Volume 1
Capítulo 20: Vida de merda
Mike tragava o oitavo cigarro da noite, o corpo encostado na parede úmida e rachada dos fundos de um bar decadente. O beco fedido a cerveja azeda e urina estava quase deserto, iluminado apenas pela fachada em neon quebrado que piscava em vermelho e azul, refletindo nas poças de óleo. O zumbido da lâmpada misturava-se ao chiado distante de tubulações malcuidadas.
Ele roía a paciência enquanto esperava. Cada tragada era cuspida em nuvens de fumaça nervosa, os dedos tremendo. Quando Hugo surgiu do fim do beco — uma muralha de carne e metal, careca, a pele clara coberta de cicatrizes, os braços cromados do tipo militar brilhando sob o neon —, Mike não conseguiu se conter.
— Seu desgraçado! — a voz dele explodiu, rouca, carregada de raiva. — Você disse que ia atrás só do moleque e da namorada dele!
Avançou em passos duros, cuspindo cada palavra como faca.
— Filho da puta! Minha irmã e meus amigos quase foram mortos!
Não chegou a terminar. Hugo ergueu a perna como quem chuta uma porta e acertou Mike no peito. O impacto o lançou contra as latas de lixo, espalhando sujeira, vidro quebrado e restos podres pelo chão. O barulho ecoou pelo beco abafado.
— Por que tá agindo assim, hein? — Hugo rugiu, a voz grave vibrando como um motor pesado. — Tá querendo se redimir por ter vendido seus amigos por uma vingança barata? Agora vem pagar de arrependido?
Mike tossiu forte, cuspindo sangue grosso no chão oleoso. O gosto metálico queimava a língua, misturado ao cheiro de ferrugem e fumaça. As costelas latejavam, cada respiração parecia arranhar por dentro.
— Agora não tem mais volta, entendeu? — Hugo se aproximou devagar, os passos reverberando pesados, quase mecânicos. — Eles vão te caçar até o fim.
A sombra dele engoliu Mike, que se arrastava tentando se erguer.
— Então se não quer morrer... — Hugo abriu um sorriso sem humor, mostrando dentes amarelados. — Trabalha comigo. Eu posso te proteger.
Mike arfava, a testa colada ao concreto frio.
— Tá... mas e agora?
— Agora? — Hugo olhou de lado, como se calculasse rotas em silêncio. — Ficamos na surdina. Se descobrirem que a gente tá mexendo com a Crimson Wolf, fodeu. Vão querer saber o porquê, e talvez descubram que esses arrombados tão com o protótipo do androide mais caro do mundo. Até meu tio ia se meter. E, se ele se meter... — deu de ombros, com um gesto pesado das próteses. — Já era. Vai ser tudo dele.
O coração de Mike batia acelerado. — Onde vou me esconder, porra?
— Relaxa — Hugo rebateu sem alterar o tom, tirando um cigarro amassado do bolso da jaqueta. Acendeu com o dedo metálico que faiscou como isqueiro. — Já te mandei a localização de um lugar seguro. Ninguém vai te achar lá.
Por fim, estendeu a mão imensa para ajudar o garoto a se levantar. Mike hesitou, mas agarrou. Sentiu, no instante seguinte, os dedos metálicos de Hugo se torcerem em torno dos seus como uma prensa hidráulica. Um estalo ecoou, seguido do grito agudo de Mike, que se contorcia tentando escapar.
— Agora... — Hugo inclinou-se, encarando-o com olhos frios, a fumaça do cigarro escapando pelo nariz. — Vem comigo. Preciso que me conte tudo sobre esses moleques de merda.
♦♦♦
No quintal do tio, Hugo tragava devagar, soltando a fumaça em anéis que se dissipavam sob o céu cinzento. O cheiro do tabaco se misturava ao de terra úmida e adubo químico. Pensava no dia em que teria sua própria casa. Sim, uma casa de verdade, não um cubículo apertado enfiado entre milhares de apartamentos iguais. Algo raro, quase mitológico nos dias de hoje — um luxo reservado a pouquíssimos.
O jardim exibia uma ordem quase artificial. Um jardineiro, curvado com a tesoura elétrica, aparava um arbusto com precisão geométrica. A poucos metros, uma empregada lançava ração em grânulos sobre o lago artificial, e cardumes dourados se agitavam na superfície, cintilando sob a luz pálida.
Dois rottweilers enormes descansavam sob a sombra de uma mangueira antiga, os olhos semicerrados, mas atentos a qualquer movimento.
As folhas da árvore, assim como todo o restante da vegetação, carregavam um tom esbranquiçado, quase gasto. Os livros de história falavam de resíduos radioativos, mutações na fotossíntese, alguma herança inevitável do inverno nuclear. Hugo, porém, não entendia e nem fazia questão de entender.
Para ele, as folhas deveriam ser verdes — ponto. Aquilo parecia apenas errado, estranho, um detalhe incômodo que teimava em lembrá-lo de um passado que não vivera, mas herdara à força.
Ele tragou outra vez, o cigarro ardendo como um pequeno farol entre os dedos metálicos. E, por um instante, deixou-se perder na imagem daquela casa imaginária.
— Se continuar perdendo tempo com moleques em vez de pensar em crescer, nunca vai ter um lugar como esse.
A voz o cortou de seus devaneios. Hugo ergueu os olhos devagar.
O homem quase da sua altura, mas magro. Cabelos grisalhos, rosto endurecido. Estava no auge da meia-idade. Vestia-se de modo formal, parecendo um executivo importante, mas também com certa leveza sofisticada.
Cezar, seu tio, estava ali, parado ao seu lado.
Hugo, com seus quase dois metros de altura, ombros largos e próteses militares era um colosso de metal mal polido. O brilho das juntas cromadas refletia a luz da manhã e denunciava a natureza bruta dos implantes.
As de Cezar, por outro lado, mal chamavam atenção. A pele sintética cobria quase tudo; apenas traços sutis denunciavam o que havia por baixo: linhas finas de luz pulsando sob a derme artificial, como veias discretas; marcações suaves nas articulações, onde o movimento revelava o inorgânico.
— Bom dia, tio — cumprimentou Hugo, a voz firme, mas carregada de respeito.
— Bom dia — respondeu Cezar, num tom contido. — Como está minha irmã?
— Mamãe ainda está internada — Hugo tragou fundo, soltando a fumaça devagar. — Mas os médicos disseram que logo ela terá alta.
— Isso é bom. Quando ela tiver alta, farei uma visita.
Hugo ofereceu um cigarro, acendeu para o tio com um gesto automático, quase cerimonioso. Só depois terminou o próprio, deixando queimar até o filtro antes de se arriscar a quebrar o silêncio:
— Aliás, tio... eles não são moleques comuns. Até o senhor tem que reconhecer que uma dúzia de pirralhos terem crescido tanto em apenas um ano é algo a se elogiar.
Cezar deu uma tragada calma, observando a fumaça subir e se misturar ao frio da manhã.
— Havia um ditado antigo... “tudo que vem rápido, vai rápido”. Mesmo que tenham algum brilho agora, ainda são apenas moleques. Pelo que sei, o líder mal passou dos vinte e um. E mesmo a mais velha, com seus vinte e oito, não passa de uma jovem sem posição real de comando.
Cezar deixou o cigarro pendendo nos lábios e cruzou os braços.
— Jovens são todos iguais, Hugo. Precipitados. Ambiciosos demais. Acham que são invencíveis. — Cezar falou sem elevar a voz. — Já vi alguns como eles. De vez em quando, aparecem uns talentos... uns que chamam atenção.
Ele fez uma pausa curta para tragar o cigarro, a ponta rubra refletindo no brilho quase imperceptível das linhas que pulsavam sob sua pele sintética.
— Mas todos tiveram o mesmo fim. — O olhar de Cezar permaneceu fixo na fumaça, como se enxergasse além dela. — Ou se submeteram a alguém maior... ou morreram sem sequer serem lembrados.
O silêncio que se seguiu pesou mais do que as palavras. Hugo sustentou o cigarro entre os dedos metálicos, mas a tragada veio curta, nervosa. Não era apenas a crítica aos jovens da Crimson Wolf que ecoava em sua mente, mas o subtexto claro: aquilo também podia ser um aviso dirigido a ele.
As folhas esbranquiçadas da mangueira balançaram levemente com o vento frio. Hugo desviou o olhar para elas, incômodo — o mesmo incômodo que sentia diante do tio.
— Mas vamos deixar esses assuntos para depois. — A voz de Cezar quebrou o peso do silêncio. — Não foi pra isso que o chamei. Venha, quero te mostrar algo.
Hugo acompanhou o tio pelo caminho de pedras do jardim, o som seco das solas batendo contra o piso contrastando com o farfalhar distante das folhas. Quando chegaram à garagem, o portão metálico se ergueu com um rangido suave, e Hugo não conteve o sorriso que brotou quase infantil.
— É de verdade?!
Cezar soltou uma risada breve, discreta. Tirou um pequeno controle do bolso da calça social e pressionou o botão. Um bip característico ecoou, acompanhado do destravar suave do veículo diante deles.
— Isso é foda pra caralho, tio! — Hugo rodeou o carro como um predador rondando a presa, os olhos brilhando.
A pintura laranja e preta refletia como vidro líquido, sem uma imperfeição sequer. O cromado ainda mordia a luz como se tivesse acabado de ser polido. O interior, visível pelo vidro, era impecável: couro tratado, costuras firmes, cada detalhe preservado. E o cheiro... o cheiro de carro novo, escapava pelo vão da porta.
— É uma pena que meu velho já tenha batido as botas... — Cezar passou a mão pela lataria com reverência. — Ele era doido pra ter esse carro.
— É original? — perguntou Hugo, com a voz carregada de expectativa.
— É impossível encontrar um carro dessa idade todo original, você sabe disso. — Cezar deu de ombros, mas havia orgulho em seu tom. — Mas podemos dizer que é de fato um Opala 78.
Ele abriu a porta do motorista e deslizou para dentro do banco, o couro rangendo levemente. Fez um gesto simples com a mão.
— Entra. Vamos ver do que esse bebê ainda é capaz.
Hugo não precisou ser convidado duas vezes.
♦♦♦
Quando Hugo voltou ao prédio abandonado no Distrito 8, parou um instante na entrada e respirou fundo.
O ar estava pesado: maconha, tabaco e gordura se misturavam num fedor denso que grudava na garganta.
À direita, a cozinha — ou o que passava por cozinha. Alguém deixara a geladeira aberta. Um pacote plástico pingava sangue; a carne ali dentro deveria estar podre, mas o cheiro só não dominava porque outros fedores brigavam entre si.
À esquerda, um quarto sem porta: só uma cortina remendada para fingir privacidade. De lá vinha um cheiro de suor e sexo, um ranço que dava náusea.
No centro do térreo, três caras enterrados num videogame retrô, controles nas mãos, uma TV de LED cuspindo tiros e jargões eletrônicos. Um canto, sob a escada, guardava uma mulher magricela, com um cachimbo de latão: acendia, tragava fundo e gemia palavras sem sentido, os olhos perdidos.
Atrás do sofá, outra doidona cheirava um pó azul; ao lado dela, um cara nu repetia o mesmo gesto, a cabeça baixa, os movimentos mecânicos.
Hugo ficou olhando a cena que ja vira incontáveis vezes. Rotina. Banalidade. Coisa que ele via todo dia. Estava acostumado...
Não.
Ele não suportava aquilo.
Era impossível acostumar-se com aquele lixo.
Se pudesse, incendiaria o lugar com cada um dentro.
Mas precisava daquela gente — por enquanto. Eram peças para mover seu plano. Assim que conseguisse o que queria, faria questão de enterrar todos eles numa vala qualquer.
— Yo! E aê, chefe! — um dos que jogavam chamou, e a sala inteira levantou a cabeça; todo mundo parou o que fazia para cumprimentá-lo.
Hugo acenou sem entusiasmo. Cruzou a sala e subiu as escadas rumo ao segundo andar, direto para o quarto.
Antes de abrir a porta, congelou por um segundo. Ouviu algo que apertou o peito. Riu, um riso curto e frio, meio zombeteiro.
Quando empurrou a porta, viu o que temera — e, ao mesmo tempo, algo que já pressentira: a mulher dele montada em outro homem.
O sentimento que explodiu em Hugo foi uma mistura estranha — raiva, desprezo, um alívio seco, como se tirasse um band-aid de uma ferida que já doía. Não era ciúme romântico; era constatação. Algo para terminar.
— Hugo?! Não é isso—
Bang.
O som foi seco. O sangue jorrou sobre os seios e o rosto da mulher, junto de miolos e massa encefálica. O homem caiu ali mesmo, simples assim.
— Cai fora.
— Hu—
— Eu já mandei ir embora, sua vadia! — Hugo gritou, e deu um tiro no teto só para deixar a casa em pânico.
A mulher soltou um grito, pulou do corpo sem pensar em roupa e correu ladeira abaixo, presa ao terror. Seus passos ecoaram pela escada como um aviso.
Os capangas vieram correndo.
— Chefe, que merda foi essa? — um deles arfou. — Porra, que porra é essa?!
As peças se encaixaram rápido. Um começou a xingar o outro, exigindo mais atenção. De onde tinha surgido aquele desgraçado? Como entrou? Por que tava comendo a mulher do chefe?
Hugo olhou em volta com olhos de faca. Não explicou. Ordenou:
— Limpem essa merda — pausou, e em seguida, com um tom que não aceitava réplica: — Não, queimem tudo. Eu volto mais tarde.
♦♦♦
Hugo caminhava de cabeça baixa pelo longo corredor branco, os passos ecoando sobre o piso encerado. Evitava encarar os rostos que passavam: enfermeiras apressadas, pacientes de olhar cansado, acompanhantes que apertavam bolsas contra o peito.
Todos mantinham distância do brutamontes, e ele sentia, mesmo sem levantar os olhos, os seguranças acompanhando cada movimento.
Ignorou, como sempre, até parar diante da porta. Entrou.
Sua mãe dormia. Pacífica. Como se a maldade do mundo não tivesse passe livre naquele quarto.
Era muito magra, pele quase translúcida. A cabeça raspada escondida por um lenço colorido. Mesmo assim, havia nela uma leveza — não era uma alegria terrena, mas uma paz que parecia vir de um lugar onde nada mais podia feri-la.
Hugo se afundou na poltrona ao lado da cama. Ficou ali, quieto, sozinho, olhando para ela. Sem palavras. Sem máscara.
Se não fosse pelo tio pagando o tratamento, ela já teria morrido. Isso ele sabia. E era grato. Admirava e respeitava profundamente aquele homem.
Contudo…
— Não posso acabar como meu pa— — mordeu a palavra, engolindo o nome — …como aquele desgraçado.
A mão fechou em punho no braço da poltrona.
— Tio… o senhor vive falando sobre paciência, sobre fundamentos… mas eu não tenho tempo pra isso. — A voz saiu baixa, rouca, um desabafo sem plateia. — Eu tô cansado dessa vida de merda.
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