Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 18: Um adeus e um novo começo

— Você tá acabado.

— Pois é... Dormir por cem anos atrofiou bastante meu corpo.

Miguel riu de si mesmo.

— E agora... pretende continuar dormindo?

— Bem... queria passar mais um tempinho aqui...

Ela sorriu.

Um sorriso singelo, etéreo — aquele que sempre o fazia perder a noção do tempo.

— Eu sei, meu amor.

Acariciou-o com delicadeza. Sua mão, suave como creme, pousou em seu rosto com a leveza de uma pena.

— Mas você sabe, não sabe?

Infelizmente... ele sabia.

Era só um sonho.

Um lindo... mas triste sonho.

Uma fisgada aguda perfurou o peito — sem som, sem aviso.

Mas ela repousou a mão sobre ele, no mesmo lugar da dor — como se tentasse curá-lo.

— Não chore, meu amor. Eu ainda estou aqui.

Seus cabelos, dourados como trigo ao entardecer, balançavam com a brisa suave, revelando bochechas alvas como leite, levemente coradas como romãs.

Seus olhos... verde-oliva.

Tão linda.

Tão distante.

— Não chore... — repetiu, ainda mais suave. — Hm. Eu sempre vou estar com você.

Ele não respondeu. Apenas fechou os olhos.

— Mas agora... também há outra pessoa que precisa de você. E você... também precisa dela, não é?

Miguel assentiu. E, pela primeira vez, sem culpa.

— Hm.

Aquele sorriso. Tão caloroso. Tão belo.

— Isso mesmo. Você não está me abandonando ao seguir em frente. Eu sempre estarei contigo. Sempre o amarei. E sei... que sempre me amará.

As mãos dela tocaram o rosto dele. Macias. Firmes.

O mundo parecia parar.

Então... seus lábios se encontraram.

Pela última vez.

♦♦♦

A dor o lembrou de que ainda estava vivo antes mesmo de abrir os olhos.

Seu corpo doía por inteiro. O rosto latejava, os músculos estavam tensos, como se tivesse sido atropelado por um trem.

Gemeu baixo, contraindo o rosto.

— Miguel...

Mia estava ao lado, sentada numa cadeira baixa próxima à cama. As mãos cobriam parte do rosto, e os olhos estavam vermelhos, brilhando com lágrimas contidas, fracamente iluminado pelo neon do lado de fora.

O quarto era pequeno e silencioso, com as persianas deixando entrar a luz fraca e azulada da cidade. Era o mesmo apartamento emprestado por Victoria, onde já haviam passado algumas noites. Agora, tudo parecia mais calmo.

Um copo com água pela metade e um curativo usado estavam sobre a mesinha. Havia cheiro de álcool e remédio.

Miguel estava só de calça de moletom, o peito enfaixado. Mia vestia uma das camisetas largas dele.

— Por que está chorando? Eu tô bem, Mia.

Ele sorriu.

— Você também estava chorando...

— É mesmo?

Mas ele já sabia.

Ainda sentia o rosto úmido, o rastro das lágrimas secas.

— Você tá bem, Mia?

— Hm.

— De verdade? Não se machucou?

Ela assentiu.

— Estou bem. Só tive um arranhão. Bem diferente de voc—

Ele a puxou de repente, envolvendo-a nos braços.

Sentiu o corpo dela tremer contra o seu, mas ela não resistiu. O abraçou de volta.

Nenhum dos dois disse mais nada.

O som abafado da cidade seguia lá fora. Dentro do quarto, só havia os dois — respirando juntos no escuro.

♦♦♦

Quando abriu os olhos, a luz fraca da manhã já atravessava as frestas da janela. O quarto estava em silêncio, aquecido pelo sol pálido e pela presença ao seu lado.

Mia ainda dormia, ocupando o mesmo espaço apertado do colchão. Os cabelos estavam espalhados pelo travesseiro, e sua respiração era tranquila, quase imperceptível.

Miguel a observou por alguns segundos. O rosto sereno, os cílios longos. Ela estivera ali o tempo todo.

Com cuidado, afastou o lençol e se levantou. O corpo ainda doía, mas conseguia se mover.

Pegou o celular, franziu o cenho ao ver algo na tela, e o largou de volta na mesa.

Caminhou até o banheiro, em silêncio. Precisava de um banho.

Debaixo da água quente, ergueu os braços. As marcas de fissuras ainda estavam por toda a pele — pareciam estrias em mármore. Mãos, braços, tronco, pernas, pés. Todo seu corpo.

Ainda assim...

— Minha regeneração está muito mais forte do que cem anos atrás... — murmurou, soprando o vapor quente dentro do box.

— Sempre que eu usava o Kaihōtai, precisava de pelo menos uma semana pra me recuperar... agora... mal se passaram dois dias, e as marcas já estão desaparecendo.

O que está acontecendo...?

Mas não conseguiu pensar demais nisso. A água escorria para o ralo, levando muitos fios de cabelo misturados com sangue.

Tocou o nariz — a lateral da mão ficou carmesim.

Sentiu também o sangue escapando dos ouvidos, assim como do canto dos olhos.

Se sentou ao sentir a visão embaçando, a água quente despencando sobre suas costas.

Soltou um longo suspiro.

Quando saiu do banheiro, Mia já não estava mais na cama. Sentiu um leve vazio... mas logo o cheiro amanteigado e defumado vindo da cozinha arrancou-lhe um sorriso.

Bacon e ovos fritos.

Sua barriga roncou.

Vestiu roupas limpas e seguiu o aroma delicioso.

Mas parou.

Sem pensar. Apenas ficou ali, encostado no portal da cozinha.

Mia mexia os ovos na frigideira com uma espátula de plástico. Ao lado, as tiras de bacon já estavam empilhadas num prato. O cabelo dela estava preso em um coque desajeitado, com mechas azuladas caindo sobre a nuca branca.

Ainda usava a camiseta larga dele, que mal cobria a metade das coxas. As pernas à mostra. Pantufas de pandinha nos pés.

Cantarolava baixinho, banhada pela luz suave que atravessava a janela.

Quando finalmente o notou, virou-se. Assim que os olhares se encontraram, ela sorriu com doçura e disse algo — talvez sobre o café —, mas Miguel não ouviu. Estava hipnotizado.

Mechas azuis caíam sobre as covinhas coradas dela, dando ainda mais charme àquela beleza tão leve.

— Hm? Que foi? — ela perguntou, inclinando o rosto, intrigada com o silêncio dele.

Miguel foi até ela, como se movido por um impulso incontrolável.

— Miguel? — Mia arregalou os olhos, surpresa com a aproximação.

Ele não respondeu. Apenas se aproximou, desligou o fogão com um gesto automático... e então segurou o rosto dela com todo cuidado.

Mia corou na hora. Nariz e orelhas avermelhados. Desviou o olhar, tímida demais para encará-lo.

E isso só fez o coração dele explodir por dentro — como um vulcão em erupção.

A outra mão tocou sua cintura, puxando-a com delicadeza. Queria senti-la por inteiro.

Mia tremia. Mas não recuava.

Então, finalmente...

Seus lábios se encontraram.

Miguel a envolveu com ternura, atento a cada reação, cuidando para não a ferir.

E ela se entregou, abraçando sua cintura com os braços finos.

Não saberiam dizer quanto tempo ficaram ali, de olhos fechados, presos naquele beijo que começou tímido e se transformou em algo suave, profundo.

Quando se afastaram, o mundo parecia mais lento.

Ficaram se olhando, em silêncio. Não era preciso dizer nada. Estavam ali. Um nos braços do outro. Sentindo o coração bater em sincronia.

Miguel entrelaçou os dedos nos dela e, com delicadeza, a conduziu de volta ao quarto. Hesitou por um instante, achando que talvez estivesse sendo apressado...

Mas então Mia o olhou — um olhar calmo, singelo — e nele havia certeza.

Ela também queria.

A porta se fechou devagar às costas dos dois.

Luz filtrava pelas frestas da janela, lançando linhas suaves sobre os lençóis.

Mia parou perto da cama, olhando para ele com um brilho vulnerável nos olhos. Não havia pressa, só desejo contido.

Miguel se aproximou, ainda em silêncio, e ergueu a mão até a nuca dela. Soltou o coque com um gesto calmo, deixando os fios caírem.

Mia fechou os olhos por reflexo, sentindo os dedos dele passarem por seu cabelo, escorregando até seu rosto, acariciando com o dorso da mão a pele quente da bochecha.

A camisa que usava — a dele — escorregou por um dos ombros.

Ela não a ajustou. Apenas ficou ali, deixando que o momento seguisse seu ritmo.

Miguel se abaixou, colando a testa na dela. Sentia a respiração curta de Mia, o coração acelerado.

Ela o envolveu pelos ombros, puxando-o devagar.

Os lábios se tocaram outra vez. Agora, sem hesitação.

Beijaram-se devagar, com cuidado. Como se um estivesse aprendendo o contorno do outro.

O toque de Miguel desceu pelas costas dela, guiando cada movimento, atento a cada reação.

A respiração de Mia foi ficando mais pesada, entrecortada. Ela apertava a cintura dele com as pernas nuas, como se não quisesse mais espaço entre eles.

Os corpos caíram sobre o colchão. Lençóis sendo puxados, pele contra pele.

O calor entre eles era real, vivo, denso.

Não havia palavras. Só toques.

Só suspiros abafados no pescoço.

Só olhos que se encontravam e diziam tudo que não sabiam nomear.

A luz da manhã seguia entrando pelas frestas.

Lenta.

Dourada.

Silenciosa testemunha daquele instante que não parecia pertencer ao mundo lá fora.

♦♦♦

— Você não só usou o Kaihōtai... como ainda combinou com o Genshi no Zankyō... — murmurou Mia, a voz baixa, os olhos brilhando em melancolia. — Isso poderia ter te matado.

— Me desculpa. Quando te vi ferida, inconsciente... tive tanto medo de te perder. Eu não me importava com as consequências.

Mia, ainda sobre ele, encostou a testa em seu peito. Assentiu em silêncio.

— Não usa mais isso... tudo bem?

A voz dela foi um sussurro, carregado de dor e medo.

— Hm. Eu não vou mais usar o Genshi no Zankyō.

— Promete?

Ela o encarou com firmeza.

— Prometo.

Só então Mia suspirou, aliviada.

— Além disso... — hesitou — tenta evitar usar o Kaihōtai até recuperar pelo menos uns 80% da sua capacidade física, tá?

Miguel sorriu. Ela estava mesmo preocupada com ele.

— Claro. Eu vou te obedecer, Mia.

Ela soltou uma risadinha, satisfeita.

Houve outra troca silenciosa de olhares, ambos sorriram meio tímidos meio sugestivos.

Seus lábios voltaram a se tocar e seus corpos mais uma vez tornaram-se um só.

O café da manhã daquele dia se tornou o almoço, pois nenhum dos dois queria se separar...

♦♦♦

— Quem traiu a gente? — Miguel perguntou, levando uma fatia de bacon à boca.

— Mike — respondeu Mia, como se já esperasse que ele chegasse a essa conclusão.

— Entendo.

Mia então resumiu o que aconteceu nos dois dias em que ele ficou inconsciente.

Mike — o cara a quem Miguel arrancou um braço por ter encostado nela — foi manipulado por um tal de Hugo. Usaram o ressentimento dele pra entregar a gangue, prometendo que só Miguel seria morto.

Mas com o que houve naquela noite, ficou claro que todos eram alvos a serem abatidos.

Esse Hugo era o chefe de Lincoln — o mesmo que estavam caçando pela traição na fábrica abandonada.

Victor e os outros conseguiram localizar Lincoln ontem. Quando o encontraram, o cara já estava morto, abandonado em uma banheira com vários órgãos faltando.

Mas com ajuda de uma amiga da gangue, conseguiram informações cruciais.

A verdade era que Hugo estava atrás de Victoria — ela era a mente por trás da Aurora Phase, a droga que alavancou a Crimson Wolf pro topo. O plano era bem simples: infiltrar a gangue, entregá-los à polícia, e no caos que se seguiria, sequestrar Victoria e usa-la para seu próprio benefício no submundo.

Victor conhecia Hugo de negócios passados e confiou no freela que ele indicou. Foi assim que tudo começou a desmoronar.

Mike agora está desaparecido.

A Crimson Wolf agora tinha dois alvos claros: Hugo e Mike.

Miguel soltou um suspiro quando terminou de comer.

— Eles devem ter um monte de perguntas, né?

Mia assentiu com um sorriso torto.

— Vic e Sam não pararam de me perguntar o que aconteceu com você e se você ficaria bem. Victor e Luna também pareciam bem preocupados, mas ficaram mais calmos. O que pretende fazer?

Miguel já tinha ideia de como prosseguir.

— Vem, eu te ajudo a lavar a louça. — Se levantou, recolhendo os pratos, talheres e canecas. — Seremos sinceros com eles... bem, escondendo uma coisinha aqui e alterando outra ali.

Os ombros de Mia tremiam enquanto ria.

♦♦♦

Assim que a garagem se abriu e eles atravessaram a entrada, duas figuras surgiram para recebê-los.

Samira sorriu, os olhos brilhando enquanto se aproximava.

Victoria, por outro lado, apesar de também parecer feliz, os observava de forma mais lenta, atenta — os olhos arco-íris demorando-se nos dedos entrelaçados do casal.

Miguel, por um momento, achou ter visto uma mecha do cabelo dela se contrair, como se piscasse um alerta.

Não... claro que não. Que pensamento idiota...

— Miguel! Você tá melhor? Finalmente acordou! — Samira exclamou. — Oi, Mia.

— Oi, Sam — Mia respondeu, mais animada do que de costume.

Aquilo não passou despercebido.

Samira pareceu notar algo, talvez captando o clima no ar.

Mas Victoria, sempre mais afiada, arregalou os olhos e saltitou até eles, o sorriso crescendo a cada passo.

Os olhos arco-íris brilhavam intensamente — pura malícia.

— Ei... você tá diferente, Mia... ah! Já sei! Você finalmente perdeu o cabaç—

Miguel selou a boca dela com a mão.

Uma veia latejou na lateral da testa.

Mia ficou tão vermelha quanto um camarão.

Victoria gargalhou mesmo com a boca abafada, os olhos cravados em Miguel:

“Finalmente transaram, né?! Né?! Né?!”

Era o que diziam claramente.

Miguel apertou ainda mais a mão.

Vic gemeu de dor.

— Ai! Hm-hmm... — choramingou.

— Desculp—

Humpf! Desculpa nada! — o cortou, emburrada. — Como vai me compensar? Hein?! Você não se sente culpado por machucar um rostinho tão lindo? Ei, Mia! Miguel tá me intimidando!

Mia, ainda morrendo de vergonha, riu baixinho.

— Hm. Depois Miguel vai te compensar.

Hehehe! Eu te amo, Mia! — E se jogou nela. Enquanto a apertava feito um velho tarado, virou-se para Miguel. Os olhos carregando aquela travessura típica. — Mas sério... você tá bem, né?

Miguel assentiu.

— Tô bem.

— Ei, Miguel...

— Hm?

Samira puxava sua manga com um sorriso ambíguo. Então ergueu o polegar e piscou para ele.

Mas que diabos essas garotas...

— Ora, mas que atmosfera animada. — Luna surgiu do interior do prédio. — Ei, Miguel. Que bom que não morreu.

Miguel deu de ombros.

— Valeu por cuidar da Mia.

Luna apenas mostrou a língua, travessa.

— Mia, vem, precisamos conversar! — Victoria apareceu de supetão e já roubava Mia dele.

Mia só teve tempo de acenar, o rosto corado, sendo puxada para longe com Victoria de um lado e Samira do outro.

— Por que elas estão tão animadas...?

— ... sei lá.

— Oh... até você não sabe mentir às vezes. — Luna gargalhou. — Que lado fofo.

Miguel fez bico, mas a expressão murchou devagar.

— ... Você tá bem? — perguntou, notando uma espécie de... distância. Quase como se houvesse uma película invisível entre eles.

Luna desviou o olhar, coçando o braço com uma ansiedade mal contida.

— Desculpa por aquela noite — disse ele, evitando encará-la. — Não queria que fosse pega naquilo.

Ela respirou fundo. Esboçou um sorriso e se aproximou.

— Não faz essa carinha de gatinho manhoso — o cutucou na testa.

— Eu não tô fazendo essa cara.

— Tá sim! Humpf!

Acabaram rindo.

— Mas me explica... o que foi aquilo? — a voz dela baixou uma oitava. — Eu tive pesadelos... só consegui dormir essa noite.

Miguel apertou o punho. Arrependido.

— Se chama Genshi no Zankyō.

Genshi no Zankyō...? — Luna franziu o cenho. — Eco Primordial?

Miguel ficou surpreso.

— Hm-hum. Você sabe japonês?

— Todo mundo sabe... ou quase todo mundo. A Sam é melhor que eu. Mas eu sou melhor no francês e russo! — mostrou a língua, vitoriosa.

Miguel lembrou da conversa com Mia, logo quando conheceram o mundo atual. A maioria das pessoas falava um pouco de cada coisa — japonês, russo, espanhol... Era natural. Nos últimos cem anos, o Brasil havia recebido ondas massivas de refugiados de todos os cantos do planeta.

Genshi no Zankyō é uma das habilidades do Primordium. Ela mexe com a psique.

— Tipo controle mental? Não, pera! É melhor compartilhar isso com todos.

Miguel concordou com a cabeça, ele já faria isso de qualquer forma.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora