Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 16: Aterrorizante

Luna mancava pela avenida, arrastando a perna baleada como um fardo maldito. Cada passo deixava um novo rastro carmesim sobre o asfalto rachado. O cheiro de ferro quente já enchia suas narinas, misturado ao odor ácido do suor e da fumaça que ainda pairava no ar.

Mas não podia parar. Não agora.

Tinha que chegar até eles.

— Porra... porra...

Tombou, tropeçando na própria perna. Caiu com o corpo inteiro no asfalto gelado, as mãos raspando no chão e abrindo cortes profundos nas palmas.

A ardência veio como agulhas cravando direto na carne viva.

Porra!

As luzes de painéis de LED e outdoors piscavam acima, lançando flashes coloridos e intermitentes sobre o cenário deserto. Vermelho. Azul. Amarelo. Vermelho. Azul. Tudo pulsava como um coração cibernético morrendo.

As ruas estavam vazias, não por ausência de vida, mas porque todos haviam se trancado — escondidos atrás de cortinas puídas, grades reforçadas e olhos arregalados. Ela podia sentir.

Os olhares.

Entre as frestas das janelas, por trás das sombras dos cortiços.

— Foda-se... — resmungou com raiva, cuspindo no chão enquanto se erguia com esforço.

Puxou a pistola caída. Continuou. Ou tentou.

Então tudo parou.

O mundo ficou mudo.

Um silêncio estranho, pesado, sobrenatural. O tipo de silêncio que fazia os ouvidos doerem.

Tuntum...

Tuntuntum...

Tuntuntuntum...

O coração batia como se estivesse descompassado, os sons crescendo dentro do peito até ecoarem no crânio.

Tuntuntuntuntum...

Veio o frio.

Não um frio comum. Mas um calafrio ancestral, como se tivesse sido despida até os ossos e lançada nua em um mar de gelo.

Cada fio de cabelo eriçado.

Cada músculo, contraído.

As luzes... apagaram.

Não uma falha elétrica qualquer — foi como se o mundo inteiro tivesse sido engolido por um buraco. Nenhuma estrela no céu, nenhum clarão à distância. Apenas trevas.

Um breu absoluto, do tipo que parecia sussurrar de volta.

Então, algo soprou em sua mente.

Não foi um som.

Foi uma ideia.

Um pensamento que não era dela.

Sentiu por um instante como se longos e incontáveis dedos, asquerosos, gordurosos, puxassem sua pele.

Invadindo.

Arranhando.

Corrompendo.

Consumindo e angustiando cada canto do seu ser.

E então... o silêncio voltou.

Ela piscou.

A luz voltou.

O mundo, como antes.

Mas algo... não estava certo.

— ... — ofegou, olhando ao redor, zonza.

O que acabou de acontecer...?

Tentou se levantar, mas suas pernas tremiam de forma anormal, como se houvesse perdido o controle do próprio corpo.

Quando foi que eu caí...?

As mãos tocaram novamente o chão, agora encharcadas. Mas não era sangue. Era suor. Suor frio, viscoso, correndo pela espinha até molhar a barra da camisa.

Não só isso, ela notou imediatamente.

Estava chorando.

Sem entender o porquê.

Ou melhor...

De alguma forma incompreensível, sentia que entendia...

Demorou, mas conseguiu se pôr de pé. Ainda tremia, mas continuou. Um passo. Depois outro. A sensação de horror ainda assombrava suas entranhas, mas ela forçou o corpo a seguir.

O caminho parecia mais longo do que antes.

Silencioso demais.

Quando estava vindo, conseguia ouvir tiros. Explosões. Gritos. Agora... nada.

Nem o som de seus próprios passos.

Engoliu em seco. Tentou enterrar o mal pressentimento na garganta. Pegou o celular, os dedos trêmulos. O gps indicava que Miguel e Mia estavam logo à frente, virando a próxima esquina.

Mas algo a fez hesitar.

Um peso caiu sobre seus ombros. Como se o próprio ar tivesse ganhado gravidade. Cada passo seguinte era como andar dentro d’água.

Pesado.

Sufocante.

Mesmo assim, atravessou o beco.

Virou a esquina.

E então, o ar sumiu dos pulmões.

Estavam ali.

Miguel... parado no centro da viela.

Segurava Mia nos braços — os longos cabelos azulados balançando com o vento gélido que soprava pela rua estreita. Um rastro de sangue que descia do topo da cabeça e pingava no chão.

Mas era o espetáculo grotesco ao redor que tirava o fôlego.

Corpos.

Membros.

Carne.

Tudo espalhado como lixo orgânico mutilado por alguma criatura impossível. Não pareciam apenas mortos. Pareciam aniquilados. Como se tivessem sido esmagados, estourados, partidos como bonecos de pano ensanguentado.

E ele... estava imóvel, a jaqueta que usava cheia de rasgos, banhado em sangue.

Luna desabou de bunda no chão, a arma escorregando das mãos. A visão embaralhada, o estômago revirando com o cheiro pútrido da morte impregnando o ar.

Então, ele se virou.

Miguel caminhou até ela, passo por passo, como se o tempo não o alcançasse.

A franja escondia seus olhos, mas ainda dava pra ver trilhas de sangue que se originava deles.

Apenas a boca visível, sem expressão.

A sombra dele se estendia como um véu por cima da poça de sangue.

— Me desculpe por isso.

A voz era baixa, quase um sussurro. Suave como seda.

Mas fria. Fria como lâmina encostando na pele.

Ele se ajoelhou diante dela.

— Por favor... cuide de Mia. Vou voltar para ajudar os outros.

Ela apenas assentiu. Sem saber por quê.

Pegou Mia nos braços, sem nem perceber quando.

Apenas ficou ali, encarando Miguel sumir entre as sombras.

O som da cidade parecia continuar mudo.

Mas agora...

Era como se a cidade inteira estivesse segurando a respiração.

♦♦♦

O som grave da música vazava da Boate Rosa Azul como se o próprio prédio pulsasse com o baixo, vibrando as estruturas decadentes do entorno. Na calçada, uma fila serpenteava pelo beco iluminado por letreiros holográficos e drones publicitários, que projetavam imagens flutuantes de corpos dançantes, promoções obscenas e slogans cafonas como “Sinta mais. Viva menos.”

Ali, na parte baixa do Distrito 1, tudo cheirava a suor, graxa e feromônio sintético. Vapor subia de grades de ventilação no asfalto rachado. Prostitutas se misturavam a punks cheios de modificações faciais.

Dois brutamontes vestidos com jaquetas blindadas vigiavam a entrada principal, mastigando algo ou fumando. Havia drones de segurança zumbindo no alto, escaneando rostos e emitindo avisos em vozes femininas digitalizadas.

Na área frontal do prédio, onde a van do grupo estava estacionada, Miguel afagava o rosto de Mia com um cuidado quase reverente.

— Toma cuidado, tá? — ela pediu, em tom doce, mas firme.

— Relaxa, Mia — ele respondeu com um sorriso leve, os dedos deslizando sobre sua bochecha. — Sabe o quanto sou forte.

Ela soltou uma risadinha e assentiu, meio tímida.

— Cuida bem dela, Vic.

— Deixa comigo! — Victoria fez continência de brincadeira, mas logo completou com um sorriso malicioso. — Mas em troca, quero que dê um show lá dentro, entendeu?

— Tá, tá... — Miguel respondeu com um riso resignado, balançando a cabeça.

Depois de deixar Mia sob os cuidados das outras na van, Miguel se virou para ir com Luna. Foi nesse momento que notou todos o observando com aqueles sorrisinhos de canto. Sentiu o rosto esquentar.

— E sobre aquilo que disse? — murmurou Pietro, apenas para que Miguel ouvisse.

Miguel não respondeu.

Ele tinha dito antes que não tinha um relacionamento amoroso com Mia, mas é bem como Pietro tinha destacado anteriormente, Mia e ele se comportavam praticamente como um casal e o gesto de agora a pouco podia claramente ser associado a isso.

Isso é só... amizade platônica profunda... certo?

Não...

Eu gosto de Mia.

E sim... eu a olho as vezes com desejo...

Mia também gosta de mim...

Agora não. Preciso me concentrar.

Miguel afastou os pensamentos com um suspiro curto, quase imperceptível.

— Ei, tá no mundo da lua? — Luna cutucou o braço dele com o cotovelo, uma sobrancelha arqueada.

— Hã? Nada não. Vamos?

— Então anda logo. Pega. — Ela tirou um fone intra-auricular do bolso e o entregou.

Miguel colocou o fone no ouvido direito sem cerimonias, encarou o beco mal iluminado à frente e a seguiu em silêncio.

O grupo se dividira em três times de ataque e um de suporte — a melhor forma de fechar todas as rotas de fuga possíveis.

Na van, estacionada algumas quadras adiante, Mia e Jorge hackeavam a rede interna da Rosa Azul. Sabotando câmeras de segurança, comunicação interna e até drones autônomos conectados à central do prédio. Do lado de fora, Victoria e Samira mantinham-se alertas, posicionadas próximo ao veículo, os olhos atentos ao movimento no estacionamento lotado do Distrito 1.

Victor, Leo e Tom seguiram pela entrada leste, entre corredores estreitos onde os prédios se empilhavam como caixas de concreto, sem deixar espaço nem para o vento passar.

Pietro e Rita se infiltraram pela entrada principal, misturando-se à multidão que serpenteava a fila. A música da boate escapava por frestas e paredes vibrantes, e o cheiro de cigarro sintético e suor pairava no ar pesado.

Miguel e Luna ficaram com o acesso oeste.

O alvo, Lincoln, podia estar em qualquer lugar lá dentro.

Ele avançou atrás de Luna, os olhos varrendo cada detalhe. A missão tinha começado.

No acesso lateral, a dupla passou direto pelos seguranças após Luna abrir caminho com uma chave que abria quase todas as portas — dinheiro. Os brutamontes apenas ergueram uma sobrancelha ao notar a estampa nas jaquetas dos dois. Reconheceram o símbolo. Preferiram não perguntar nada.

Como era de se esperar, o lugar estava lotado.

A música — uma batida eletrônica misturada com funk distorcido — vibrava no peito. Ritmo preciso, grave limpo, efeitos sonoros quase hipnóticos. As luzes pulsavam em sincronia com o som, mudando de cor e intensidade a cada drop, tornando o ambiente quase febril.

Pessoas dançavam, se esfregavam, se beijavam sem cerimônia. Algumas cheiravam alguma coisa nos cantos, outras gargalhavam jogadas nos sofás holográficos enquanto bebidas coloridas derramavam dos copos. O cheiro do lugar era uma mistura de suor, álcool e perfume sintético.

Miguel olhou em volta, atento.

Procurar nosso alvo nesse caos vai ser complicado...

Pensou, mas não se desmotivou.

— Hehehe.

Ele virou o rosto, curioso. Luna escondia uma risadinha discreta, olhando pra ele de canto.

— Que foi?

— É que... tá mesmo apertado em você — disse ela, soltando outra risada mais alta.

A jaqueta. Ele também sentia os ombros travados e o tecido repuxando nos braços. Mas não ligava.

— É sua, não é?

Luna o encarou, surpresa.

— Como sabe?

— Tem seu cheiro.

Ela piscou, desacreditando. Puxou ele pela lapela e fungou a própria jaqueta.

— ...não tô sentindo nada. Que cheiro é? Caralho... que porra de nariz é esse? Cê adivinhou que era minha só pelo cheiro?

— Talvez você só esteja acostumada ao seu próprio cheiro — disse ele, dando de ombros. Na verdade, seus sentidos eram mais aguçados que o normal — outro traço aperfeiçoado pelo Primordium.

— Tá bem fraco, mas eu reconheci. É seu.

— Ah é? — Ela ergueu uma sobrancelha, provocativa. — E o cheiro é bom ou ruim? Cuidado com o que vai dizer, hein.

Ele riu.

— É claro que é bom. Perfume suave... levemente doce, cítrico. Jasmim, frésia, flor de laranjeira africana... talvez orquídea também?

— Você é o que? Um cão farejador? Humpf. Vamos logo. — Luna se virou de repente, mas Miguel percebeu o leve rubor nas orelhas dela.

♦♦♦

Após algum tempo, nenhum dos grupos reportara progresso. Todos seguiam se comunicando pelo canal interno, mas ninguém havia encontrado Lincoln.

Miguel começou a sentir um mal pressentimento.

— Luna — chamou, com a voz baixa, discreta.

— É... eu sei.

Como era de se esperar dela, Luna também tinha notado.

Estavam sendo vigiados.

Estranho. Não havia motivo aparente. Não estavam agindo de forma suspeita, nem fora de padrão. Ainda assim, Miguel podia sentir — havia hostilidade no ar. Densa, sufocante.

— O que quer fazer? — Luna perguntou, tensa.

— Melhor recuar e nos reagruparmos. Podemos acabar em desvantagem aqui dentro.

— Entendo. Certo, vou—

Miguel! Luna! — gritou uma voz pelo fone.

— Vic? — Miguel sentiu o tom urgente. — O que foi?

— É uma armadilha! Porra!

O som de tiros ecoou no fundo. Caótico. Gritos abafados, passos correndo. Samira, talvez.

O coração de Miguel disparou.

— Filho da puta! — xingava Victoria entre rajadas. — Miguel! Porra! Estão levando a van! A Mia tá lá dentro!

O sangue dele gelou.

Por um segundo, o coração quase parou.

Ele não precisou ouvir mais nada.

Sua escama reversa havia sido tocada.

Virou-se e correu sem pensar.

— Miguel, espera!

A voz de Luna ficou para trás, tragada pela multidão.

Trombadas, empurrões. Gente dançando, se drogando, rindo — como se o inferno não estivesse prestes a abrir sob os pés deles.

Algo cortou o ar à frente. Reflexo puro: Miguel desviou no último instante.

Um brutamontes surgiu no caminho, olhos arregalados ao ver que Miguel desviara do golpe surpresa. Mas a hesitação foi mínima. O sujeito avançou outra vez, punho cerrado.

Miguel não perdeu tempo com brigas.

Sacou a pistola. Um disparo seco.

O crânio do homem explodiu em sangue e osso.

O corpo tombou sem resistência.

E por mais absurdo que fosse, ninguém ao redor reagiu de imediato. Alguns estavam chapados demais. Outros só continuaram dançando, presos numa bolha de ignorância ou negação.

Miguel viu outros se aproximando. Não importava.

Ia passar por cima de qualquer um que ousasse ficar entre ele e Mia.

E foi o que fez.

O caos estourou na boate.

Tiros, gritos e sangue se misturaram às batidas pulsantes e às luzes estroboscópicas. Um espetáculo grotesco de morte e som, onde cada estalo de bala marcava o ritmo de uma nova carnificina.

Miguel havia se tornado o epicentro de um massacre — e nenhum deles sobreviveria se ficasse em seu caminho.

♦♦♦

Miguel trocava o pente da pistola enquanto deixava, por fim, o interior da boate.

Lá fora, o ar parecia mais frio. Talvez fosse só o contraste com o calor sufocante do massacre que ele acabara de deixar para trás.

Deu dois passos e precisou se jogar para o lado.

Um disparo atravessou o lugar exato onde sua cabeça estivera um segundo antes.

— Merda...

Dois homens o esperavam do lado de fora, metralhadoras em punho, protegidos atrás de um carro com a porta aberta. Outros surgiam entre as sombras, alguns ainda tentando pegar fôlego após a correria.

Miguel não hesitou. Usando os carros estacionados como cobertura, avançou com frieza. Um tiro, dois, três — certeiros. Um na cabeça, outro no ombro, depois mais dois no peito. Só parou quando o último inimigo, desesperado, tentou fugir tropeçando nos próprios pés. Miguel não deu chance.

Puxou o gatilho. A cabeça do homem estourou contra a parede.

Havia pessoas que nada tinham a ver com o que estava acontecendo, fugiam desesperadas por entre os becos — pelo menos as que não eram atingidas no fogo cruzado.

Correu então até o ponto onde a van estivera estacionada quando chegaram.

— Miguel!

Ele levantou a mira, mas era Samira.

Baixou a mão, sem ao menos se desculpar. O olhar dele bastava para deixar qualquer um desconfortável — e Samira, apesar da coragem, não era exceção.

Ao fundo, rajadas de tiros ainda ecoavam. O som vinha da viela à direita, onde Victoria dava cobertura para Jorge, caído e gemendo, segurando o ombro encharcado de sangue. Não dava para saber se a bala pegou de raspão ou mais fundo, mas a prioridade agora era outra.

— Para onde foram? — perguntou, seco, contendo a urgência que borbulhava por dentro.

— Pegue — disse ela, jogando-lhe o celular.

Miguel pegou no ar e agradeceu mentalmente por ela não desperdiçar tempo com perguntas inúteis.

Atrás dela, um dos atiradores feridos tentou se arrastar até uma arma caída. Miguel nem se virou totalmente. Um único disparo. Silêncio, de novo.

— Vic tá cuidando do Jorge. Vou voltar pra ajudar. Toma cuidado.

Na tela, o GPS rastreava a localização de Mia em tempo real.

Ela ainda estava dentro do Distrito 1. O sinal se movia lentamente — provavelmente devido à arquitetura caótica daquela selva vertical, foi o mesmo quando estavam vindo de van, transitar ali era horrível, um labirinto de corredores estreitos e prédios amontoados.

— Valeu — disse Miguel, já se virando.

— Miguel...

Ele olhou de relance por cima do ombro. No entanto, Samira não disse nada. Estava ansiosa, mas também apreensiva.

Um disparo distante assobiou próximo ao muro, Samira se abaixou por reflexo.

— ...

Miguel forçou um sorriso.

— Não se preocupe. Eu já volto.

Samira assentiu, soltando o ar preso, os ombros mais relaxados — mas os olhos ainda cheios de preocupação.

♦♦♦

Uma queda de quinze metros.

Letal para qualquer humano.

Miguel pulou sem hesitar, ativando o Kaihōtai no último instante.

Tocou o concreto com os pés, rolando em diagonal. O impacto ainda foi brutal. Os joelhos protestaram com uma dor aguda que se espalhou como choque.

Desativou o Kaihōtai e continuou a corrida, ofegante.

Estava perto de Mia.

Parou abruptamente.

Se jogou num mergulho lateral, rolando para dentro de um beco à direita.

Logo em seguida, o ratátá de uma submetralhadora cortou o ar, junto com o rugido de pneus derrapando.

Um motoqueiro surgiu, metralhadora curta em punho, pente estendido, fuzilando Miguel enquanto pilotava por entre os becos.

Miguel recuou saltando por cima de latões de lixo, se enfiando em frestas entre construções.

Tentou despistá-lo, mas...

— Porra... — murmurou, ao ouvir outro motor rugindo.

Mais um. Vinha do outro lado.

Esses desgraçados estavam acostumados com aquele tipo de terreno — corredores estreitos, becos irregulares, escadas tortas, barracos empilhados como favela verticalizada.

Miguel se esquivava no limite.

Saltava muros, pulava de telhado em telhado, atravessava janelas e corredores. Atirava quando podia, mas era difícil acertar alvos tão rápidos naquele labirinto.

Agora eram três motoqueiros, e ele estava sendo caçado.

As rajadas atravessavam paredes de tijolo, atingiam portas, varavam postes — indiferentes a quem estivesse no caminho.

Miguel conferiu o GPS pela última vez.

Guardou o celular.

Ativou o Kaihōtai.

Correu, numa velocidade sobre-humana e simplesmente saltou um muro de três metros como se não fosse nada.

Aterrissou em cima da van em movimento, os pés cravando o capô com um impacto seco.

O motorista gritou. Perdeu o controle.

Miguel manteve o equilíbrio por pouco, enquanto puxava o gatilho.

Não mirou no motorista. Mia estava lá dentro, não podia causar um acidente.

Matou o capanga no banco do passageiro enquanto entrava pelo para-brisa estilhaçado.

Só então explodiu os miolos do motorista e o chutou pra fora.

Miguel assumiu o volante e forçou a van até parar.

Saltou para o banco de trás e...

Um homem segurava Mia, uma pistola pressionada contra a cabeça dela.

— Fique aí filho da puta! Eu mato ela! Eu mato ela!

— Miguel! — gritou Mia, se debatendo.

Não precisava.

Miguel atirou.

Não hesitou nem mesmo um milésimo de segundo.

A bala entrou pela testa do sequestrador, que caiu morto.

Mia tombou para frente, livre.

Tudo parecia controlado.

Mas então...

Uma batida violentíssima por trás.

Miguel abraçou Mia, protegendo-a com o próprio corpo.

A van deslizou rua abaixo, desgovernada. Aquela favela seguia a inclinação do morro como uma ladeira caótica.

A van derrapava, quicava, raspava nas paredes.

Por sorte — ou puro reflexo — Miguel saltou da porta lateral com Mia nos braços. Rolaram pelo asfalto áspero enquanto a van atravessava um muro e desaparecia.

Balas caíram como chuva.

Projéteis rasgaram a parede atrás, ricochetearam no chão, estouraram concreto ao redor.

Miguel sentiu as balas atingirem sua jaqueta — a prova de balas.

Mas ainda assim o impacto era brutal.

Parou.

Olhou para Mia.

Ela estava desacordada.

Sangue escorria do couro cabeludo.

Não era um tiro.

Talvez tivesse batido a cabeça ao saltarem da van.

O sangue em suas mãos era quente, mas estranho.

Sem viscosidade. Sem coagulação.

Falso.

Ela era uma androide afinal.

Mas o que importava?

Não.

Não importava.

Miguel congelou.

Seu mundo desmoronou.

O som ao redor sumiu.

A visão tremeu.

A única coisa que restava era:

ÓDIO.

Ódio puro. Ardente. Primordial.

As motos rapidamente os cercaram. Outros apareceram correndo.

Miguel pôs Mia sobre o asfalto e se levantou sem pressa.

Sentiu a cabeça latejar, uma dor excruciante como se espinhos brotassem de dentro do cérebro, se contorcendo ali dentro, revirando e se estendendo por todo seu sistema nervoso. Seus olhos perderam a visão por um momento. O som foi abolido da existência.

Lágrimas de sangue desceram enquanto ele liberava aquilo.

Silêncio.

Genshi no Zankyō.

O mundo congelou.

Não no tempo, mas no terror.

Todos ao redor pararam de se mover.

Não por escolha — por colapso mental.

Tremores. Espasmos.

As armas caíram das mãos.

Motoqueiros perderam o controle, colidiram com muros. Um deles teve a cabeça explodida ao se chocar em uma parede de tijolos.

O mais próximo de Miguel — um sujeito com um fuzil — estava de joelhos.

Chorava.

Tremia.

Se mijava.

Miguel se aproximou.

Mão esquerda no pescoço.

Direita no ombro.

Kaihōtai.

Num gesto quase gentil, puxou.

O homem foi partido ao meio.

Tripas explodiram sobre ele. Ossos, órgãos, fragmentos da espinha.

O chão se tornou uma poça grotesca de carne, sangue e fluidos.

E ainda assim...

Ninguém se mexeu.

Aquilo era só o início.

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