interconectados através de pontes feitas de aço e vidro.
Miguel subiu em uma pequena montanha de carros abandonados para ver o desenrolar daquela situação.
Não demorou nem um minuto para que sirenes fossem ouvidas por Miguel e Mia. Caminhões dos bombeiros corriam desesperadamente entre um trânsito carregado de automóveis. Veículos voadores com turbinas horizontais voavam em direção aquele desastre.
Diante daquela circunstância, muitas pessoas começaram a parar seus carros e motos para gravar ou tirar foto dos prédios e avião em ruinas com seus smartphones, o que acabou criando uma confusão pelo fato de estarem obstruindo o trânsito, gerando brigas e mais desordem.
Os transeuntes também paravam para gravar tudo, tanto a cena do avião quanto as brigas que se desencadeavam na rodovia. Em dado momento sons de tiros foram ouvidos e é claro, gritos de pessoas assustadas.
O cenário que se desdobrava diante deles era muito diferente do que Miguel e Mia haviam imaginado. A cidade de arquitetura tão vertical parecia saída de um futuro distante, onde a tecnologia avançada moldava cada detalhe. No entanto, o que testemunhavam naquele momento era ainda mais surpreendente do que a própria visão da metrópole.
Foi naquele momento que a imagem de uma pessoa surgiu em formato de holograma criado por drones que sobrevoavam a área daquele ataque.
Era um homem por volta de seus sessenta anos, calvo e com cicatrizes em seu rosto. Seu olhar era terrivelmente assustador e sua voz grave.
— Meu nome é Magnus. Mas muitos de vocês já me conhecem! Esses porcos da Farmacêutica Mendes acham que podem brincar de Deus? Não mais! Dois anos atrás, na última epidemia, milhões morreram por culpa desses filhos da puta! Disseram que não havia vacinas para todos, mas a verdade é que só quem não podia pagar por uma dose da vacina foi quem morreu. Esses bastardos não merecem ter todo esse poder! Essa é uma mensagem para todos que como eu estão indignados com o governo suj—
O holograma desapareceu, os drones usados por esse tal Magnus foram destruídos por metralhadoras de drones que pertenciam à polícia.
— O que é tudo isso...
Mia tinha olhos arregalados, sua boca pequena estava tão aberta que caberia um ovo dentro, claro, se ela tivesse o tamanho de um humano de verdade.
Se Miguel a olhasse nesse momento pensaria dez vezes antes de dizer que tal olhar perplexo se tratava de uma emoção simulada.
Para o bem ou para o mal, Mia era aterrorizantemente semelhante a um ser humano.
— Eu não sei. — Miguel respondeu. — Que porra é essa... esse é mesmo o Brasil?!