Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capitulo 10: Hipnotizante

Sentada na borda de um velho heliporto, com as pernas balançando sobre vinte andares de concreto rachado e ferrugem, Samira pintava.

Neo Alvorada dali era magnífica — uma visão que faria qualquer um prender a respiração. Aquele era seu lugar favorito. Nunca contou a ninguém sobre ele. Era como um tesouro escondido.

No papel, havia uma representação quase perfeita feita em grafite e aquarela. Mas a Neo Alvorada que ela desenhava era diferente. Ainda vibrante, ainda pulsante, ainda uma cidade que nunca dormia... mas viva de outro jeito. Não com aquele espetáculo de luzes em neon nem com os outdoors berrando propagandas.

No papel, a cidade respirava. O céu era azul, como deveria ser. As nuvens, brancas e fofas — não cinza-chumbo. Havia árvores no lugar de postes, verde onde antes havia concreto. E mesmo que não pudesse ser sentido de verdade, quem quer que olhasse para aquele desenho teria certeza: o ar dali era limpo.

Samira era pequena — não só em estatura, mas em presença física. Tinha 1,59m de altura, magra, com o corpo esguio e delicado, diferente da irmã, Luna. Seus traços eram suaves, com um toque do leste asiático herdado da mãe. Os cabelos longos, lisos e de um carmesim profundo caíam pelas costas como seda tingida de sangue. A franja cortada reta quase tocava os olhos, escondendo parte do olhar quase sempre atento.

Vestia uma jaqueta larga, gasta nas bordas, marcada com o emblema da gangue costurado nas costas: um lobo de olhos furiosos e mandíbula aberta, tingido em vermelho carmim sobre fundo negro. O resto da roupa era funcional, discreta. Coturnos. Calça escura. Luvas sem dedos manchadas de tinta.

Ela suspirou, exausta. Guardou o sketch e fechou a caixa de pastilhas e pincéis. Respirou fundo, enchendo os pulmões com o ar saturado de poluição. Já estava acostumada... infelizmente.

Pelo menos o silêncio ali em cima era real. Um alívio. Quase como um abraço pra alma.

Seu precioso refúgio.

— A vista daqui é incrível.

A voz rasgou o silêncio. E ainda por cima a assustou.

— AAHHH!!!

No susto, perdeu o equilíbrio. A gravidade a puxou com força. O coração parou enquanto ela tentava, num último reflexo, decorar o rosto do desgraçado que causou sua morte patética.

Mas, antes que despencasse para uma morte certa, ele segurou sua mão.

Ficou pendurada no vazio, balançando sobre a cidade.

E então o viu.

Cabelos negros, partidos ao meio. Pele de tom quente. Traços faciais tão perfeitos que pareciam impossíveis. Não havia assimetria. Não havia falha. E a pele — impecável. Um brilho que não combinava com a sujeira, com o clima, com a cidade.

Ele era lindo. Mas o que a prendeu foram os olhos.

Seus olhos eram negro marfim, quase pretos.

Quase tão escuros quanto a própria pupila.

Abismos puros. E neles… algo. Um brilho. Ou muitos. Uma constelação afogada em escuridão. Era como olhar dentro de um buraco negro engolindo estrelas.

Bizarro.

Assustador.

Aterrorizantemente belo.

Algo dentro dela se contorceu. Desconforto. Medo. Insegurança. Um sentimento estranho de inferioridade como se o próprio cosmos voltasse seus olhos a ela.

Mas também sentiu... fascínio.

O medo virou ansiedade. A ameaça virou um desejo estranho de entender, de se aproximar. Era como se estivesse sendo sugada por aquele olhar. Enfeitiçada.

— Foi mal por te assustar — disse ele. E, como se ela não pesasse nada, a puxou de volta para a borda.

Ela caiu de bunda, pernas dobradas, coração ainda acelerado. Quase morreu. Literalmente. E ainda teve seu santuário invadido.

Mas, por algum motivo… Não conseguia sentir raiva dele.

— ...

— Desculpa — ele repetiu, coçando a cabeça, visivelmente sem jeito. — Você é a Samira, né?

Ela apenas assentiu com a cabeça.

— Quem é você? — perguntou, finalmente se levantando, mesmo com o peito ainda martelando como se tivesse corrido uma maratona.

— Miguel — respondeu ele. — A Luna ficou preocupada. Sorte minha te encontrar tão rápido.

— Luna? — Samira encolheu os ombros, soltando um suspiro longo. — Você é o novo namorado dela, ou algo assim?

Perguntou num tom desinteressado, como se não ligasse, mas algo nela se revirou por dentro ao fazer essa pergunta. Uma sensação estranha, incômoda — e involuntária.

— Ah, não. A gente se conheceu ontem. Eu… meio que entrei pra gangue agora.

— Sério? — os olhos dela brilharam, um reflexo entre surpresa, desconfiança e… alívio? — Então tá... Mas como me achou aqui?

Miguel deu um sorriso leve e caminhou até a borda do heliporto, bem onde ela quase havia caído. Lá do alto, a cidade parecia hipnotizante — uma miragem de luzes sujas e promessas vazias.

— Foi por acaso. Eu queria um lugar alto pra procurar por você. Pensei que daqui dava pra ter uma boa visão dessa área. Escalar até aqui deu trabalho… as escadas depois do terceiro andar estão destruídas, e o elevador nem se fala. Então… foi isso.

Uma coincidência. Só isso.

— Saquei... — murmurou, mais para si do que para ele. — Mas, porra... você me deu um susto! Achei que meu coração ia parar!

— Foi mal. De verdade.

— Tá de boa... — disse, desviando o olhar.

Ela não era tímida. Nem de longe. Mas ali, diante daquele garoto, se sentia... vulnerável. Como se ele estivesse vendo demais.

— Esse lugar é incrível — Miguel comentou, fechando os olhos por um instante. — Tão quieto. Faz tempo que eu não sentia paz assim.

— ...

Era exatamente o que ela sentia sempre que estava aqui. O único lugar onde a cidade parecia deixar de gritar.

Miguel abaixou-se e encontrou o sketchbook no chão. Pegou o desenho com cuidado, observando com atenção genuína, sem cerimônias, mas com respeito. Um leve sorriso surgiu em seu rosto. Depois, ergueu os olhos — e só então reparou de verdade ao redor.

Nas paredes castigadas pelo tempo, explodia um universo de cor.

Um camaleão pintado em tons vibrantes cobria quase toda uma parede. As escamas eram cheias de detalhe, e seus olhos pareciam atentos, como se vigiassem silenciosamente o espaço.

Mais adiante, um dragão oriental serpenteava entre rachaduras, pintado com camadas de dourado fosco, verde musgo e vermelho queimado, como se saísse de dentro da parede.

Rostos abstratos. Silhuetas femininas em posições de queda. Olhos sem pupilas. Mãos abertas para o vazio.

O canto estava tomado por um santuário criativo em caos: Latas de tinta empilhadas, sprays jogados, pincéis de todo tipo e tamanho mergulhados em copos sujos, telas improvisadas feitas de papelão, madeira, ou qualquer coisa plana o suficiente pra receber tinta.

Manchas de tinta escorriam pelas paredes como lágrimas coloridas.

— Isso tudo é incrível — ele disse. — Foi você quem fez tudo isso? Parece até que seus desenhos possuem vida. Como se eu pudesse sentir… parte da sua alma nessas paredes. Você deve ter praticado muito pra chegar nesse nível.

— ...

— Hm? Ah... Falei alguma merda?

Ele ficou confuso quando a viu desviar o rosto.

Então, sem aviso, ela começou a chorar.

Choro silencioso, nervoso. Como se fosse contra a própria vontade.

Samira tentou conter. Mas quanto mais forçava… mais as lágrimas desciam.

Miguel ficou parado. Imóvel. Talvez não soubesse o que dizer. Ou talvez tivesse entendido que… ali, o silêncio era mais respeitoso que qualquer palavra.

♦♦♦

Miguel folheava o sketchbook de Samira, sentado na beirada do heliporto. As páginas coloridas passavam devagar entre seus dedos.

Então, ela voltou. Sentando-se ao lado dele.

— Pronto, avisei pra mana que já tô voltando com você — disse ela, mexendo no celular com capinha de coelho com um gesto distraído. Então olhou para ele e fez uma careta. — Ela vai esperar a gente lá embaixo... e disse que vai comer meu cu quando a gente chegar em casa.

Miguel deu uma gargalhada. — Luna é assustadora.

— Muito — Samira respondeu no mesmo tom, rindo também.

O silêncio voltou por um momento, mas não era mais o mesmo de antes. Tinha algo mais leve agora.

Samira riu outra vez.

O som era leve, trêmulo, quase infantil.

Miguel percebeu. Percebeu o jeito como seus ombros relaxaram, como a rigidez que ela carregava nos músculos pareceu se dissolver por alguns instantes.

Ele estava prestes a se levantar, mas notou que Samira permanecia sentada ao seu lado, firme, o olhar perdido lá longe, na cidade sob o brilho morno das luzes artificiais. Seus olhos ainda estavam vermelhos, inchados, mas havia neles um alívio quase físico. Como se algo pesado tivesse finalmente escorrido para fora.

Miguel pensava em sugerir que fossem logo, mas antes que dissesse qualquer coisa, ouviu a voz dela de novo:

— Você é estranho.

Ele virou o rosto, surpreso. Samira olhava pra frente, o queixo apoiado nos joelhos puxados contra o peito. Um sorriso pequeno desenhava seus lábios, mas havia um rubor subindo devagar por suas bochechas.

— Quer dizer… você é diferente. Eu não sei explicar, mas… sinto que você não pertence a esse lugar.

Miguel piscou, sem saber como reagir.

— Como é a sua família? Você tem irmãos?

Ele respirou fundo, desviando os olhos para o céu.

— Não. É só eu e minha mãe. Meu pai morreu antes de eu nascer.

— Sinto muito... — murmurou ela. — Como sua mãe é?

— Ela é a pessoa mais linda e gentil do mundo — respondeu Miguel, sem nem pensar.

Um sorriso escapou, sincero, nostálgico. Pequenos flashes voltaram à mente: os dedos da mãe dele acariciando seu cabelo, a voz doce cantando baixinho para ele dormir...

— Que inveja...

A voz dela saiu fraca. Quase sumindo no barulho do vento.

Miguel não percebeu o quanto aquelas palavras pesaram — o quanto o canto da boca dela tremia, ou como ela desviou o olhar como quem foge de um espelho.

— E você? Como são seus pais? — perguntou, virando-se para ela, só então reparando na mudança de expressão.

Samira soltou um riso abafado. Sem graça. Sem cor.

— Minha mãe se jogou do antigo prédio onde a gente morava, logo depois de dizer que deveria ter me abortado.

Miguel engoliu seco.

— Meu pai... sumiu. Abandonou a gente depois de ter me...

Ela parou. O sorriso torto que brotou em seguida não trazia nada além de uma tristeza profunda.

O ar pareceu ficar mais pesado.

Ou talvez fosse só o peito dele apertando, despencando.

Miguel ficou quieto. Não era só que ele não sabia o que falar, mas porque sabia que Samira só precisava de alguém para ouvi-la.

— É só eu e Luna agora. Ela faz de tudo por mim. E eu...

A voz dela falhou.

— ... só decepciono ela.

Samira se encolheu ali mesmo, ao lado dele, tão pequena, tão frágil. O rosto afundado entre os braços. Os ombros tremendo.

Miguel ficou ali. Ouvindo a respiração trêmula dela. O silêncio.

O vento assobiava pelas estruturas enferrujadas do heliporto.

Mas, entre aquele ruído metálico e distante, ele só conseguia ouvir uma coisa:

Samira tentando não chorar.

— Desculpa... a gente nem se conhece direito, e eu já tô aqui te enchendo o saco com meu chororô.

Miguel deu de ombros.

— Não fiz nada demais. Mas se isso te ajudou, fico feliz.  

Ele notou as bochechas dela corando, mas não pensou muito nisso.

— Se quiser “encher meu saco com seu chororô” outra vez, só chamar — ele sorriu, gentil. — Somos companheiros agora. Eu só não ganhei a jaqueta da gangue ainda.

Samira riu.

— É mesmo. Mas já já vão te dar uma.

Miguel se levantou e estendeu a mão para Samira.

— Vamos? Não quero que a Luna coma meu cu também.

Samira caiu na gargalhada enquanto pegava a mão dele.

♦♦♦

Quando Miguel retornou com Samira, encontrou Luna e Pietro parados na frente do prédio.

Fumavam lado a lado, escorados no sedan prata de Pietro. Assim que os viu, Luna caminhou com passos firmes e rápidos. Deu uma olhadela breve para a irmã — e então socou o estômago de Miguel.

Ele poderia ter desviado com facilidade, mas deixou o golpe acertar. Tinha a impressão de que, se esquivasse, ela ficaria ainda mais brava.

— Que demora foi essa? — virou-se para Samira. — Era pra ter vindo na hora que falei!

— Foi mal...

Luna piscou devagar. Encarando a irmã como se não a reconhecesse de imediato. Depois olhou para Miguel, confusa, mas ele apenas sorriu, como se também não soubesse o que tinha mudado.

— Desculpa, mana. A culpa é minha — Samira abaixou os olhos. — Não fica com raiva dele.

Miguel notou um leve rubor nas orelhas e bochechas dela. Luna pareceu pasma por um segundo.

— Que porra foi que—

— Ei! Seus filhos duma puta! Quem deu autorização pra pisarem no nosso território?!

A voz rouca cortou o ar da rua vazia como um alarme.

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