Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capitulo 11: Sem muito esforço

Miguel virou o rosto devagar. Um grupo vinha cercando por todos os lados. Devia haver mais de vinte. Todos maltrapilhos, mas longe de parecerem só vagabundos. Muitos empunhavam canos, correntes, garrafas quebradas, canivetes... e um deles portava uma submetralhadora.

— Ei! Chefe! É aquela ali! A piranhazinha que tava vendendo aquela merda na rua de trás ontem à noite! — gritou uma mulher com um pedaço de pau nas mãos.

Ao lado dela, um homem de meia idade observava em silêncio. Tinha algo no olhar dele... não era só autoridade. Era controle. Dava pra sentir no jeito que os outros ficavam em volta — como se obedecessem por instinto.

O sujeito os observou com atenção. Mas seus olhos estavam mais fixados em Luna e Samira, quase pareciam devorar as irmãs ao lado de Miguel. Quando também notou Pietro, seus olhos vacilaram. Parecia ter travado.

Os olhos de Miguel quase se tornaram lâminas enquanto encarou aquele ser desprezível.

— Ei, pirralha — começou o homem, ignorando Miguel como se ele fosse vento. — Foi tu que tava vendendo aquelas bolinhas de gude na minha quebrada? Não sabe que aqui só vende quem eu autorizo?

— Foda-se. — Samira levantou o dedo do meio sem hesitar.

— Como é?

— Eu disse "foda-se". Tá surdo?

Miguel ergueu as sobrancelhas. Luna e Pietro sequer esboçaram reação. Provavelmente já estavam acostumados.

— Hehehe... — o homem riu, mas a sombra em seu rosto crescia. Mesmo assim, parecia se divertir. — Não sabe quem eu sou, garotinha?

— Um idiota — Samira riu também, seca. — Você é que devia saber quem nós somos.

— Oh... é mesmo? E quem vocês são?

— Você é mesmo retardado, hein? — ela virou-se de costas e apontou o polegar para a jaqueta. — Dá uma olhada.

O bordado nas costas — um lobo ensanguentado com os dentes à mostra.

O ar ficou pesado.

Miguel percebeu o efeito imediato no grupo. A tensão mudou. O nome da Crimson Wolf circulava até ali, tão longe do território deles. Ele já sabia que a gangue tinha nome, mas ver o medo nos rostos foi outra coisa.

O homem engoliu seco. O suor já brilhava na testa dele.

— Entendeu, né? Então vaza. — Samira deu de ombros, virando as costas. Caminhou sem pressa em direção à moto de Luna.

Luna também não demonstrava o menor interesse em continuar ali. Apenas a seguiu — como se aquilo fosse só mais um contratempo do dia.

— Vocês não vão a lugar nenhum! — o homem berrou. Ao seu comando, os capangas começaram a fechar o cerco em torno do grupo.

— Mas, chefe...

— Que foi, caralho? Acha mesmo que se fossem da Crimson Wolf estariam andando por essas ruas de merda? Tá na cara que são só idiotas fingindo. Qualquer um pode se passar por um Crimson Wolf — é só pintar o cabelo de vermelho e usar uma jaqueta com um lobo nas costas.

Ele girou o pescoço, estalando os ossos.

— Andem logo! Matem aquele bonitinho ali e depois vamos nos divertir com aquelas bebezinhas...

Aquelas palavras foram o gatilho. Os capangas começaram a avançar — passos rápidos, armas improvisadas em punho.

Samira estalou a língua, mas em vez de demonstrar medo, pareceu animada. Pegou de sua mochila uma pistola vermelha adornada com pequenos coelhos.

Luna já levava a mão à cintura, mas parou ao ouvir a voz suave de Pietro:

— Ei, Miguel. Consegue cuidar disso sozinho?

As palavras quebraram a expectativa de todos. Samira arregalou os olhos, surpresa.

— Pietro! Tá doido?! — ela protestou.

Luna, no entanto, apenas segurou o braço da irmã e balançou a cabeça, em silêncio.

Miguel sentiu os olhares e, sem dizer nada, acenou positivamente. Avançou um passo — e depois outro.

— Você parece ter bastante fé em mim — disse ao passar por Pietro. — Expor suas companheiras só pra me testar...

A expressão de Pietro se contraiu, mas não respondeu.

Quando três dos marginais viram que apenas Miguel se aproximava, hesitaram.

Trocaram olhares breves, confusos.

— MATEM LOGO ESSE FILHO DA PUTA, PORRA! — rugiu o líder.

Um deles girou uma corrente com ruído metálico, outro brincava com um pedaço de pau apoiado no ombro. O último guardou a faca apenas para acender um cigarro, como se aquilo fosse só um pequeno incômodo.

Miguel seguiu calmo, sem sacar pistolas ou facas.

Sentiu um olhar atravessá-lo. Girou o pescoço. Samira estava parada, olhos fixos nele — assustada.

— Relaxa — disse com um sorriso. — Eu sou bem forte.

Pietro soltou um suspiro irônico.

Luna esboçou um sorriso de canto de boca.

Samira baixou o olhar, o rosto corando de leve. Miguel não soube dizer se era vergonha... ou outra coisa.

O ar sibilou.

A corrente veio rasgando na horizontal, mas Miguel apenas inclinou o corpo para trás, no último instante.

O golpe surpresa falhou.

O homem da corrente havia tentado aproveitar a breve distração para atacá-lo, mas Miguel se esquivou como se fosse nada.

O agressor girou a corrente de novo e lançou.

Miguel, dessa vez, não desviou.

Num movimento seco e preciso, agarrou o metal no ar.

O aço queimou seus dedos. O impacto latejou nos ossos.

Mas ele sequer piscou.

Com o olhar frio, puxou a corrente.

O homem sentiu o mundo escorregar dos pés. A força de sucção era absurda.

Seu corpo veio como se fosse feito de papel.

Miguel girou o corpo e cravou um soco no peito do sujeito.

O homem cuspiu ar, saliva e alguma coisa quente.

Miguel seguiu andando, sem olhar para trás. Segurando a corrente pesada.

O outro caiu de joelhos, encarando o vazio com desespero estampado no rosto — antes de apagar.

O silêncio caiu como um lençol.

— Puta merda...

Miguel achou ter ouvido Samira murmurar algo atrás dele.

Dez... oito... doze... sete... vinte e dois...

Miguel lançou um olhar rápido, mas preciso, sobre os adversários. Caminhava girando a corrente, avaliando cada um com frieza. Nenhum deles representava uma ameaça real.

Sessenta e dois...

Virou-se de repente, os pelos da nuca eriçados.

Esboçou uma careta ao ver Pietro, que apenas deu de ombros e mostrou a língua, como quem se divertia em silêncio.

— Droga... para de brincar comigo — murmurou Miguel.

Como mais cedo, na primeira vez em que se encararam, Pietro o havia olhado como uma cobra observa sua presa e Miguel sentira isso com clareza.

E agora... Pietro fazia de novo. Propositalmente. Quase como se quisesse testar seus instintos.

Perdido por um breve instante naquele pensamento, Miguel mal teve tempo de notar o pedaço de pau vindo de cima — um golpe vertical, direto, com toda a força de um dos homens à sua frente.

Por pouco...

Meu corpo ainda tá muito fraco...

Quanto tempo até eu ficar em forma de novo?

Miguel se esquivou lateralmente, os pés deslizando com precisão. Pisou sobre o bastão que ainda vinha em movimento, forçando o homem a soltá-lo pela própria inércia do ataque. No mesmo instante, girou a corrente.

O aço cortou o ar como uma serpente e se enrolou ao redor do pescoço do adversário.

Com o impulso do giro, Miguel desestabilizou o centro de gravidade do homem e o puxou com violência. O corpo voou para frente, se chocando contra os três inimigos que vinham logo atrás.

Um soco veio da esquerda. Um cruzado rápido.

Miguel desviou com um giro mínimo de ombro e cotovelo, e contra-atacou. Um golpe direto na garganta, seguido de um soco seco na costela. O som do impacto foi abafado, mas o corpo do homem dobrou como papel.

Um chute lateral se aproximava. Mas em vez de bloquear ou tentar esquivar, ele atacou com um chute usando a canela e mesmo seu golpe saindo um segundo mais atrasado, ainda atingiu o inimigo primeiro.

O impacto na coxa do homem foi tão forte que ele praticamente flutuou no ar antes de cair de lado.

Uma mulher então tentou esfaqueá-lo pelas costas, mas ele simplesmente a chutou na cintura, derrubando-a de costas no chão.

Outro tentou o agarrar, porém Miguel se adiantou e acertou uma joelhada em seu rosto, mandando-o para trás, o nariz jorrando sangue.

No instante seguinte um cara tentou dar uma paulada em suas costas, Miguel girou nos calcanhares e bloqueou com o cotovelo esquerdo, deu um passo curto pra frente e atingiu a mandíbula do atacante com o cotovelo direito.

Três surgiram da esquerda. Não foi um ataque coordenado, eles estavam apenas tentando o acertar como podiam usando socos a torto e a direita. Miguel esquivou a maioria dos socos com movimentos muito rápidos, usando a palma da mão, antebraço e cotovelos.

Ainda preso aos três que pareciam o pressionar para trás, veio outro detrás, uma mulher pela direita, outro segurando um bastão de metal acima da cabeça e mais outros que o cercavam por todos os lados.

Mas Miguel já havia lido quase tudo. Altura, peso aproximado, amplitude dos membros, velocidade, flexibilidade — cada dado calculado aos poucos, em tempo real, conforme os ataques vinham.

Nada era instantâneo, tudo era leitura progressiva. Sua mente fazia ajustes constantes a cada movimento novo.

Era quase mecânico.

Mas aquilo só funcionava tão bem porque os inimigos eram lentos, previsíveis e sem nenhuma técnica. Estavam muito abaixo do nível que exigiria de Miguel algo além do básico. Contra oponentes mais refinados, mais perigosos, aquele tipo de leitura levaria muito mais tempo.

Mais do que isso, ele tinha armazenado mentalmente a posição de cada inimigo e seus ângulos de aproximação. Cada passo, cada hesitação. Era como se sua mente reproduzisse o campo de batalha por cima do ombro, como se ele enxergasse de fora.

Uma visão periférica refinada ao extremo.

Uma inteligência espacial absurda.

Mesmo quando alguém se aproximava por trás, Miguel já sabia. O corpo se ajustava sozinho, antecipando o golpe, desviando por centímetros — ou punindo com um contra-ataque fulminante.

Não havia movimentos exagerados.

Sem firulas.

Tudo mínimo. E perfeito.

Uma rajada cortou o ar gelado, estalando como trovão abafado nas vielas sujas da rua.

A submetralhadora do líder do bando cuspiu balas em sequência, cada disparo retumbando contra as paredes grafitadas e janelas embaçadas pelo frio cortante. Uma bala acertou um aliado antes que pudesse reagir.

Não tenho espaço suficiente, estão por todos os lados...

E mesmo que eu consiga prever a trajetória, meu corpo atual não irá reagir a tempo.

Não dá para esquivar.

Droga.

No meio do caos, Miguel agarrou uma mulher e a usou como escudo — não por crueldade, mas por pura estratégia de sobrevivência.

O corpo dela pressionado contra o seu era pesado, quente.

O cenho se franziu, como se algo dentro dele resistisse.

Mas Miguel não hesitou nem por um instante.

Não havia espaço para sentimentalismo num momento como aquele.

Um maluco atirando com uma submetralhadora a cerca de quinze metros não era pouca merda.

Uma decisão fria, simples e definitiva: preservar a si mesmo, a qualquer custo.

Enquanto as balas ricocheteavam contra o sedã prata, Miguel captou murmúrios ásperos e xingamentos abafados vindo da mesma direção — Pietro, Samira e Luna se protegiam atrás do carro perfurado, suas vozes carregadas de irritação, mesmo à distância.

Mas Miguel não se deixou distrair. Não queria sujar as mãos por apatia indiferente, mas a escolha estava posta. Sobreviver era o único critério — e o preço, por mais alto que fosse, seria pago sem remorso.

E quando percebeu que o líder daquele bando havia disparado contra os próprios aliados apenas para atingi-lo, Miguel o classificou como um alvo indigno de misericórdia. Tentara matá-lo — e sem o menor respeito pelos que estavam ao seu lado.

O movimento foi rápido. Quase fantasmagórico.

A pistola girou em sua mão ao sair do coldre. Num instante, Miguel estendeu o braço. O olhar afiado, as pupilas contraídas. Havia pessoas no caminho, mas nenhuma obstruía diretamente o alvo. Ele puxou o gatilho — frio, sem hesitação.

Sabia que não erraria.

O projétil cortou o ar, atravessando os espaços entre três pessoas. Raspou a bochecha de uma mulher.

Num instante a bala atingiu a têmpora do homem com a submetralhadora.

Silêncio.

Um segundo depois, o corpo do homem desabou como um saco de carne, afundando na lama.

O som foi seco. Quase teatral.

Ninguém se moveu.

Os outros ficaram paralisados, como se algo invisível tivesse congelado o momento. Os olhos se arregalaram. As mãos tremeram.

Miguel respirou devagar.

Num gesto contido — quase respeitoso, apesar do absurdo — Miguel deitou a mulher que usara como escudo com cuidado no chão.

Ela ainda respirava. Fraca, mas viva. O sangue quente escorria pelas costas, pintando o asfalto sujo.

Por um instante, seus olhos se encontraram.

Miguel não desviou.

O que ela estava tentando dizer com aquele olhar tão triste?

Não parecia apenas ressentimento...

Ou talvez fosse só ele mesmo, refletido nos olhos dela.

Miguel suspirou.

— Por favor, não morra.

Ninguém mais o atacou.

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