Volume 1
Capítulo 30: Como uma sina
Lanternas de papel subiam devagar, engolidas pelo céu esbranquiçado. A neve caía em silêncio, derretendo ao roçar o calor das fogueiras. Bandeirolas encharcadas pelo gelo ainda se agitavam ao vento, como se ignorassem a contradição da noite.
No coração da cidade, um São João impossível acontecia.
Sozinho, Miguel contemplava o contraste onírico da cena. Também acompanhava, distraído, os drones que sobrevoavam as barracas, projetando hologramas temáticos: fogos de artifício cintilando em silêncio. Entre eles, caricaturas exageradas de caipiras em roupas holográficas piscavam e davam gargalhadas distorcidas, como se fossem marionetes presas num ciclo infinito.
Então um clarão cortou o horizonte. Distante, tão rápido que, se não estivesse olhando naquela direção, teria perdido. Uma estrela cadente, desaparecendo em segundos.
Seu peito se apertou. Uma sensação incômoda, como se estivesse esquecendo de algo.
— Não vai fazer um pedido?
A voz o trouxe de volta. Victoria estava atrás dele, num vestido curto de quadrados coloridos, as bochechas salpicadas de sardas falsas sob o brilho do rímel rosa. O cabelo, geralmente preso num rabo de cavalo, agora caía em duas marias-chiquinhas. Ela mordia o algodão doce enquanto olhava para o mesmo horizonte.
— Um pedido? — Miguel sorriu. — Hm… acho que ter uma grande família.
— …
— Hm? Que foi?
Victoria piscou algumas vezes antes de sorrir de canto.
— Uma grande família, hein. Que fofo.
Miguel coçou a cabeça, rindo sem jeito.
— E você? Não vai fazer um pedido?
Ela riu, avançou um passo e se colocou ao lado dele.
— Hm… eu queria tocar uma estrela.
— Isso seria um pouco perigoso, não acha?
— Hehehe. Tem razão. Então… hummm… — Seus olhos arco-íris se voltaram para Miguel, brilhando num misto de desafio e travessura. — Transar na lua!
Miguel soltou um riso pelo nariz antes de cair na gargalhada. Era a cara dela.
— Tá rindo do quê? — Vic cutucou sua bochecha. — Vai me ajudar com o meu pedido? Eu ajudo com o seu…
A última frase quase se perdeu, dita baixinho. Ela desviou o olhar, bochechas coradas — um raro instante de vergonha genuína.
— Hm. Pensando bem, parece uma experiência bem interessante.
— Não é? Hehehe.
Miguel sorriu, os ombros tremendo. Aquela garota era louca, mas tinha uma leveza única, impossível de ignorar.
As luzes de néon piscavam acima da barraca, refletindo no rosto de Victoria em tons de azul e rosa. O cheiro de açúcar queimado, milho cozido e óleo de fritura se misturava no ar pesado da noite. Gritos de crianças e o ranger metálico da roda-gigante competiam com a música abafada que escapava de caixas de som enferrujadas.
— Você parece melhor. — Vic puxou um fiapo de algodão doce e, abrindo a boca, deixou claro o convite. Miguel imitou o gesto e ela enfiou o doce nele, rindo com leveza. — Nos últimos dias você anda tenso. Muito mais reflexivo do que costuma ser. Está preocupado com o plano?
Miguel apenas assentiu, enquanto um grupo passava correndo atrás deles, rindo alto e deixando cair uma lata que rolou até o pé de Miguel.
— Por quê? Ele não é perfeito?
— Perfeito? Nenhum plano é perfeito — Miguel jogou a latinha para o guri que vinha até ele.
— Mas você já não calculou tudo? Ahhh! — Ela enfiou outro pedaço na boca dele, o açúcar se grudando nos lábios.
— Como você disse, Cezar não veio atrás da gente ou de você porque provavelmente Hugo não contou nada. Seu ponto é válido; parece a única opção provável, ainda mais que você chegou até conversar com ele, né? Disse que ele não o reconheceu. Fala sério, que sorte da porra!
Victoria mordeu o doce, lambeu os dedos melados e continuou:
— Também tem a Mia, um recurso tecnológico extremamente cobiçado. — Sua voz se perdeu por um segundo entre os estalos de fogos holográficos no céu. — Cezar poderia simplesmente nos matar e roubá-la; ele tem poder para isso.
Exatamente. Miguel sentia o sabor doce ainda preso na boca enquanto alinhava mentalmente as razões que confirmavam sua convicção: Hugo não havia revelado nada.
A multidão se aglomerava, os risos, as vozes e o chiado das fritadeiras formando um pano de fundo animado.
Mesmo assim, havia algo que não saía da cabeça dele. Um desconforto insistente.
— Ei, Vic — Miguel chamou, baixo, quase engolido pela confusão da feira.
Victoria o encarou de lado, desconfiada, os reflexos do néon roxo dançando em seus olhos.
— No pior dos casos... se tudo der errado. Cuide de Mia.
— O que é isso? Acha que vai morrer? — O tom dela veio duro, mas os dedos apertaram nervosos o palito de madeira.
— Talvez. De qualquer forma, não posso arrastar todos comigo por causa de um plano meu. Se as coisas não saírem como planejado, no mínimo, garantirei que nenhum de vocês sofra.
— Humpf! — Victoria o cutucou com o espeto. Miguel sentiu a ardência do furo e observou um traço de sangue se projetar sob a camiseta xadrez. — Você não é nosso pai nem nosso chefe. Meu irmão é o chefe! E eu sou a segunda no comando, então não fique se achando!
— ...
— Além disso. Se aceitamos seu plano é porque acreditamos nele. Se der errado, deu. Iremos improvisar. Se fuder tudo e todo mundo morrer, bem, ninguém aqui jamais acreditou que passaria dos trinta de qualquer jeito. Podemos morrer a qualquer momento, mesmo agora alguém que me odeia poderia vir e dar um tiro na minha cabeça, então pare de querer assumir tudo.
Victoria suspirou, jogando o palito no chão. O robô de limpeza se aproximou com seu zumbido metálico, engolindo o lixo antes de partir para recolher uma latinha amassada.
— Se tá preocupado com a morte, nem deveria ter se juntado a nós pra inicio de conversa. Não é como se estarmos festejando agora seja um indicativo de uma vida tranquila.
Miguel não estava preocupado em morrer, não era medo. Era mais uma constatação da realidade, de como ela poderia se desdobrar nos próximos dias caso tudo desse errado.
Miguel apenas riu, sentindo algo aquecer dentro do peito — diferente do calor abafado que se misturava ao cheiro de milho e fritura.
— Tá rindo do que? Ficou maluco de vez?
— É que... estou feliz por ter tantos amigos confiáveis.
— ...
Miguel acariciou o rosto delicado de Victoria.
— Eu não quero morrer. Eu sou alguém que ama profundamente a vida. É nosso bem mais precioso. Então farei de tudo para protegê-la — e tudo que fizer parte dela. Incluindo, é claro, todos vocês.
Mas se eu morrer...
Bem... tudo bem também.
Posso dizer que, apesar de tudo, tive uma vida boa.
— Você é realmente estranho — Vic riu. — Em vez de dizer para eu cuidar da Mia se você morrer, você mesmo deve cuidar dela. Tenho certeza de que se você morresse, ela também morreria.
Miguel sabia disso intuitivamente, mas ouvir outra pessoa dizer só confirmou um peso ainda maior.
Sim, Mia provavelmente tiraria a própria vida se Miguel morresse.
Então o peso da vida dele era ainda maior. Sua vida não era só dele.
— Hm. Eu vou cuidar dela. Mia é também um bom motivo para continuar vivendo.
— Hehehe. Que bom. Agora vamos voltar, quero comer pamonha.
Victoria puxou a mão de Miguel, mas ele não se moveu.
— O que foi agora?
Miguel simplesmente a puxou para si, envolvendo-a com os braços. E, enquanto Vic o encarava com olhos arregalados, ele a beijou. Sentiu o corpo dela tremer por uns instantes, mas logo seus corpos pareceram se unir em um só calor. Suas línguas, um gosto doce.
— Você também é um bom motivo para continuar vivendo.
— ...
Victoria apenas ficou ali diante dele, paralisada, o rosto tão vermelho quanto as maçãs do amor na barraquinha ao lado.
Vendo-a daquele jeito e ponderando brevemente sobre o beijo, Miguel sorriu.
— A mais linguaruda é, no final, virgem, né?
Quase saiu fumaça dos ouvidos de Victoria quando ela se virou como um raio e tentou escapar, mas Miguel, muito mais rápido, a segurou pela cintura, carregando-a para um canto mais escuro.
— Me solta, seu desgraçado! Morra! Morra! Me sol...
Mas os lábios dela foram calados com os dele.
No fim, Victoria se rendeu.
♦♦♦
Samira o encarava de um jeito que parecia atravessá-lo — olhar penetrante, quase como se pudesse fuzilá-lo com os olhos.
Um pouco afastadas, Mia e Victoria riam discretamente da cena.
Miguel desviou o olhar por um instante. Viu Mia morder o lábio, tentando segurar o riso; Victoria levantava as sobrancelhas de forma sugestiva, sorrindo como quem esperava um espetáculo.
Bom… não tem por que hesitar agora.
Miguel puxou Samira pela cintura, trazendo-a para perto. A pequena corou, mas não tentou fugir, nem parecia assustada. O olhar inquisidor deu lugar ao alívio. Ela ficou na ponta dos pés, fechou os olhos, e Miguel finalmente a beijou.
— Hehe! Agora eu e a Sam também somos suas mulheres? — Victoria provocou, rindo.
— Sim! Eu deixo. — Mia respondeu antes dele, encostando as costas no peito de Miguel; consciente ou não, o gesto parecia marcar território.
Miguel riu. Desde que voltou com Victoria, a linguaruda já tinha corrido para contar às outras que ele a “pegou de jeito” lá atrás. Isso gerou uma pequena comoção: Mia resmungou “por isso estavam demorando” e Samira reclamou por ainda não ter tido nada com ele.
Ah, a vida é uma maravilha.
Miguel só podia agradecer aos céus por estar vivo — e, mais ainda, por ser abençoado com tamanha sorte. Quantos caras podiam dizer que tinham tantas garotas lindas assim ao lado?
— Então, já que Miguel pode ter várias mulheres, a gente também pode ficar com outros caras? — Victoria perguntou, estreitando os olhos.
Miguel sorriu de canto. — É claro que não.
Sentiu Mia tremer de tanto rir. Abraçou-a com mais força, como se para dar peso às palavras.
— Uau… e os direitos iguais? Por acaso é um super machista opressor? — Victoria debochou.
— Exato. Vocês são minhas. Só minhas.
Victoria e Samira se entreolharam e caíram na risada.
— Hehe. Estou satisfeita com essa resposta — disse Vic. — Meu homem tem que ser realmente egoísta e arrogante.
Miguel não sabia se aquilo era um elogio ou uma crítica, mas, conhecendo Victoria, provavelmente era elogio.
— Humpf! Que história é essa?! — Mia bufou, se afastou de Miguel e puxou Samira e Victoria para si. — Vocês também são minhas! Não é, Miguel? — perguntou, semicerrando os olhos com um sorrisinho.
— É… Mia é a exceção. — Miguel se rendeu rápido, arrancando risadinhas dela.
— Hehehe…
Miguel as observou por um instante, aquele breve momento de paz.
Mia com seu vestidinho em tons de azul e violeta, as sardinhas falsas salpicadas nas bochechas, o cabelo trançado caindo pelo ombro.
Samira, em um modelo rosa e branco de bolinhas, o mesmo ar doce de sempre.
Victoria, de sorriso travesso e olhar provocante.
Estavam todos ali para curtir a festa junina da Zona Central. Só os quatro — os outros viriam nos dias seguintes.
Victoria abriu um lindo, porém perigosamente travesso sorriso.
Lá vem… pensou Miguel.
— Heheh… e quando é que faremos um menag—
Victoria mal terminou a frase.
O sangue explodiu.
Miguel não teve tempo de reagir. O som seco do disparo cortou o ar, e o mundo perdeu as cores.
O brilho no olhar de Mia apagou no instante em que seu peito foi destruído — fragmentos de sangue sintético, circuitos e conectores voando em todas as direções.
O projétil atravessou-a, perfurando também o tórax de Miguel.
Mas ele não sentiu. Não de imediato.
Tudo que via era o corpo dela caindo nos seus braços, a expressão confusa e o sorriso ainda preso no rosto.
Quando o gosto de ferro encheu sua boca e ele cuspiu sangue, o tempo voltou a andar.
— Miguel!
— Mia! — as vozes de Samira e Victoria se fundiram em um único grito.
O Kaihōtai se abriu num instante.
Com o braço direito, Miguel segurou Mia contra o peito; com o esquerdo, sacou a arma num movimento automático.
O alvo apareceu — algumas dezenas de metros à frente, em meio à multidão, disfarçado de caipira como ele. O rifle ainda fumegava.
A visão de Miguel escureceu. As pupilas encolheram de forma anormal.
Verme maldito.
O disparo ecoou. A bala atravessou o ar e atingiu a testa do homem, fazendo seu crânio explodir em uma chuva de fragmentos vermelhos.
Mesmo com a música alta da quadrilha, os tiros romperam o clima festivo, mergulhando tudo em pânico.
Gritos. Correria. Confusão.
Miguel cambaleou. O calor o abandonava rápido demais.
O Kaihōtai se fechou automaticamente — o corpo não aguentava mais.
Porra... perdi muito san—
O mundo girou.
A última coisa que viu foram Vic e Samira se jogando sobre ele e Mia, o rosto das duas distorcido pelo desespero.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios