Volume 1
Capítulo 14: Tão Perto
Quarta-feira, 31 de Outubro, 2148. Águas Claras, DF.
Em uma época onde a maioria dos veículos eram elétricos ou híbridos, aqueles que ainda dependiam exclusivamente de combustíveis fósseis chamavam certa atenção. No entanto, mesmo entre esses sobreviventes do passado, havia um que se destacava como nenhum outro.
O design icônico dos esportivos do final do século XX, a carroceria de duas portas e o ronco inconfundível do motor faziam dele uma visão rara. Quem quer que o ouvisse, na época, reconheceria imediatamente o modelo. Quando ele finalmente parou, estacionando na frente da escola “Sakura”, muitas pessoas suspiraram ao ver o esportivo alaranjado com faixas negras.
Quase ninguém sabia que carro era aquele, talvez um ou outro mais velho em meio a multidão curiosa, poderia reconhecer o Opala SS 1978. Um carro tão antigo, mas em um estado perfeito, como se acabasse de ter saído da fábrica. Sua pintura brilhava magnificamente sob o neon que pulsava na cidade. Uma relíquia tão deslocada, mas tão única nessa era.
A porta do passageiro foi aberta primeiro. Uma garotinha de cerca de oito anos saltou do carro com os olhos brilhando como estrelas. As marias-chiquinhas rosas, presas por enormes laços rosas, balançavam enquanto ela se movia sem parar. Ela segurava um arco feito de galhos trançados, seu vestido era branco e rosa, com muitos babados, assim como suas luvas. Sapatinhos, também cor de rosa e meias brancas completavam sua fantasia de garota mágica.
Então, o motorista finalmente saiu do carro. Ele era enorme, com quase dois metros de altura e ombros largos. Usava um sobretudo negro por cima dos ombros. Sob o sobretudo, o gigante vestia uma regata cinza e calças de moletom, além de calçar chinelos simples. Quando a multidão o viu, sentiram arrepios. Além do tamanho intimidador, seus olhos carregavam uma sede de sangue silenciosa, uma presença que fazia a multidão prender a respiração.
Esse cara nem precisava de uma fantasia de halloween para causar medo.
Contudo...
— Papai! Anda logo! A gente já tá atrasado!
Ouvindo as palavras da garotinha, o olhar do ogro suavizou de forma impressionante, toda sua aura sanguinária pareceu se extinguir. Ele trancou o carro e correu até a filha, um sorriso fraco e gentil suavizando suas feições.
— O papai já tá indo.
Era como se os problemas que surgiram nos últimos dias simplesmente tivessem deixado de existir naquele momento.
Na fila de entrada para a escola, muitas pessoas, sendo a maioria crianças, se fantasiavam das mais variadas coisas. Desde fantasias clássicas até cosplays de animes e séries famosas do século passado que foram resgatados de alguma forma pela sociedade.
O portal de entrada da escola estava decorado com figuras temáticas de Halloween: fantasmas, esqueletos, morcegos e zumbis. Além disso, toda a área interna do colégio também estava enfeitada. Drones pairavam no céu escuro, realizando apresentações solo ou em conjunto, projetando hologramas realistas de criaturas que só poderiam existir em contos e histórias de ficção.
Bruxas de chapéus pontudos voavam em vassouras. Esqueletos com cabeças de abóbora corriam de um lado para o outro. Fantasmas flutuavam pelo ar, sussurrando palavras confusas, como lamentos indecifráveis. Apesar da aparência assustadora à primeira vista, tudo estava dentro dos limites do que as crianças poderiam suportar. Afinal, a escola não queria espantá-las — elas eram o público principal do festival.
Em meio ao ambiente tão animado, o homem suspirou cansado. Não é que ele não queria estar ali, apenas que sua mente estava preocupada com outro assunto, algo muito mais urgente que a festinha de Halloween de sua filha.
Foi então que ele ouviu um rapaz falar com ele.
— Com licença. O senhor é o dono daquele Opala SS?
O homem ergueu as sobrancelhas, muito surpreso com as palavras do garoto, que assim como ele não estava fantasiado de nada. O rapaz, na verdade, se vestia muito parecido com ele: um casaco cinza, camiseta preta, calça de moletom e tênis.
— Oh... você realmente conhece aquele carro? — perguntou o homem, sondando o garoto.
— Meu tio tinha um. — O garoto disse, sinceramente. — Nunca achei que veria outro. E o seu está novinho.
O homem riu, satisfeito. — Era do meu velho. Dois anos atrás, depois que ele morreu, peguei pra mim e o restaurei. Gastei uma nota, mas valeu a pena.
— Com certeza.
Eles riram e logo se cumprimentaram.
— Meu nome é Miguel — apresentou-se o rapaz.
Enquanto o grandão apertava sua mão, Miguel indicou a garota ao seu lado.
— Essa é Samira, minha namorada.
Samira precisou erguer bem a cabeça para acenar para o gigante. Apesar de sua baixa estatura, não parecia nem um pouco intimidada pelo homem de quase dois metros. Sua fantasia consistia em um quimono branco com adornos vermelhos, sandálias de madeira e nove caudas postiças de pelagem branca.
— Meu nome é Cezar — disse o grandalhão, ainda surpreso. O garoto à sua frente era bem mais baixo que ele, devia ter um metro e setenta e poucos, além de ser bem mais magro. No entanto, o aperto de sua mão era firme. Um brilho de admiração surgiu nos olhos de Cezar.
Cezar então percebeu o olhar surpreso do garoto e, já imaginando o motivo, comentou:
— Ah isso, como já percebeu não é uma mão de verdade. Parece real, não é? Mas veja isso. — Ele puxou a camada sintética do antebraço, expondo uma estrutura mecânica que imitava ossos e músculos, feita de aço e silicone. — Maneiro, né. É o último lançamento daquela corporação de merda.
— Papai! Olhe a boca!
Enquanto Cezar se distraía com a repreensão da filha, Miguel esboçava um olhar difícil de interpretar. Após se desculpar com a baixinha, voltou-se para Miguel e sorriu ao apresentar sua filha. — E essa aqui é minha princesinha, Larissa.
A menina se apresentou animada.
— Uau! Você ficou linda nessa fantasia! — exclamou, correndo em volta de Samira.
— Hehehe. Obrigada! Você também ficou muito fofa. Do que está fantasiada?
— Talvez seja de Madoka — arriscou Miguel.
A garotinha arregalou os olhos e abriu a boca em choque.
— Você conhece a Madoka?! Você já assistiu Madoka Magica?!
Miguel assentiu com a cabeça. A garotinha ficou ainda mais animada.
Cezar mais uma vez se surpreendeu com o garoto. Ele conhecia aquela animação, graças à sua prima, uma verdadeira fã de animes antigos. Por passar tanto tempo com ela enquanto ele trabalhava, sua filha também acabou pegando gosto pelo assunto.
Ele sabia o quão antigo Madoka Magica era — e o quão raro era encontrar alguém que também conhecesse. Esse garoto conhecia sobre seu carro, e agora, também sabia sobre um anime que fora popular no século passado. Miguel era tão estranho quanto interessante ao olhos de Cezar.
— Por que você não está fantasiado?
Miguel coçou a cabeça sem jeito. Foi Samira quem respondeu no lugar dele.
— Miguel ficou com vergonha de vestir uma fantasia.
— Ah, entendi. Igual ao papai.
Cezar deu de ombros.
— Homens...
Samira suspirou.
— Homens...
Larissa a imitou, copiando até o tom do suspiro.
Miguel e Cezar se entreolharam e riram da cena.
Inesperadamente o grandão se pegou em um bom-humor. O surgimento de Miguel o fez esquecer, ainda que por um momento, o problema que o afligia.
Um grupo inusitado foi formado: um gigante intimidador de quase dois metros, um rapaz muito mais jovem, uma garota vestida como uma raposa de nove caudas e uma menininha fantasiada de garota mágica.
Enquanto Miguel e Cezar se aprofundavam em conversas que pareciam insuportavelmente chatas para as garotas, elas engajaram em seus próprios assuntos.
Até que finalmente a fila para entrar no colégio avançou. Cezar era um homem experiente, sabia que Miguel estava em um encontro com sua namorada, por isso não quis atrapalhar o casal, mesmo que sua filha tenha feito um pouco de birra por ter gostado demais de Samira. Por fim, o grupo se desfez.
— Papai, você parece mais contente agora.
Larissa puxou sua manga e disse com um grande sorriso.
— É mesmo? Hahaha. Aquele pirralho era bem interessante. Eu gostei muito dele.
A pequena Larissa riu. Era raro ela ouvir palavras assim de seu pai. Geralmente vivia emburrado.
— Bem, o que tá esperando aí parada? Não vai brincar com seus amigos? Eles devem estar te esperando.
— Ah nem... — Larissa fez beicinho. — Queria brincar com Samira.
Cezar só pôde suspirar.
***
Ao longo da noite, enquanto acompanhava sua filha se divertindo com os amigos, Cezar foi recebendo ligações de seus subordinados. A cada chamada, seu humor piorava. Ainda assim, ele se esforçava para não deixar a filha perceber.
— Droga! — resmungou, quase engasgando com o salgado frito. — Porra, vocês são completamente inúteis!
Seu olho direito, normalmente castanho, brilhou em um tom azulado enquanto analisava a transmissão holográfica. Do outro lado da chamada, um homem na casa dos vinte e poucos anos, careca e com olheiras profundas, parecia tão exausto quanto nervoso.
— Senhor, estamos fazendo de tudo pra achar os filhos da puta, mas não há pista alguma dos desgraçados — disse o homem careca. — Já reviramos quase todo o distrito da luz vermelha de cabeça pra baixo.
— E como diabos ainda não encontraram nada?!
— Não... não sabemos, senhor. A porra das filmagens desapareceram, todas elas! E as testemunhas... puta que me pariu, estavam todas chapadas pra caralho e não se lembram de nada. Um ou outro abriu o bico, mas só pra falar merdas sem sentido.
— Caralho! Porra! Continuem procurando! E só me liguem se encontrarem algo, senão, eu arranco seus rins!
— Sim, senhor!
A chamada se encerrou, e o brilho azulado de seu olho desapareceu, voltando ao castanho comum. Esse era um dos produtos mais populares da Corporação Okitan: Óptica Okitan, modelo Odin versão 2.0. Um implante ocular de última geração que combinava a visão natural com aprimoramentos como aumento de alcance, proteção solar e, o mais revolucionário, compatibilidade total com os novos chips de conexão neural recentemente lançados no mercado.
Foi quando um suspiro escapou de sua boca que Cezar ouviu sua filha chamá-lo animada:
— Papai! Papai! Vem ver! É o Miguel!
Sem perceber, um sorriso leve se formou em seus lábios. Ele se levantou e seguiu até onde a filha estava. Ao se aproximar, notou uma pequena comoção. Gritos empolgados ecoavam na multidão. Crianças, adolescentes e até adultos vibravam com um espetáculo que acontecia na área de jogos de realidade aumentada.
E então, ele o viu.
Miguel estava ali, parado atrás de uma linha vermelha que demarcava o chão. Em suas mãos, uma pistola prata com detalhes negros, estilosa e imponente. Seu olhar era afiado, concentrado. Era como se todo o barulho ao redor tivesse desaparecido para ele. Com movimentos rápidos e precisos, o rapaz disparava, abatendo um a um os zumbis hiper-realistas projetados pelos hologramas.
Sangue e pedaços de cérebro se espalhavam pelo cenário digital, apenas para desaparecer segundos depois. Apesar do realismo visceral, nem mesmo as crianças demonstravam medo — na verdade, eram as mais empolgadas.
Hordas de zumbis avançavam. Humanos infectados de aparência grotesca, cães raivosos apodrecidos, mutantes deformados com duas cabeças e múltiplos braços. Alguns eram ainda mais assustadores, enormes, empunhando marretas gigantes ou serras elétricas. Mas nenhum deles chegava perto da linha vermelha.
O placar brilhava no alto, projetado por um dos drones do estande. O número já ultrapassava os seis dígitos — um recorde absurdo, três vezes maior que o anterior.
Miguel era simplesmente um monstro.
Com uma mira perfeita, ele acertava apenas na cabeça.
Mas o que realmente chamava atenção não era apenas a pontuação esmagadora. Era o fato de que aquela arma não era um simples brinquedo de realidade aumentada, era uma pistola real, modificada para o jogo.
Ou seja… a perícia de Miguel não se limitava a esse simulador.
Se aquilo fosse um combate de verdade, ele seria um verdadeiro terror.
— Puta merda... o pirralho é bom pra caralho!
— Papai! Olha a boca!
— Hahaha! Foi mal, foi mal.
Cezar olhava para Miguel com admiração e surpresa, como um veterano observando um novato promissor. Ele assentia com a cabeça, os braços cruzados sobre o peito. A pequena Larissa achou aquilo engraçado — nunca viu o pai tão animado com alguém que acabara de conhecer. Depois disso, a garotinha encontrou Samira no meio da multidão e correu até ela.
Após alguns minutos, o show finalmente chegou ao fim. Miguel perdeu, mas naquele ponto o jogo já havia se tornado praticamente impossível. Era, afinal de contas, um “Survival”, o clássico "sobreviva o máximo que puder". O rapaz devolveu a pistola para a funcionária do estande e foi até Samira, que naquele momento ria e conversava com Larissa.
— E aí, pirralho — Cezar chamou. — Que mira do caralho, hein... opa, calma, calma, minha querida. Cough... cough... Quer dizer... bela pontaria.
Ele riu, se corrigindo ao notar Larissa de olho nele.
— Você deu um show ali.
Miguel coçou a cabeça e respondeu de forma humilde:
— Era só um jogo. Os zumbis se moviam de um jeito fácil de entender. Mas foi divertido.
Cezar encolheu os ombros, rindo.
— Sei... sei.
Ele sabia que Miguel estava sendo modesto. Nos momentos finais do jogo, os zumbis eram rápidos, ágeis, com movimentos dinâmicos que um jogador casual jamais conseguiria acompanhar. Mas Miguel lidou com tudo como se fosse a coisa mais simples do mundo.
— Você, moleque, por acaso é um militar?
Miguel abriu a boca para responder, mas foi interrompido por Samira, que soltou uma risada.
— Hahaha! Você é a quinta pessoa que fala isso. — Ela sorriu, lançando um olhar divertido para Miguel. — Mas não, ele não é militar... bem longe disso.
O tom dela fez Cezar arquear uma sobrancelha. Algo na forma como Samira disse aquilo soava estranho.
— Oh... — Ele apertou os olhos, analisando Miguel com mais atenção. Seu olhar afiado sondou o rapaz, como se tentasse enxergar algo além da superfície. Então, com um leve sorriso, fez uma proposta:
— Me diz, garoto, não tá afim de trabalhar pra mim? Posso sentir que você não é bom com uma arma só num joguinho. Minha empresa está precisando de mais pessoal. E eu pago bem.
Miguel riu sem jeito. Coçou a bochecha, encolheu os ombros e respondeu timidamente:
— Foi mal, vou ter que passar. Tô no meio de algo agora.
Cezar suspirou, mas não parecia tão desapontado assim. Tirou um cartão do bolso e o entregou a Miguel.
— Quando estiver livre, me ligue. Podemos ganhar muita grana juntos.
Miguel pegou o cartão e guardou.
— Valeu.
Cezar então virou-se para Larissa.
— Bom, está tarde, querida. Se despeça dos nossos amigos.
A garotinha fez um bico, inflando as bochechas de leve. Claramente não queria ir embora. Mas também sabia que fazer birra não ia adiantar agora — tinha usado essa estratégia há pouco tempo para ganhar um brinquedo novo, e seu pai estava esperto.
Por isso, depois de um suspiro longo e dramático, se despediu do casal com um aceno relutante.
— Até a próxima, pirralho.
***
A pequena Larissa dormia tranquilamente no banco do passageiro.
Cezar dirigia de volta para casa com o espírito leve. Pela primeira vez em dias, sentia-se bem. Mas então, o som de uma notificação ecoou no carro.
Seus olhos franziram.
Número desconhecido.
Seu olho direito brilhou em azul quando a mensagem surgiu em sua visão.
◊ Ainda não encontrou quem procura, não é? ◊
Os dedos dele se apertaram no volante. A tensão percorreu seus músculos.
— Quem é você?
A pergunta foi imediatamente convertida em texto e enviada.
A resposta veio sem demora.
◊ Não importa. O que importa é que sei quem você está procurando. ◊
Cezar riu. Um riso seco, sem humor.
— É mesmo? E como sabe que estou atrás de alguém? Acha que não vou te rastrear, filho da puta?
◊ Eu não faria isso se fosse você. ◊
◊ Cezar Reis. Papai de uma linda menininha chamada Larissa, que está dormindo pacificamente ao seu lado neste exato momento. ◊
Seu corpo gelou.
Por instinto, ele lançou um olhar rápido para a filha. Larissa continuava ali, respirando suavemente, alheia a tudo.
◊ Você pode ser o líder da maior gangue da região noroeste do DF, mas para mim, não passa de um macaco de circo. Então, macaquinho, apenas aceite o presente que estou te dando. ◊
O silêncio preencheu o carro.
Um mal-estar tomou conta de Cezar.
◊ Não quer saber quem matou seu sobrinho? ◊
— Por que quer me contar isso?
◊ Isso importa? Apenas diga sim ou não. ◊
Ele hesitou.
— …Quem matou Hugo?
◊ Hehe. Muito bem, irei contar. Não. Melhor do que isso… irei te mostrar. Aproveite esse presente, macaquinho. ◊
Um arquivo de vídeo chegou.
Cezar hesitou. Poderia ser um vírus, algo projetado para corromper seu implante óptico e o chip neural. Mas… se essa pessoa conseguiu acesso ao seu contato, sabia onde ele estava e o que fazia naquele exato momento, não se daria a tanto trabalho apenas para hackear seus implantes.
Engolindo em seco, ele abriu o arquivo.
E então viu.
Uma filmagem que deveria ter sido apagada dias atrás.
A gravação completa da carnificina na boate Rosa Azul, no dia 27/10/2148.
Um riso escapou de sua garganta.
Seco. Sem vida.
Seus olhos estavam vidrados nas imagens. Seu corpo tremia.
Era inacreditável. Talvez ele apenas não quisesse acreditar.
— Hahaha… haha… hahaha…
Ele passou a mão no rosto, incrédulo.
— Esse filho da puta… estava tão perto de mim hoje…