Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 29: Coincidência ou destino?

Pouco depois de acordar do incidente na Boate Rosa Azul, quando tudo já estava mais calmo, me perguntei por que alguém tão poderoso e perigoso quanto o chefe da gangue mais forte de Neo Alvorada não veio atrás da gente.

Claro, Cezar poderia simplesmente deixar o sobrinho agir sozinho, como forma de forçá-lo a crescer. No mundo do crime, depender demais dos outros é muito arriscado.

Contudo, um chefão permitiria que seu sobrinho, ainda em formação, lidasse sozinho com um inimigo que possui tanto o Primordium — o artigo mais valioso do planeta — quanto a maior tecnologia da humanidade? E ainda há Victoria, que criou uma droga nova que está vendendo bem.

Não, isso é ridículo.

Cezar, sem dúvida, já teria agido.

Tentar me recrutar, talvez. Eliminar-me para evitar um rival de potencial ilimitado, provavelmente.

Roubar Mia para usá-la de todas as formas — desde exploração direta até desmontá-la e vender suas peças. São muitas opções.

Talvez... ele já esteja agindo nos bastidores.

Mas a chance disso é baixa demais.

Eu já teria percebido se alguém estivesse em nosso encalço.

Sabendo do meu valor e da Mia, escolher uma abordagem mais indireta seria um risco que não vale a pena.

Ele também está envolvido em tráfico; talvez Victoria não seja, a princípio, um alvo tão significativo. Aurora Phase faz sucesso, mas é uma substância nova; não compete com drogas consolidadas há séculos.

A Crimson Wolf, apesar de recente, já tem certa fama nos Distritos — não só por causa da Aurora Phase, mas pelos membros fortes e capazes. Ainda assim, os Cães Negros nos esmagariam facilmente.

Isso só reforça a lógica de que não faz sentido Cezar não ter simplesmente vindo e nos trucidado.

Por isso supus que Hugo é extremamente ambicioso e não quer que ninguém roube seu crédito — nem mesmo o tio que o protege.

O plano está feito e todos se preparam.

Em alguns dias cobraremos a dívida de Hugo.

Mas... mesmo assim...

O que é isso?

Por que sinto esse incômodo que não consigo descrever?

Já revisei tudo dezenas de vezes na minha cabeça. A única possibilidade concreta de fracasso é um vazamento, mas projetamos o plano para que, mesmo com essa falha, permaneça dentro da margem de erro.

Então por que me sinto assim?

O que estou deixando passar...?

Miguel ruminava sobre aquilo pela quinta vez naquela manhã.

Parou um pouco, para pegar folego, já estava correndo a mais de uma hora sem parar.

Foi então que algo bateu contra ele.

— Ai! Huhummm... — choramingou a pequenina.

Abaixou o olhar e viu uma garotinha de cabelos presos em maria-chiquinha. Os olhos enormes e luminosos, coloridos como o arco-íris, parecido com os de Vic, mas que brilhava em outra variação.

— Ah! Tio! Me ajuda! Tem um homem mal me perseguindo!

— Homem mau? — Miguel virou o rosto.

De fato, um sujeito vinha vindo. Magro, quase esquelético. As olheiras fundas davam a impressão de que não dormia há dias. Braços cobertos de tatuagens antigas se destacavam sob a regata cinza. O olhar era gelado. Por um instante, hesitou ao ver Miguel, mas logo avançou decidido.

— Tio! — gritou a pequena, se escondendo atrás dele.

— Ei, garoto. — A voz do homem saiu baixa, nervosa. — Entregue a menina e ficará longe de problemas.

Mesmo em uma avenida tão movimentada, ninguém parecia disposto a se meter. Os que passavam lançavam olhares rápidos, depois desviavam, fingindo não ver.

— Heh — Miguel riu com desprezo. — Cai fora.

— O quê?! Eu avisei, seu merdinha!

O homem puxou um canivete da calça e investiu contra ele. Tentou perfurar sua garganta.

Miguel apenas desviou o corpo, agarrou-lhe o pulso e o torceu.

— Aaargh!!! Porra! Me solta! Aaahhh!

Um estalo seco ecoou. O sujeito caiu no chão, contorcendo-se e gemendo de dor.

— Cai fora. Não vou repetir.

O homem se levantou trôpego e desapareceu entre a multidão.

Miguel suspirou, voltando-se à menina. Devia ter uns seis anos. Vestia uma roupinha colorida, padrão quadriculado, típica de festa junina. No rosto, sardinhas pintadas a lápis já começavam a borrar.

— Tudo bem agora. Ele já foi — Miguel disse, passando a mão de leve na cabeça dela.

— Ah, tio, você é tão forte! Eu tava com tanto medo… Huhhh…

— Calma, calma. — Miguel pegou o lenço que sempre carregava em seus treinos, como não tinha usado ainda, estava limpo. Então passou a limpar o rosto manchado da garotinha. — Quer me contar o que aconteceu? Por que aquele homem tava atrás de você?

— Eu não sei… — ela fungou. — Eu tava com meus amigos procurando a barraquinha de algodão doce, mas aí eles sumiram… eu tentei procurar eles, e acabei me perdendo… quando percebi, aquele cara malvado começou a correr atrás de mim…

Miguel limpou o rosto sujo da garota, agora com as bochechas todas vermelhas.

— Entendi. Onde fica sua escola? Quer que eu te leve até lá?

— Hm! Fica no Domínio Cristal!

Miguel arqueou uma sobrancelha.

Domínio Cristal… antiga Águas Claras. Um bairro de elite, repleto de arranha-céus de vidro, ruas impecáveis e jardins artificiais. Distante — muito distante — do Distrito 4, onde estavam.

Nada naquilo fazia sentido. Ninguém simplesmente se perdia a ponto de cruzar metade da cidade. O trajeto levava mais de duas horas a pé, e agora já eram 08:53. Considerando que as aulas começavam às 07:45, mesmo que ela tivesse saído da escola no primeiro minuto, seria fisicamente impossível chegar ali em apenas uma hora.

Aquilo não batia.

— Aliás, meu nome é Miguel.

— Miguel? Como o Arcanjo Miguel?! — disse, animada.

Ele riu. — Hm-hum. Esse mesmo. E o seu?

— Alice!

— Como em Alice no País das Maravilhas?

A garota deu um pulinho, empolgada, os olhos brilhando como se refletissem o próprio sol.

— Ah! Isso mesmo! Eu tenho até o gatinho de pelúcia igual das histórias!

— É mesmo? Que legal. — Miguel ajeitou a bolsinha dela e estendeu a mão. — Então, vamos?

— Vamos!

♦♦♦

O metrô sacolejava suavemente, os letreiros passando como faíscas pelos vidros sujos.
Miguel estava ajoelhado diante de Alice, concentrado, o lápis de olho nas mãos. Retocava as pintinhas do rosto dela com cuidado.

— Alice… — disse com um tom calmo, quase brincalhão, para não a deixar tensa — sobre o que você falou mais cedo, tem mais alguma coisa que queira me contar?

A menina hesitou. Fez um biquinho, desviou o olhar, e então murmurou:

— Na verdade… huh… — os olhos começaram a marejar, a voz trêmula — meus amigos me enganaram.

Miguel ergueu as sobrancelhas. — Te enganaram? Como assim?

— Eles disseram que era tipo um jogo, pra ver quem era mais corajoso. — Ela franziu os lábios, lembrando. — Que cada um tinha que dar uma volta de ônibus sozinho. Só assim a gente podia continuar andando com a Melissa.

— Melissa? — ele repetiu. — A líder do grupo?

Alice assentiu, duas vezes rápidas.

— Ela é a mais velha… e a mais esperta. Mas aí eles disseram que eu era a única que ainda não tinha feito o desafio. Que todo mundo já tinha ido, só eu não. É que… eu tinha faltado no dia, fui visitar minha titia no hospital.

— Entendi. Então você pegou o ônibus pra provar coragem.

— Hm-hum. Aí… quando eu desci, tinha um homem. Ele começou a vir atrás de mim. Eu fiquei com muito medo. — As palavras escaparam em soluços antes que ela se jogasse no colo de Miguel, o corpo tremendo.

Ele a envolveu com um braço e afagou sua cabeça, num gesto lento e protetor.

— Já passou. Eu espantei o homem mal, lembra? — falou, tentando acalmar a respiração da menina. — Mas você disse que seus amigos te enganaram… quer dizer que o desafio era mentira, não era?

Alice confirmou com a cabeça, o rosto ainda escondido no peito dele.

— Eles não querem mais brincar comigo. Ninguém quer…

— Por quê?

— Porque dizem que meu papai é um homem mal. Que machuca as pessoas.

Miguel ficou em silêncio por um instante.
— Quem diz isso?

— Todo mundo. Mas não era assim… eu não entendo. Papai falou pra eu não ouvir o que eles dizem, pra eu ser forte. Mas eu… eu não consigo…

Ele sentiu um aperto no peito. Alice era só uma criança. E nenhuma criança devia carregar esse tipo de dor. Que tipo de pai joga um fardo desses nos ombros da própria filha?

— Ei… não se preocupa, tá? — disse, afastando uma mecha de cabelo do rosto dela. — Vou te levar de volta. A gente vai resolver isso juntos.

Alice levantou o rosto, com os olhos ainda vermelhos. — Resolver… como?

Miguel sorriu de leve. — É segredo. Você confia em mim?

— Hm! — respondeu, com um aceno rápido.

Ele riu baixinho e apertou a bochecha dela, como se aquele toque bastasse pra prometer que tudo ficaria bem.

♦♦♦

Miguel suspirou, impressionado. Logo na entrada da escola, o portal exibia uma decoração junina exuberante. Os pilares, envoltos em tecidos coloridos, davam lugar a um corredor coberto por bandeirolas e lanternas de LED que iluminavam o caminho até o prédio principal.
Barracas de comida e jogos se espalhavam pelo pátio, e drones flutuavam acima, projetando figuras tridimensionais que dançavam no ar — espantalhos animados tocando sanfona, uma espiga de milho sorridente girando com uma pamonha de braços e pernas. A música era alegre, envolvente, impossível de ignorar.

— Alice! — A voz veio firme e aflita. Um homem alto, de expressão dura, correu em direção a eles. O olhar era o de quem já vira demais no mundo — e ainda assim, guardava uma preocupação quase feroz pela menina.

Tinha cabelos grisalhos e próteses robóticas de última geração nos braços, contrastando com o traje esporte fino que usava.

Miguel paralisou por um instante ao vê-lo. O coração apertou, mas respirou fundo e se recompôs.

— Papai! — Alice se lançou no abraço dele.

— Alice! Você voltou!

Logo em seguida, seis crianças vieram correndo, lideradas por uma menina um pouco mais velha, de vestido lilás — provavelmente Melissa.

— Hm! Eu voltei! — disse Alice, sorrindo.

— Você tá bem? Onde estava? Por que não levou o celular? — o pai perguntou, tenso.

— Eu… perdi ele. — respondeu baixo.

Miguel notou o breve olhar entre Alice e Melissa. Entendeu tudo. E percebeu que o pai dela também entendeu — mas nenhum dos dois comentou. Melissa empalideceu, e só relaxou quando ouviu a desculpa de Alice.

— E quem é esse rapaz? — perguntou o homem, voltando-se a Miguel.

— Prazer, Miguel. — disse o garoto, mantendo o tom educado. — A pequena Alice me ajudou a chegar até aqui.

As crianças o encararam com curiosidade, o homem com um olhar cético. Miguel continuou, coçando a cabeça de leve, fingindo timidez:

— Sou de outro estado, não conheço bem a região. Tinha que encontrar um amigo hoje, mas acabei me perdendo. A Alice percebeu e me ajudou. Graças a ela, consegui chegar aqui. Não foi, Alice?

Ele piscou para a menina. Ela, confusa por um instante, logo entendeu o jogo.

— Ah! Sim! Miguel parecia bem perdido… e eu já tava voltando mesmo, hehe…

— Além disso — completou Miguel —, ela foi muito corajosa. Tinha um cara que parecia malvado seguindo a gente. Como ela conhecia o caminho, pegamos um atalho e deixamos o bobo pra trás.

— Uau! Sério, Alice? — perguntou uma das crianças, grudando nela.

— Como ele era?

— Você sabia o caminho? Então já andou de ônibus antes?

— Você é incrível, Alice! Ajudou até aquele tio!

Em poucos segundos, Alice estava cercada, rindo e respondendo a todos.

Entre as perguntas e risadas, surgiram pedidos de desculpa tímidos — e, no fim, tudo se dissolveu. Eram apenas crianças, afinal.

— Miguel! Hehe! Obrigada! — Alice correu até ele, ofegante. — Você vai embora já? Eu vou te ver de novo? — perguntou, com o rosto franzido, quase chorando.

— Claro que vai. — Miguel sorriu, passando a mão nos cabelos dela. — Eu e a pequena Alice somos amigos agora. E amigos sempre se veem de novo.

— Promete?

— Prometo. — Ele mostrou o mindinho. — Vou passar meu número pro seu pai, assim pode me chamar quando quiser.

Alice fez o mesmo gesto, e os dois selaram a promessa.

— Hehe! — Ela riu, toda feliz. — Ah, sim! Esse é o meu papai, o nome dele é Cezar Borba!

Miguel mal conseguiu segurar a expressão.

— Cezar Borba, que nome legal, é parecido com o Principe Cézar Bórgia que inspirou Maquiavel— Percebendo que Alice não entendia absolutamente nada do que ele estava falando, parou e sorriu sem graça. — Agora vai lá brincar com seus amigos.

Quando ela se afastou, o homem finalmente falou, a voz fria como gelo:

— Explique.

Miguel não enrolou. Contou tudo, do início ao fim.

O homem o ouviu em silêncio, com uma calma impressionante — calma demais.

— Talvez — concluiu Miguel — alguém tenha usado a líder das crianças, a Melissa, pra isolar Alice. Assim ela ficaria vulnerável e poderia ser sequestrada ao chegar no Distrito 4.

O olhar do homem endureceu, o ar ao redor parecia esfriar.

— Alice me contou que as crianças diziam que o pai dela era um homem mau — Miguel manteve a voz firme. — São apenas crianças, repetindo o que ouvem. Mas essas palavras nasceram de adultos irresponsáveis.

Ele tirou o celular do bolso.

— Não tem como as crianças saberem quem é Cezar Borba. Mas algum pai, com as conexões certas, provavelmente sabe.

Cezar apenas arqueou uma sobrancelha — um gesto pequeno, seco, que dizia que ele já tinha ligado os pontos. Nem perguntou como Miguel sabia.

Miguel sorriu de leve. — E se o senhor quiser proteger Alice de verdade, deve arrancar as ervas daninhas pela raiz.

O homem o mediu por um momento. — Miguel, certo? Quantos anos você tem?

— Dezessete. — Miguel respondeu, mostrando a tela do celular. — Prometi a Alice que passaria meu número pro senhor.

— Não é necessário continuar com isso — disse Cezar, sério. — Ela já está bem. Eu cuidarei do resto.

— Eu sei. Mas fiz uma promessa. E cumpro minhas promessas.

Cezar o encarou por um instante, depois salvou o contato, não no celular de Alice, mas no dele, mas Miguel não discutiu.

— Entendo.

— Então… já vou indo. Cuide bem da sua filha.

— Não precisa me lembrar. — Deu de ombros. — Além disso… te devo uma.

♦♦♦

Mais tarde, Miguel se largou numa mesa de cafeteria. Pegou o copo de café gelado com chocolate e deu um gole, exalando um riso cansado.

— Que coincidência… — murmurou. — Ou seria o destino...? Então aquele era o Cezar…

Balançou a cabeça, descrente.

Mesmo se eu estivesse em forma... não venceria aquele velhote de forma direta.

Além disso, pelo jeito, ele não sabia quem eu era...

Parece que minha dedução sobre Hugo estava correta.

Mas... ele com certeza vai me investigar. Para o bem ou para o mal, Cezar notou minha existência antes de Hugo dizer a ele.

Miguel suspirou e lançou um olhar discreto numa certa direção, fora da cafeteria. Os caras que o seguiam desde o momento que desceu na estação do Domínio Cristal com Alice finalmente se dispersaram.

Ele sabia que eram homens de Cezar — viu os olhares do próprio Cezar varrendo a multidão, onde os mesmos se escondiam perto da escola.

Por isso Cezar não parecia nenhum pouco preocupado com sua filha.

Espero não me tornar inimigo desse cara...

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