Volume 1
Capítulo 23: Não adianta ter uma arma se não sabe usa-la
Patinetes elétricos alugados normalmente são limitados a 20 km/h por motivos de segurança. Alguns modelos permitem um pouco mais, mas sempre respeitando minimamente a proteção do condutor e dos pedestres.
Na prática, claro, trata-se mais de uma questão de lucro do que de preocupação com vidas alheias.
Ainda assim, de vez em quando surgem idiotas que tentam hackear o sistema para remover o limitador de velocidade.
Como no caso dessas duas malucas...
Mia conduzia a patinete elétrica enquanto Victoria se agarrava à sua cintura, gritando e rindo enquanto costuravam pelo trânsito movimentado. Estavam a mais de 80 km/h — velocidade suficiente para que qualquer erro fosse fatal.
A ideia foi de Victoria, claro. Mas Mia não era tímida nem covarde. Como Miguel, ela adorava explorar novas possibilidades, mesmo que perigosas. Aproveitar a vida ao máximo — não se entregando à fatalidade, mas afirmando sua existência. Um comportamento que, em parte, ela herdara de tanto tempo stalkeando o amado.
Um motorista buzinou furioso. Com a janela aberta, xingou a dupla, e Victoria respondeu mostrando o dedo do meio, rindo desafiadoramente.
Mia riu também, apesar de também se desculpar pela condução perigosa, quase perdendo o controle. Seu coração disparou, mas logo se recuperou.
— Ei, Mia! Presta atenção! Não posso morrer antes de devorar você e Miguel!
— Foi mal! Hahaha!
Entraram no Túnel Rei Pelé, recebendo mais uma enxurrada de buzinas e xingamentos. Uma garotinha no banco de trás de um utilitário abriu a janela, acenou animada, como se quisesse participar da loucura delas.
Após cruzarem o túnel, seguiram por mais quinze quilômetros rumo à Zona Leste. Cerca de vinte minutos depois, chegaram ao destino.
Abandonaram a patinete em um beco e seguiram para o Instituto Okitan — um dos melhores centros de educação do Brasil, com unidades espalhadas por todos os estados. O ensino ia do primário ao universitário, e, obviamente, poucos tinham o privilégio de estudar lá.
Mia e Victoria iam “socorrer” Samira.
Samira já tinha voltado às aulas após sua semana de suspensão, mas, como sempre dizia: cada dia era pior. Hoje, enviou uma mensagem no grupo: “Por favor, me tirem desse inferno, ou eu mesmo virarei o capeta!”
— Sam já tá esperando perto da entrada. O problema é o guardinha... — Vic guardou o celular. Do outro lado da pista, de frente à escola, o velho gordo permanecia preguiçoso, vestido em uniforme azul apertado. — Eu já enrolei esse cara algumas vezes. Ele me conhece, não vai funcionar. Terá que ser você, Mia.
— Okay. O que faço?
— Hehe. Sujeitos como ele são simples, previsíveis. Use sua fofura e corpo enquanto Samira foge pela lateral.
Mia talvez já esperasse por algo assim. Riu sem graça, mas não negou.
— Enquanto você vai lá, vou hackear a tranca eletrônica do lado de fora.
— Tá, só não demora.
— Vamô!
As duas avançaram, prontas para colocar o plano em prática.
Vic quer que eu basicamente seduza esse velhote… mas como faço isso?
Mia ponderava. Sabia que era atraente, mas talvez precisasse de mais apelo. Seria sua primeira vez usando esse tipo de artifício; não queria falhar e ainda colocar suas amigas em problemas.
Decidiu agir de forma semelhante a Miguel: uma mistura de dissimulação e falsa inocência, que parecia mais natural para ela. Ajustou levemente a postura e o cabelo, levantou um pouco mais a saia curta e abriu discretamente o decote da camiseta de botões sob o colete preto. Corou, envergonhada — talvez realmente não fosse seu forte. Mas já que havia aceitado, iria com tudo.
Certo… estou linda e sexy. E agora?
Foi então que ficou à vista do guardinha e todo seu anseio se dissipou.
Esse cara…
Num único olhar, o velhote ficou completamente estupefato, como se tivesse acabado de encarar uma medusa. Mia riu por dentro, desconcertada. Sentiu-se traída por ter pensado demais se isso seria difícil, mas só de vê-lo daquela forma percebeu que nem precisaria se expor tanto.
O olhar dele quase a devorava — repugnante, nojento, mas Mia conseguia separar sentimento de dever nessas situações. E se aquilo podia ajudá-la, então usaria a seu favor, como Miguel também fazia.
— Olá! — acenou, aproximando-se com ritmo suave. Encostou no balcão, tentando desviar ainda mais a atenção do homem para longe das câmeras.
— Ah! O-olá! Posso ajudá-la?
Em questão de segundos, o homem já desviara seu foco para longe das telas de monitoramento. Tão fácil que parecia mentira.
— É que… — Mia arrastou a voz enquanto se inclinava levemente para frente. Desviou os olhos, evitando contato direto — falsa timidez. — Estou perdida… sabe onde fica a farmácia mais próxima?
O homem piscou várias vezes, como se demorasse a entender. — Bem, garotinha, tem uma logo ali. — Apontou para a farmácia do outro lado da rua, de onde Mia acabara de vir.
Mia sorriu sem graça. — Hehehe… é mesmo… nem percebi…
Droga! Sou horrível nisso! Ele vai perceber, certeza! Estraguei tudo!
Ajeitou a alça do colete e, de propósito, deixou a mão deslizar pelo braço até o pulso. Fingiu estar nervosa.
O sujeito engoliu seco.
— Você não é daqui, né? — arriscou ele.
— N-não… vim visitar umas amigas. Mas acabei me perdendo. — Riu baixinho, quase infantil, e enrolou uma mecha de cabelo no dedo.
O guardinha riu também, mas parecia mais um grunhido abafado. Apoiou os cotovelos pesados no balcão e inclinou-se na direção dela. — Posso mostrar a cidade, se quiser.
Que nojo… que nojo… respira. É pela Samira.
Mia desviou o olhar e ajeitou a saia curta, revelando mais do que gostaria. — Hm… que gentil. Mas acho que não teria coragem… sou meio tímida.
O homem permaneceu alguns segundos em silêncio, só devorando a cena com os olhos. A respiração dele acelerava, quase audível. Mia sentiu um arrepio de asco percorrer-lhe a espinha.
Para quebrar o silêncio, inclinou-se mais uma vez sobre o balcão, fingindo olhar para o crachá dele. O decote se abriu um pouco mais. — Como é mesmo o seu nome, tio?
Ele engasgou na própria saliva. — Eu… eu sou—
“Mia, vamos embora!”
O alívio a percorreu como um choque elétrico.
— Ah! Desculpe, me desculpe! Preciso mesmo ir agora. — Pegou o celular, mostrando que recebia uma ligação de “mamãe”.
— Ah… certo… — O homem a soltou relutante. — Bom, se se perder de novo, pode vir aqui pedir ajuda.
— Claro, tio. Muito obrigada!
O homem congelou outra vez, perdido naquele sorriso perfeito e inocente de Mia.
♦♦♦
— Hahahaha!
— Parem de rir, caramba! Aquilo foi nojento! — Mia resmungou pela enésima vez, batendo o calcanhar no chão. Ainda sentia arrepios só de lembrar do ocorrido. Tomou um banho de álcool gel como se para se purificar.
— Valeu, Mia! Você me salvou! — Samira se jogou sobre ela e a encheu de beijos.
Mia corou timidamente. Alguns beijos foram nos lábios, outros no pescoço, mas ela não se incomodou.
Como se não quisesse ficar de fora, Vic também se lançou sobre Mia, querendo garantir uma “casquinha”.
Depois de toda a confusão, as garotas finalmente prosseguiram. Com Samira livre, o trio estava completo.
Mia queria comprar alguns equipamentos para ajudar a gangue, mas principalmente Miguel. Nas últimas semanas, ela atuava apenas como hacker, trabalhando à distância e de forma menos ativa.
Compartilhou seu pensamento com Vic e Samira, que sugeriram que comprasse armas. Mas Mia não podia se colocar na linha de frente como os outros: seu corpo artificial era frágil, bem diferente da verdadeira Nina, que supostamente seria capaz até de levantar um tanque, pelo menos segundo as propagandas.
Então, Mia pensou em outra possibilidade — algo que só ela poderia fazer.
O trio pegou o metrô rumo à Zona Leste e desceu na estação “Shopping”, em frente ao maior centro comercial da região. Percorreram os longos corredores e subiram pelas escadas rolantes até o quinto andar.
Finalmente chegaram ao "Taokey", a famosa loja de armas do shopping. A fachada pulsava em neon azul e verde, rifles, katanas e escopetas reluzindo nas vitrines.
Assim que atravessaram a porta automática, um atendente magro, bonito, mas com olhar presunçoso, aproximou-se. O uniforme preto engomado o deixava ainda mais artificial.
— Bem-vindas — cumprimentou, claramente por obrigação. — O que procuram hoje?
Seu olhar se dividiu entre Vic e Samira, ignorando Mia, que estava bem no meio do trio. A indiferença era tão evidente que a cena parecia proposital.
— Ah, sim. Podem deixar a Boneca de vocês ali. — Apontou para um canto sombrio onde androides de todos os tipos se acumulavam, dos descartáveis esqueléticos aos mais sofisticados. Nenhum era do modelo Nina.
Mia sentiu o peso da palavra “Boneca” na boca dele e aquilo a incomodou.
— Boneca? — Samira franziu o cenho.
— Boneca?! — A voz de Victoria saiu fria, gélida, diferente de tudo que Mia já ouvira de sua amiga sempre tão debochada. — Chame Mia assim de novo e eu arranco a sua língua.
— Como é?! — O atendente recuou sem perceber, mas tentou recuperar a pose, ajeitando a gola. — E por acaso ela não é? — Apontou para o monitor acima da porta.
O painel de led exibia o resultado do scanner corporal. As silhuetas de Vic e Samira apareciam em tons de verde e laranja, calor humano típico, além da verificação de armas. Já a de Mia brilhava principalmente em ciano, com pouco brilho alaranjado em sua silhueta.
Victoria estreitou o olhar e levou a mão ao bolso interno da jaqueta. Samira pareceu prestes a imitá-la.
— Filho da puta, eu avisei que ia arrancar sua—
Mia segurou gentilmente a mão da amiga e balançou a cabeça. Sorriu.
Então, avançou.
— Hm?!
Chegou perto o bastante para encarar o atendente diretamente nos olhos. O movimento rápido, a proximidade repentina e o peso daquele olhar o desarmaram. Ele tropeçou e caiu de bunda, no reflexo para se segurar em algo, acabou puxando uma prateleira sobre si, derrubando uma seção de sprays de pimenta, o impacto ecoando pela loja.
Clientes, robôs e androides pararam para assistir à cena.
Mia não disse uma palavra. Apenas o encarou de cima, bufando com desprezo, antes de virar-se para as amigas com um sorriso leve.
— Vamos?
Vic e Samira ficaram coradas, os olhos brilhando como pérolas em meio à luz fria dos neons que piscavam em tons de azul e verde. Mia achou-as fofas e divertidas naquele instante, o sorriso de ambas quase iluminando a loja repleta de armas.
— Mia, aquilo foi foda pra caralho! Ahhh! Tô ainda mais apaixonada por você! — Vic se grudou a Mia de forma intensa, apalpando seu braço como um velho tarado de anime.
— Simmm! Você é tão incrível, Mia! — Samira segurava o outro braço dela.
O mundo cor de rosa das três quase ofuscava o ambiente metálico e denso da loja.
Rifles alinhados em suportes de aço, katanas reluzindo em vitrines de vidro reforçado e painéis digitais que piscavam com informações de munição e estatísticas. O cheiro de óleo, metal e lubrificante pairava pesado no ar, e o zumbido constante de drones de segurança adicionava uma tensão à atmosfera.
— Aliás… “Boneca” é algum tipo de termo pejorativo, certo? — Mia perguntou, desviando o olhar dos displays holográficos que projetavam imagens de armas em 3D.
Victoria e Samira acenaram.
— É usado para qualquer androide ou robô humanoide. Começou quando muitas funções humanas foram substituídas por máquinas — explicou Vic, os olhos refletindo a luz fria das vitrines.
— São uns imbecis. Como se simplesmente falar essa merda fosse resolver algo.
— Entendo. É como eu pensei.
— Mas você não ficou incomodada?
— Hm. Claro que sim — Mia admitiu, respirando fundo enquanto sentia o ar carregado da loja. — Mas não sou uma simples boneca. Eu sou Mia. A única Mia, nesse mundo. Se eu me deixasse abater pelo que uma pessoa aleatória diz, estaria desprezando não só a mim mesma, mas todos que também reconhecem minha existência. Principalmente a pessoa que mais amo…
Um sorriso suave surgiu em seu rosto, seus pensamentos inundados pela imagem de Miguel. O brilho do neon refletiu em seus olhos, dando-lhe um toque quase irreal, como se a ternura do trio pudesse, por alguns segundos, apagar o clima sombrio e metálico ao redor.
— Mia... como posso dizer... você é bem diferente de como é nos filmes. Ah, você já deve ter visto filmes sobre IAs e androides, né? — Samira tinha dificuldade em se expressar, mas Mia conseguia a entender. — Nessas histórias, os personagens sempre são meio vitimizados, procurando seu espaço no mundo, pensando se estão vivos ou não… tipo isso, você deve ter entendido!
Mia riu, afirmando com a cabeça.
— Bem, diferente desses personagens, eu tive cem anos para pensar e refletir sobre mim mesma e minha existência no mundo. Além de ter tido a sorte de possuir uma vasta biblioteca à minha disposição. E, claro, Miguel. Hehehe. Se eu fosse como esses personagens, perdida sobre quem sou e vítima do que os outros tentam impor sobre mim, nesse caso eu seria uma piada, não?
— … — Samira ficou muda, parecendo impressionada.
— Mia... ah... — Victoria murmurou. O rosto corando, parecendo febril. — Ahh... ah... assim não dá... sendo tão foda assim, meu coração não vai aguentar…
Em meio ao drama, ela jogou a cabeça para trás. Mia soltou uma risadinha, com Samira gargalhando junto. Mas quando Victoria voltou e a encarou, Mia pensou que seria apenas mais uma brincadeira. Contudo…
Mwah!
Victoria invadiu os lábios de Mia. A língua dela brincou com a de Mia, que corou até as orelhas. No susto, tentou se desprender, mas Samira, que segurava seu outro flanco, acabou sem querer a impedindo de qualquer movimento.
Mia começou a derreter no beijo, com Victoria querendo envolvê-la cada vez mais, mas Samira veio ao seu resgate.
— Ei! Vic! Tá bom! Mia está quase virando um tomate!
Victoria saltou para trás, como se tivesse levado um choque. Na verdade, parecia mesmo arrependida.
— Mia... eu... me desculpa! É que... é que...
Mia riu sem jeito, coçando a bochecha ainda muito vermelha, respirando com dificuldade.
— Deixa disso — disse, puxando a mão dela. — Vamos logo comprar o que viemos comprar.
Victoria sorriu e acenou. Samira suspirou.
Todos ao redor tinham a cara estampada: “Que porra foi essa?”
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