Volume 1
Capítulo 22: Gostosa e assustadora
Duas semanas se passaram desde o incidente na Boate Rosa Azul.
Estranhamente, o caso mal apareceu nos noticiários e quase nada foi comentado no Orkit. O pouco que se falou veio apenas de vizinhos, gente que morava perto do local onde trinta e duas pessoas foram mortas.
Mesmo acontecendo no Distrito 1 — a maior favela do mundo, com sua arquitetura colossalmente verticalizada e onde a violência já era banal — o silêncio em torno do massacre ainda parecia anormal.
Para a gangue, porém, foi quase uma sorte divina, como se alguma força oculta tivesse dado uma mãozinha.
Miguel comentou com Mia o pressentimento incômodo de que havia algo errado. Mas decidiu não se prender a isso. Era apenas instinto — reflexo da forma rígida com que foi criado. Preocupar-se com o incontrolável não mudaria nada.
Naquela manhã, depois do treino diário, ele se encontrou com Victor no parque de diversões abandonado onde marcaram reunião com uma amiga da gangue.
Chegaram cedo, meia hora antes, e matavam o tempo explorando o lugar em ruínas.
A roda-gigante ainda se erguia no horizonte, mas o ferro corroído rangia a cada sopro de vento. O carrossel, parado, exibia cavalos mutilados pelo tempo. Latas amassadas, seringas e garrafas quebradas jaziam pelo chão. O cheiro de ferrugem e mofo se misturava ao do lixo apodrecido nos cantos.
Miguel empilhava garrafas de vidro na tenda de arremesso, aproveitando a estrutura ainda de pé.
— Essa amiga de vocês, Julia, certo? Vic disse que ela era uma Black Quill. O que é isso?
Victor pegava pedrinhas espalhadas pelo chão rachado, empilhando-as no balcão enferrujado.
— Black Quill é um grupo que negocia informações. Ninguém sabe quantos são, nem quem comanda. Trabalham fora de qualquer rede, tudo analógico. Só aceitam dinheiro vivo ou itens não rastreáveis. Dizem que conseguem qualquer informação.
— Dizem? — Miguel voltou ao lado dele.
Victor deu de ombros. — Boatos costumam exagerar, mas nunca ouvi de alguém que tenha pago e não recebido. Claro que há informações que nem o dinheiro compra — Primordium, grandes famílias... mesmo que tenham conhecimento sobre isso, não vendem pra qualquer um.
— Entendi. Vai pedir ajuda da Julia pra encontrar Mike?
Victor atirou uma pedra. A garrafa estourou em estilhaços que tilintaram pelo chão imundo.
— Já se passaram duas semanas e nada. Nenhuma pista, nenhum rastro. Isso é estranho demais. — Ele franziu o cenho. — Além disso, também pedi informações sobre o Hugo. Nessa última semana, caçando-o, ficou claro que não é tão simples quanto parecia. Mas o que realmente me deixou com o pé atrás foi um boato... por isso chamei a Julia. Se for verdade... será ruim.
O peso na voz de Victor não era fingimento. A preocupação parecia colada nele. Ele suspirou, enfiou a mão no bolso e puxou uma embalagem rosa. Ofereceu um chiclete a Miguel, que aceitou, antes de jogar duas gomas na própria boca.
Miguel o encarou de lado, anotando mentalmente aquele detalhe: Victor não estava fumando. Já sabia o motivo da troca. Julia odiava o cheiro de cigarro, e ele jamais se arriscava a enfrentar a repulsa dela durante os encontros. Só esse gesto já deixava claro o quanto ela era estimada.
Miguel pegou outra pedra e atirou. O som seco da garrafa quebrada ecoou pelo parque vazio, misturando-se ao vento que fazia bater uma porta metálica distante.
— Também pedimos pra Julia procurar sua mãe.
Miguel sorriu de leve.
— Valeu.
Victor riu baixo, lançou outra pedra e derrubou a última garrafa. Depois bateu as mãos para limpar a sujeira.
Miguel não disse nada, mas não acreditava que Julia pudesse ajudar. Guardou o pensamento.
— Vic disse que você sempre fica acanhado na presença de Julia — Miguel comentou inocentemente, mas logo percebeu a mudança no humor de Victor.
— Aquela linguaruda... — murmurou com um suspiro. — Julia é... sei lá. Tem alguma coisa nela. Talvez também sinta quando a conhecer.
Victor não queria mais entrar em detalhes, então Miguel não perguntou mais nada, mas seu interesse por Julia ficou ainda maior.
Exploraram mais um pouco o parque. As cabines de tiro ao alvo juncavam o chão de estilhaços, e os carrinhos de bate-bate apodreciam como carcaças de ferro, afundadas na ferrugem. O silêncio era denso, só quebrado pelo farfalhar do vento arrastando folhas secas e, de vez em quando, pelo estalo da madeira podre cedendo sob seu próprio peso.
— Olá, meninos.
Na exata hora marcada, ela apareceu.
Essa mulher...
Os cabelos negros, em corte long bob, emolduravam o rosto pálido. Mechas lisas desciam até roçar os ombros, enquanto o delineado grosso acentuava os olhos de falcão — frios, letais. As sobrancelhas finas completavam a expressão com um ar de arrogância silenciosa.
O resto do corpo parecia feito de sombra. Mesmo as mãos estavam cobertas por luvas de couro preto. O casaco industrial de couro reforçado, preto fosco, moldava a cintura antes de cair rente às coxas. Por baixo, a malha justa realçava as curvas, insinuando quadris e busto sem nunca os expor por completo.
As pernas, no entanto, dominavam a visão. Longas, firmes, cobertas pela calça de material sintético que refletia, em discretos brilhos prateados, a luz mortiça do parque. Os coturnos pesados batiam no chão quase sem som — como se até o piso temesse ranger contra ela.
Julia já era alta, mas as botas a colocavam quase do tamanho dos rapazes.
Os olhos cinza, opacos, lembravam vidro frio. Nenhuma emoção. Nenhuma entrada. Nenhum reflexo humano.
Miguel já tinha uma certa imagem de como Julia poderia ser, baseada no que Victoria lhe contara. Mas era uma imagem poluída pelo estereótipo da amiga:
“Julia é uma gótica rabuda!”
Ele tentou apagar aquilo da mente. Afinal, Vic era dramática demais, sempre exagerando.
Contudo...
É realmente... uma gótica rabuda...
Miguel desviou o olhar, culpado, temendo que ela pudesse ler seus pensamentos — sem perceber o quão absurdo era imaginar isso.
Droga... tô andando demais com a Vic.
— O que foi?
Julia o encarou desconfiada e isso quase fez o coração dele pular uma batida. Victor ao lado também lançou a ele um olhar duvidoso, mas Miguel balançou a cabeça calmamente.
— Não é nada.
Enquanto se aproximava da dupla, Julia enfiou a mão no bolso interno de seu sobretudo, puxou três envelopes e entregou dois deles a Victor e um a Miguel.
— Quanto ficou?
Miguel percebeu o tom ansioso de Victor, isso o fez pensar que os serviços de Julia deveriam ser mesmo bem caros.
Julia não demorou:
— Sessenta mil.
— O QUE?!
O sempre calmo e composto Victor perdeu a postura, o grito ecoando pelo parque desolado. Ele tossiu, tentando se recompor, e franziu o cenho.
— É sério?
Julia sorriu de um jeito impossível de decifrar.
— Dois mil pela localização do Mike. Oito mil por informações sobre o Hugo. E... cinquenta mil por pistas sobre...
Os olhos vazios dela se voltaram para Miguel. O sorriso se ampliou, frio, como se algo se divertisse dentro daquela máscara de indiferença.
Miguel sentiu um frio subir pela nuca, descendo em câimbras pelos ombros. O ar pesou. Era como se algo o sufocasse devagar.
Essa garota...
Ela...
O estômago se revirou, tomado pela pior das possibilidades.
Contudo...
— Katharine Brassard Reis. — O sorriso se desfez, restando apenas um traço fraco nos lábios. Julia voltou os olhos para Victor. — Conseguir informações sobre essa mulher não foi nada fácil. Estou até dando desconto, porque gosto de vocês.
Seu olhar voltou-se para Miguel. — Sua mãe realmente não quer ser encontrada.
O desconforto de Miguel só aumentou.
Talvez ela saiba a verdade...?
Mas isso é impossível...
Então por que estou tão ansioso?
O que foi aquele olhar?
Ela sabe...?
Não.
Mas...
Agora entendo porque Victor fica tão ansioso perto dela.
Julia é aterrorizante.
Enquanto Miguel ruminava em silêncio, abriu o envelope por reflexo. Antes que pudesse ver o conteúdo, Victor segurou seu pulso.
— Julia... não tenho esse dinheiro todo agora.
— Eu sei. — Ela acenou com calma.
— Mas se nos deu essas informações, quer dizer que podemos pagar de outra forma, certo? Pelo menos essa que está comigo.
Julia abriu um sorriso lindo — e ainda assim perturbador — confirmando com a cabeça.
— Isso mesmo.
Miguel soltou o ar, relaxando os músculos tensos, e fechou o envelope.
— Certo. O que quer?
Julia puxou o quarto envelope e o entregou a Miguel. — Quero que mate essas quatro pessoas.
Miguel franziu levemente, mas aceitou o envelope e conferiu seu conteúdo. Nos papeis havia quatro fotos, três homens na casa dos quarenta anos, dois brancos e um negro e uma mulher na casa dos trinta e poucos, loira de pele morena. Havia uma descrição detalhada de onde cada um morava, trabalhava, amantes, família, etc.
Depois de guardar os documentos no envelope e o devolver a Julia, Miguel disse:
— Eu recuso.
Então também devolveu o primeiro envelope sem demonstrar a menor curiosidade sobre seu conteúdo.
— Quando eu conseguir seu dinheiro, o trarei, então, por favor, aguarde até lá.
— ... — Julia piscou algumas vezes, parecendo levemente atordoada com essa conclusão, como se não esperasse que Miguel fosse recusar sua proposta.
Mas rapidamente a garota se recompôs, guardou os envelopes no bolso interno de seu sobretudo negro e assentiu com a cabeça. Não parecia desapontada ou irritada.
— Pois bem, aguardarei pacientemente, mas creio que não demorará muito. — Julia sorriu calorosamente. — E você, Victor?
Victor até então quieto trouxe um envelope volumoso de dentro de seu sobretudo e o deu a Julia. Julia apenas guardou sem conferir, parecia que ela confiava mesmo nele.
Então Victor abriu seus envelopes e junto de Miguel leu o conteúdo todo escrito a mão. Julia aguardou paciente, como uma boneca sem alma, distante apesar de estar na frente deles, calma demais como se o tempo não a alcançasse. Miguel outra vez tomava nota do quanto ela possuía uma aura ao redor dela, incompreensível, densa, sufocante.
Então, numa súbita inspiração, expandiu sua consciência psiôntica — ainda em recuperação, mesmo que isso o ferisse. O que sentiu o deixou gelado.
Julia possuía um pseudo sinal psiôntico, semelhante ao de Victor, algo que não pertencia ao Primordium, mas que por algum motivo emita um sinal semelhante.
Contudo, esse sinal em Julia era incomparável ao que Victor emitia.
O de Victor era fraco, instável, uma silhueta cinza desmanchando em si mesma. O dela, ao contrário, era estável, nítido, em perfeita harmonia com sua forma — e com intensidade avassaladora.
Como se tivesse percebido, Julia lhe lançou um olhar ambíguo. O sorriso se ampliou. E, em um piscar de olhos, o pseudo sinal simplesmente desapareceu.
— ...
— Hm? O que foi? — Victor notou o silêncio pesado.
Miguel balançou a cabeça. Julia acenou sutilmente, como se dissesse para ele ficar quieto.
— Parece que teremos problemas em lidar com o Hugo, hein — disfarçou, mudando de assunto.
— Aquele boato era mesmo verdade... droga.
— Já terminaram? — perguntou Julia, sem se importar com a frustração de Victor.
Victor encolheu os ombros e devolveu os papéis. Miguel estranhou, mas apenas observou. Talvez fosse o procedimento padrão com os Black Quill.
Julia dobrou os documentos, colocou-os no chão e riscou um fósforo. As chamas devoraram as páginas até restarem apenas cinzas. Com a sola da bota, as espalhou e assentiu.
— Espero que tenha sido de alguma ajuda.
De alguma ajuda? Miguel quase riu da falsa modéstia. As informações sobre Mike e Hugo eram excelentes. Sabiam agora onde o primeiro se escondia e quem patrocinava o segundo — e isso era muito pior do que esperavam.
Por um instante, pensou no envelope sobre sua mãe, ainda nas mãos de Julia. Sentiu o impulso de aceitar a proposta dela, mas conteve-se. Se ela reunira tudo aquilo em apenas uma semana, o resultado era impressionante demais... e por isso mesmo, suspeito.
— Então já vou indo. Mande um beijo pra Vic.
Quando Julia se afastou, os dois soltaram um longo suspiro e se largaram em um banco de concreto quebrado.
Miguel sentia-se esgotado. Sabia muito bem o motivo disso. Julia tinha algo. Victor tinha razão.
— Droga, se pudéssemos pelo menos tirar uma foto — reclamou Victor.
— Então, depois que você confere o conteúdo, ela destrói?
— Exato. Sem foto, sem gravação, nada.
— Bem, não se preocupe tanto.
— O que quer dizer com isso?
— Ah, bem... eu decorei tudo. Posso escrever pra você depois. Só não vai contar pra Julia, hehe.
Victor bufou pelo nariz antes de soltar uma gargalhada.
— É. Hahaha... não sei se isso pode ser considerado uma violação do código deles. — Em seguida, estreitou os olhos. — Mas por que recusou a proposta dela? Você conhecia aquelas pessoas?
— Nunca vi na vida. Mas esse não é o ponto. Julia pedir esse tipo de trabalho é suspeito demais. Um risco inútil em troca de algo que pode ou não me levar até minha mãe.
Além disso, Katharine Brassard Reis não é minha mãe. É mais como... uma tia. Uma amiga íntima dela. Claro, com a ajuda dela eu poderia chegar até minha mãe, mas não tenho motivo pra ter pressa.
— Ei. Já tem um tempo que eu queria te perguntar.
— O quê?
— O que tem dentro do seu corpo?
Victor arregalou os olhos em choque.
— Como sabe disso?
Então tem mesmo algo...
— Você emite um sinal semelhante ao psiôntico, mas muito mais fraco e instável. Só que esse tipo de sinal só existe em quem tem o Primordium. O seu não vem dele... mas lembra. O que só me faz pensar que seu corpo é especial, e de alguma forma ligado ao Primordium.
— Entendo... então por isso você sabe.
Victor finalmente acedeu um cigarro e após tragar profundamente começou a contar sua circunstância.
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