Volume 1
Capítulo 1: Após Um Longo Sono
As luzes do laboratório acenderam uma a uma, espantando a escuridão daquele ambiente. A sala, um refúgio tecnológico isolado do mundo exterior, brilhava em tons frios. Bancadas impecáveis sustentavam os computadores que ligavam silenciosamente.
Os diversos monitores piscaram com inúmeros códigos, até que, de repente, o sistema operacional tomou conta das telas, revelando sua interface brilhante.
O teto e as paredes laterais estavam cobertos por painéis de LED, suas luzes pulsando levemente, criando sombras geométricas no chão. Era um verdadeiro paraíso para amantes da tecnologia. Poucos lugares no mundo poderiam rivalizar com esse.
No centro do laboratório, porém, algo quebrava a simetria.
Uma câmara criogênica imponente erguia-se, inclinada. Dentro dela, um rapaz magro de cabelos negros flutuava em um líquido azulado e viscoso. Seu rosto estava coberto por uma máscara de estabilização criogênica, e tubos transparentes serpenteavam por seu corpo nu, conectando-o à máquina que sustentava sua vida.
A câmara, um misto de aço, fibra de carbono e vidro reforçado, era uma obra-prima da engenharia. Décadas haviam passado desde que o jovem foi selado ali. Nutrientes fluíam pelas mangueiras, mantendo seus órgãos em perfeito equilíbrio, enquanto o laboratório ao seu redor continuava quieto.
Apesar de o garoto ser a única presença humana, o laboratório permanecia impecável. Não havia poeira, manchas ou sinais de descuido. Alguém estava cuidando de tudo.
Ou melhor, algo.
Mia, a inteligência artificial que governava aquele lugar, fora projetada para cuidar do garoto, proteger o laboratório e garantir que tudo permanecesse estável até que ele finalmente despertasse.
E esse dia havia chegado.
Sua voz ecoou pelos alto-falantes, vibrando com uma energia alegre. A figura dela, projetada em cada tela, era a de uma jovem de dezesseis anos. Cabelos azuis, olhos do mesmo tom celeste, e traços perfeitamente simétricos.
Sua presença preenchia o laboratório, dos robôs de limpeza que deslizavam silenciosamente pelo chão aos sistemas complexos que controlavam cada dispositivo. Nada escapava ao seu comando.
— Eu esperei tanto tempo! — exclamou, os olhos brilhando com uma antecipação contagiante. — Finalmente! É hora de acordar, mestre!
Mia gesticulou com a mão direita. Era um gesto desnecessário, já que podia dar o comando com sua consciência. Mas, para ela, aquilo parecia natural, como se sua programação ignorasse essa redundância.
Então o líquido azul começou a ser sugado por tubos metálicos conectados à câmara criogênica. Em poucos segundos, a substância viscosa desapareceu, deixando o interior completamente limpo.
Em seguida, braços robóticos se estenderam do teto que acabara de se abrir. As mangueiras feitas de metal e plástico foram cuidadosamente removidas do corpo do garoto, por fim ele teve sua mascará também removida.
— Mestre, acorde. Está na hora de se levantar.
“Mestre...? Quem é esse... mestre? De quem é essa voz? Onde estou...?”
Pensava o garoto, enquanto lutava para abrir os olhos que estiveram fechados por tanto tempo. Ele também tentava se mexer, mas seu corpo estava muito pesado por algum motivo que ele não entendia.
— Tenha calma, mestre. Logo seu organismo irá se recompor — Mia falou. Ela analisava o diagnóstico do rapaz feito por alguns dos instrumentos do laboratório.
— Quem é você? Onde estou? — perguntou o garoto, conseguindo com muita dificuldade ficar em uma posição sentada. — O que aconteceu comigo?
O garoto ergueu a mão para proteger os olhos da luz fria que o cegava momentaneamente. Conforme sua visão ajustava-se, ele começou a reconhecer o ambiente estranho ao seu redor.
Não havia ninguém ali, a voz que ouvia era transmitida de algum autofalante presente nesse lugar cheio de computadores.
A pessoa que falava com ele era uma garota um pouco mais nova que ele, entretanto, a garota era vista de um grande painel que transmitia sua imagem onírica. Sua beleza era surreal.
— Meu nome é Mia. Sou uma IA desenvolvida pelo Dr. Tiago, instruída a cuidar de você, meu mestre — Mia respondeu. Então logo prosseguiu: — O senhor está aqui.
Mia apontou para um dos painéis. Um mapa apareceu, então ela continuou:
— Este laboratório está localizado nessa região do Distrito Federal. É basicamente um abrigo subterrâneo, construído a sessenta metros abaixo do solo.
— Certo — o rapaz disse, acenando com a cabeça, mantendo uma calma extraordinária. Então ele perguntou: — Mia, você é realmente uma IA?
Mia deixou seu rostinho oval cair de lado, piscando algumas vezes com a testa ligeiramente franzida, ela perguntou:
— Sou, por que?
Essa afirmação seguida por uma pergunta deixou o garoto um pouco chocado. Tal pensamento brotava nele: “Esse tom de voz, a maneira como ela falou, sua expressão, olhar, jeito... Mia é mesmo uma IA...?”
— Haah... — ele suspirou, lembrando-se do que ela tinha dito anteriormente ele falou: — É mesmo, foi o Dr. Tiago que a criou. Isso explica muita coisa... Tudo bem, agora me fale, o que aconteceu comigo para eu vir parar neste lugar?
Ele olhou para si mesmo, seu corpo gradualmente recuperando vigor. O fato de estar completamente nu na frente de Mia não parecia o incomodar tanto. Ele não era um tarado exibicionista, apenas que seu semblante sereno camuflava seus verdadeiros sentimentos.
— Foi a mãe do senhor que o trouxe pra cá. Quanto ao motivo, posso apresentar uma hipótese que acredito ser a provável para os motivos dela.
Mia falou e quase no mesmo instante o rapaz se levantou, ficando de pé na frente da câmara criogênica.
A garota arregalou os olhos e apertou os lábios. Suas mãos ficaram agitadas enquanto ela agarrava e soltava seu vestido azul. Por um momento ela engoliu em seco ao passo em que seus olhos cristalinos vislumbravam o corpo do garoto diante dela. Apesar de magro, seus músculos eram extremamente definidos e densos.
Tal reação deixou o rapaz ainda mais estupefato, “essa IA, é mesmo uma IA?” ele se perguntava novamente. O comportamento que ela apresentou era o mesmo que uma garota tímida olhando pela primeira vez o corpo desnudo de alguém do sexo oposto.
Por conta disso, ele começou a sentir um pouco mais de vergonha.
— Mia, onde posso encontrar roupas para eu me cobrir?
— ... ah! Isso, sim... desculpe, mestre — Mia desviou seus olhos com o rosto sendo tingido de carmesim. — Elas estão ali dentro.
— ...
Havia um compartimento semelhante a um armário na lateral direita do laboratório. O rapaz abriu as portas feitas de plástico rígido e pegou algumas roupas que lá havia. Depois de se vestir com um conjunto muito simples de roupas brancas ele voltou a falar com Mia.
— Então, Mia — começou o garoto —, poderia parar de me chamar de mestre ou senhor, é estranho pra mim. Pode me chamar só pelo meu nome.
— Tudo bem, mest— Miguel... é um pouco complicado, hehe.
— ... tem certeza que você é mesmo uma IA? — ele perguntou quase involuntariamente.
— Sim. Bem, fico feliz que o mes— que você me considere tão humana — ela disse com um sorriso lindo em seu rosto.
Miguel acabou soltando um suspiro cansado. — ... haah... e então? Qual é a sua hipótese para minha mãe ter me colocado nesse lugar? Aliás, antes disso, me responda, faz quanto tempo que estou aqui?
— Exatamente 36525 dias.
— Cem anos... — Miguel balbuciou, sentindo sua vista escurecer por um momento. Suas mãos se apertaram ao ponto de se ouvir estalos, contudo, ele respirou fundo e rapidamente se acalmou.
Mia mantinha seus olhos em Miguel o tempo inteiro, ficou muito impressionada com o controle emocional dele, bem, ela já tinha alguma noção de suas capacidades por conta dos dados disponíveis no laboratório, no entanto, ainda era algo a ser admirar.
Depois de pegar uma cadeira para se sentar Miguel fechou os olhos, levou a mão ao queixo e refletiu por um tempo, Mia não disse nada, a garota apenas aguardou, não queria atrapalhar os pensamentos dele.
Depois de um tempo Miguel falou:
— Cem anos atrás o mundo estava quase em colapso por causa do Parasita Primordium. Apesar das ditaduras que se estabeleceram para manter o controle da população em quase todas as nações, as guerras civis ainda pareciam sem fim. Além disso, naquela época, os Estados Unidos e a China guerreavam acirradamente pela hegemonia do Parasita Primordium. Houve dois confrontos sangrentos onde ambas as nações utilizaram de alto poder militar, mas ainda sem usar mísseis balísticos intercontinentais.
Miguel se levantou da cadeira e andou ao redor, sem direção clara, olhando em volta, analisando, refletindo. Uma ideia surgiu em sua mente...
— Essa instalação está a sessenta metros abaixo do solo... um bom lugar para se abrigar de ondas de choque, radiação e calor provenientes de bombas nucleares... foi isso que aconteceu, Mia? Uma guerra nuclear? Por isso minha mãe me colocou aqui?
Mia sorriu levemente, acenando com a cabeça. “Como esperado dele” ela pensou.
— Não tenho certeza absoluta. Mas cheguei a mesma conclusão que você e acredito que essa, de fato, seja a resposta para o que aconteceu cem anos atrás. Há sensores conectados ao sistema desse laboratório capazes de monitorar a radiação no ar até uma distância de alguns quilômetros. Fiquei de olho neles durante todo o último século. Durante o primeiro ano em que esteve aqui, os níveis de radiação atingiram um grau extremamente letal para a vida humana e animal. Algo assim só seria possível devido a consequência de acidentes em usinas nucleares ou bombas nucleares, mas considerando a escala, eu arriscaria dizer que é a última opção.
“Somente após três décadas os níveis de radiação abaixaram ao ponto de serem considerados não letais aos humanos. E assim, gradualmente ao longo desse último século, a radiação no ar se dissipou.”
Mia não afirmava sua hipótese, mesmo que a chance de estar correta fosse alta. Afinal ela só poderia afirmar se tivesse uma prova definitiva do cenário deduzido por ela e Miguel.
Foi então que o rapaz percebeu algo implícito nas palavras de Mia.
— Mia, você não pode se conectar à internet? Mesmo para uma guerra dessa proporção, ainda seria possível estabelecer alguma conexão, por mais limitada que fosse, além disso, já se passou cem anos, deveria ser possível restaurar um parte da rede global. Se o que sabe parte apenas de uma suposição, isso quer dizer que você não tem acesso a nenhuma rede de internet para buscar novas informações?
— É exatamente isso, não consigo me conectar à internet. É como se ela simplesmente não existisse mais.
Algo assim era mesmo possível? Apesar de Miguel estar cético, não parecia que Mia estava mentindo para ele.
— Tudo bem — Miguel suspirou resignadamente. — Mas queria saber por que minha mãe me deixou aqui sozinho... se ela sabia dessa provável guerra, por que não está aqui comigo?
— Muito provavelmente algo a impediu. Contudo, é da sua mãe que estamos falando. A chance de ela estar em um lugar seguro como esse é alta e assim como você, a senhora Sara não deve ter envelhecido nenhum pouco, afinal, o organismo dela é ainda mais especial que o seu.
Miguel assentiu. Boa parte de sua tensão estava desaparecendo.
— Por falar nisso, agora tenho cento e dezessete anos, hein...
— Mesmo que seja verdade, sua aparência não mudou nada. Seu organismo envelheceu apenas dez meses. Continua muito... — Mia corou e disse baixinho: — Bonito...
Miguel sorriu coçando a bochecha sem jeito e acenou com a cabeça.
— Não dava para ter me acordado antes? Cem anos... é muito tempo.
— Foi uma ordem da sua mãe, exceto se ela pessoalmente intervisse, eu não poderia desobedecer.
Ouvindo isso Miguel suspirou, seus ombros caíram. Mas ele balançou a cabeça, espantando o desanimo, então ergueu os braços na altura do peito e repetidamente apertou e relaxou seus punhos.
— De qualquer forma, logo sairemos daqui para ver o que realmente aconteceu lá fora. Acho que vou precisar de uns três dias para recuperar um pouco da minha antiga forma. Até lá, vejamos, o que tem para fazer?
— Ah! Quanto a isso — Mia falou animada —, Dr. Tiago deixou um monte de coisas para você se entreter, jogos, filmes, séries, animes... conteúdos adultos... — sua voz diminuiu nessa última sentença. — Exceto comida, tudo o que tem pra comer são rações, sinto muito, mest... Miguel.
Miguel não ficou desanimado por haver apenas rações como refeição. Até porque já chegou a comer coisas muito piores para sobreviver no passado.
Seria comum uma pessoa estar em pânico nessa situação. Acordar sozinho em um lugar estranho, com a possibilidade de que o mundo tivesse sido destruído, seria insuportável para a maioria. Mas Miguel não era como os outros. Ele havia sido moldado por um passado severo, que lhe ensinara a suportar qualquer adversidade e a se adaptar a qualquer situação.