Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 13: Só pode ser uma mentira

O beco onde o estacionamento da Vênus se escondia era estreito, encurralado entre os prédios altos e gastos da Zona Central. Um espaço mal iluminado, onde poderia transitar, com dificuldade, um carro por vez. As paredes, manchadas de fuligem e grafites velhos.

Pilhas de lixo se amontoavam perto das saídas de ar, sacolas rasgadas sendo reviradas por gatos magros e ratos gordos. Um cheiro morno de comida estragada e urina pairava no ar, junto ao zumbido constante de insetos, motores e câmeras girando em seus trilhos.

Foi ali que o grupo se reuniu, ao lado da fachada chamativa do karaokê. As luzes de néon da entrada principal nem alcançavam aquele canto, onde os hologramas desapareciam e o concreto tomava conta.

Assim que desceu da garupa da irmã, Samira quase tropeçou de tanta pressa em alcançar Miguel.

Ele havia acabado de sair do carro de Pietro, e ao ver a garota vindo em sua direção, acenou de leve, com um sorriso tranquilo no rosto. Notou o quanto ela estava inquieta, esperando a primeira oportunidade para puxar conversa desde que deixaram o Distrito 6.

— Sua mãe te ensinou a lutar daquele jeito?! — ela disparou, continuando de onde pararam antes de voltarem a Vênus.

— Porra, hein. Se você é forte assim, fico imaginando sua mãe. Que tipo de pessoa ela era? — acrescentou Luna, girando a chave da moto no dedo com tédio fingido, o capacete vermelho enfiado debaixo do braço.

Miguel deu um passo para o lado, o casaco sacudindo o ar úmido do beco. A luz fraca dos postes piscava atrás dele, lançando sombras alongadas sobre o chão.

— Bem, eu sou muito forte — disse ele, sem arrogância, apenas uma firmeza sólida. — Mas… quando comparado a ela? Mesmo se eu usasse tudo, minha mãe me venceria sem mover um centímetro. Com os braços cruzados.

E provavelmente vendada.

Ele sorriu levemente com esse pensamento.

Luna e Pietro trocaram olhares rápidos. Claramente céticos. Miguel deu de ombros, mas percebeu o olhar de Samira. Brilhava. Ela acreditava nele.

— Você disse que ela é a mulher mais linda e gentil do mundo… como alguém assim pode ser, também, tão forte? — perguntou Samira, sem perceber o quão próxima estava dele. Havia uma leveza nela, como se estivesse sendo puxada pela presença de Miguel sem notar.

Ele percebeu, é claro. Mas não se incomodou nem um pouco. Era uma garota adorável, afinal.

Luna franziu o cenho discretamente, observando a irmã. Por trás do olhar curioso, havia algo mais. Talvez vigilância. Talvez ciúmes. Talvez os dois.

Pietro continuava com a expressão neutra, mas Miguel notou os olhos dele se estreitando — o interesse estava lá.

— É simples — respondeu Miguel. — Minha mãe é a mulher mais linda, gentil e forte do mundo.

Disse aquilo como se fosse algo absoluto, incapaz de ser refutado.

— E onde ela está agora? — perguntou Pietro.

— Tivemos que nos separar há algum tempo — disse Miguel, misturando mentira e verdade em um suspiro breve. — Não sei onde ela está agora. Meu objetivo atual é encontrá-la.

O silêncio que se seguiu foi estranho. Denso.

Um mendigo dormia enrolado em cobertores encardidos ao lado de uma caçamba, e um gato atravessou correndo entre os pés de Samira, sumindo em uma fresta entre os prédios.

Conforme se aproximavam da entrada da Vênus, algo diferente prendeu a atenção de Miguel — menos emocional, mas ainda assim marcante: a fachada do karaokê. Figuras femininas desenhadas com sensualidade dançavam sob a luz dos hologramas. Beldades com os seios amostra, curvas ideais, cores quentes. Um apelo direto e escancarado.

Mas, ao observar com mais atenção, Miguel percebeu algo mais. Os traços. A composição. O estilo. A arte.

— Foi você quem pintou? — perguntou, voltando o rosto para Samira, verdadeiramente impressionado.

Ela estufou o peito, com orgulho visível, e assentiu com a cabeça. Um leve sorriso escapou, talvez surpresa por ele ter percebido. Talvez lisonjeada.

Luna soltou ar pelo nariz, uma espécie de bufada contida, e passou entre os dois sem dizer nada, empurrando as portas da Vênus. Miguel percebeu Samira encarar a irmã, fazendo uma careta de “não se mete”. Talvez Luna tenha dito algo com o olhar. Ele não podia afirmar, só especular.

— Miguel... você tem namorada? — Samira perguntou, desviando os olhos enquanto disfarçava o nervosismo.

Mas Miguel não teve tempo de responder.

Uma figura de cabelos azuis cruzou o a porta com passos rápidos e se atirou contra ele.

— Mia?

O garoto ficou confuso por um segundo. Aquela não era a forma como ela costumava agir. Mas ao olhar seu rosto, soube. Havia urgência nos olhos dela — e medo.

— Mia, o que aconteceu?

Ela estava pálida. O olhar, vidrado e distante. Miguel sondou seu corpo com os olhos, procurando ferimentos, sinais de conflito, qualquer coisa. E ao mesmo tempo, algo dentro dele começou a mudar. Rápido.

O calor sumiu. E em seu lugar, uma frieza extrema tomou conta.

Miguel girou a cabeça na direção de Ed, que se encontrava dentro da loja. O olhar do garoto escureceu, o corpo se tensionou. E em seus olhos — não havia dúvida — brilhou algo perigoso. Letal.

Pietro foi o primeiro a reagir. Deu um longo passo para trás, duas agulhas de dez centímetros escorregando silenciosamente por dentro da manga do blazer verde.

Luna franziu o cenho, parecendo nervosa e desconfortável, como se ela não conseguisse entender o que estava sentindo ou o motivo disso. E Samira, a mais próxima, estremeceu. A pele arrepiada. A respiração presa.

Até os gatos e ratos do beco fugiram, sumindo como se algo os tivesse assustado no âmago.

E Ed… Ed caiu de bunda no chão. Os olhos arregalados de puro terror. O rosto pálido como cera, tremendo como se o próprio Anjo da Morte o tivesse fitado de frente.

— Miguel, ele não fez nada comigo — disse Mia apressadamente. Ela segurou o rosto dele entre as mãos, puxando sua atenção de volta. — Tá tudo bem.

Miguel respirou fundo. Assentiu. A pressão no ar diminuiu.

O ambiente pareceu relaxar junto com ele. Luna o observava com confusão e um toque de temor. Samira tentava entender o que acabara de sentir. Pietro continuava em guarda, as agulhas ainda prontas.

— O que aconteceu? — Miguel perguntou, ignorando todos ao redor. Seus olhos estavam só em Mia. Uma mão afagou o rosto dela com cuidado. — O que te deixou assim?

— … Precisamos conversar a sós — disse Mia, baixando a voz. Ela olhou por um instante para Samira, que estava próxima demais. Seus olhos não foram de ciúmes. Foram de constatação. Como se tivesse entendido algo que Miguel ainda não havia percebido. Mas então voltou-se a ele. — É sobre sua mãe.

Miguel congelou por dentro. Um mal-estar subiu pelo estômago, gelado. Mas manteve a postura firme.

— Luna, Samira, Pietro… me desculpem — disse, voltando-se brevemente ao grupo. — Mais tarde nos vemos na reunião.

Luna assentiu em silêncio. Pietro suspirou e não comentou nada. Samira, por outro lado, pareceu visivelmente chateada. Seus olhos estavam colados em Mia.

♦♦♦

— O que diabos foi aquilo?! — Luna perguntou, e sem esperar por resposta virou a garrafa de cerveja. Depois de um longo gole, bateu o vidro contra a bancada da cabine.

Aquela sensação ainda parecia viva em sua pele. Seus instintos gritavam para que fugisse de Miguel — e isso era extremamente bizarro. Era uma sensação nova, quase como se um sentido oculto tivesse despertado dentro dela, algo primal e inexplicável.

— Vocês também sentiram, não foi? — disse de novo, sozinha, antes de girar a garrafa e tomar o restante da cerveja.

No pequeno cômodo, Luna se sentava ao lado de Samira, enquanto Pietro ocupava o outro lado do sofá de couro. O cheiro adocicado de tutti-frutti — marca registrada da Vênus — permeava o ar. Na mesa de centro, várias garrafas de cerveja, salgadinhos e doces variados.

Pietro assentiu. Pegou um pacotinho colorido da mesa, abriu e começou a mastigar um bolinho de morango.

— Sim. Eu também senti. Era como se algo dentro de mim dissesse: “esse cara vai matar quem estiver na frente”. Talvez... seja alguma habilidade do Primordium...?

— Primordium?! — Samira quase saltou do sofá.

— Pois é — disse Luna, dando de ombros, tentando parecer indiferente, embora o assunto sempre a deixasse um pouco inquieta. — Miguel carrega, nada mais nada menos, do que a coisa mais valiosa do mundo.

Samira franziu a testa.

— Por isso ele tinha aqueles olhos?

— Olhos? — Pietro ergueu uma sobrancelha.

— Você fala das veias carmesins na região ocular? — perguntou Luna. — Aquilo é comum entre os usuários do Primordium quando ativam as capacidades físicas sobre-humanas... como era mesmo o nome?

— Se não me engano, era Kaihōtai — respondeu Pietro.

— Não, não era isso. — Samira balançou a cabeça, pegou o vaper sobre a mesa e tragou. Enquanto soprava a fumaça violeta, parecia buscar as palavras certas. — É que... eu não sei. Quando olhei nos olhos dele, foi como vislumbrar toda a galáxia por uma lente... como se todas as estrelas do universo estivessem sendo engolidas por um buraco negro infinito... foi bizarro, mas... tão... lindo.

O “lindo” escapou num tom suave, quase encantado, como se Samira revivesse uma memória preciosa. Imediatamente, um alerta disparou na cabeça de Luna.

— Ei! Que sorrisinho é esse, hein?! — Ela estreitou os olhos e deu um peteleco na testa da irmã. — E por falar nisso, por que vocês demoraram tanto pra descer? O que diabos estavam fazendo lá em cima?

Samira massageou a têmpora, bufou e se afastou um pouco. Tragou o vaper de novo, soltando a fumaça devagar, e pegou uma barra de chocolate na mesa.

— Não aconteceu nada. Quer dizer... — Um sorriso escapou, com as bochechas corando. — Só rolou uma coisinha...

Luna quase se engasgou com os salgadinhos ao ver a cara da irmã.

Pietro franziu o cenho, demonstrando uma preocupação silenciosa.

— Nem pense nisso! — disse Luna.

— Humpf. Por que não? — Samira rebateu, ainda olhando para o chocolate.

— ... A gente nem conhece esse cara direito. Ele tem aquela carinha linda, mas você viu. Miguel pode ser assustador. Ele é nosso aliado agora, mas por uma mera coincidência conveniente, não sabemos quais são suas verdadeiras intenções.

O alerta de Luna era válido. Nenhum deles conhecia Miguel o suficiente. O vínculo entre eles ainda era recente — formado no dia anterior. E, no fundo, ele só havia entrado para a gangue por causa do potencial absurdo que demonstrou, não por afinidade ou camaradagem imediata.

Ela mesma estava interessada em Miguel, mas não do mesmo jeito que Samira. Era curiosidade — ele era enigmático, carismático, magnético. E Mia também despertava nela algo parecido. Um fascínio estranho, quase desconfortável.

Samira suspirou, mas não rebateu. Se aproximou de novo da irmã e, mesmo fazendo bico, assentiu.

— A gente só conversou um pouco. Nada demais. Rolou uma coisinha... calma, não me olha com essa cara! Não nesse sentido, foi outra coisa, eu te explico depois. — Ela respirou fundo, abriu o chocolate, mastigou um pedaço e continuou: — Ele é diferente, mana... Miguel... E também... ele me escutou...

Luna sentiu um leve aperto no peito. Desviou o olhar, roubou um pedaço do chocolate da irmã e soltou um suspiro cansado.

— Tudo bem, tudo bem — disse, beliscando a bochecha de Samira com carinho. — Vem cá, eu também te escuto, sua peste.

Samira sorriu e deitou a cabeça no colo da irmã.

Luna passou os dedos pelos cabelos dela com carinho. Quando levantou os olhos para chamar Pietro e lembrar da reunião da gangue, soltou um sorriso torto ao perceber que ele já não estava mais ali.

— Mas ele é lindo mesmo... — murmurou Samira.

Luna só conseguiu suspirar.

— Aliás, quem era aquela menina de cabelo azul? Sinto que já vi ela em algum lugar. E... como uma garota pode ser tão linda daquele jeito?

— Era a Mia. Namorada do Miguel — disse Luna. — Ela é uma androide. Pelo que entendi, um protótipo da linha Nina.

— Sério?! — Samira pareceu genuinamente surpresa. — Mana, tem certeza que ela não é humana? Aquele olhar... não parecia simulação. É como se ela sentisse de verdade.

— Pois é — Luna respondeu, mais pensativa do que gostaria.

— Então a namorada dele é uma androide... — Samira deu uma risadinha, provocadora. — Miguel não tá nem aí pro que os outros pensam, hein? Hehehe... Será que a Mia aceita dividir ele comigo?

Luna revirou os olhos e beliscou a barriga da irmã.

♦♦♦

Mia batia o calcanhar no chão num ritmo frenético, olhando de longe para Miguel, que parecia congelado no tempo.

Ela não conseguia ver seu rosto, mas sentia que, enquanto tentava digerir o que ela havia mostrado meia hora antes, ele permanecia ali: olhos fechados, rosto voltado para o céu.

No horizonte avermelhado, nuvens cinzentas manchavam o fim do dia, dando espaço aos tons estonteantes de neon que emergiam da cidade.

Mia queria dizer algo. Queria fazer alguma coisa. Mas não sabia como. Que palavras usar? Que gestos?

Mesmo Miguel, alguém que vivia na essência do estoicismo, podia não lidar bem com uma revelação daquelas.

Afinal, sua mãe era, segundo as informações na rede, a pessoa mais procurada do mundo. Taxada de inimiga da humanidade. A responsável por causar mais de cinco bilhões de mortes ao iniciar a guerra nuclear, cem anos atrás.

— Que absurdo.

Finalmente, ela o ouviu dizer algo.

Mia engoliu em seco. A voz de Miguel saiu uma oitava mais fria e controlada. Quase sem emoção.

— Minha mãe causou a guerra nuclear? Isso é ridículo.

Ele se virou para ela.

Para sua surpresa, o semblante dele era o mesmo de sempre. Tranquilo. Havia até um leve sorriso em seus lábios.

— Pelo que pude ver, a principal organização que divulga essas informações é a Farmacêutica Mendes. A mesma que desde 2035 caçava minha mãe depois que ela fugiu dos experimentos deles, não é?

Mia fechou os olhos por alguns segundos, sua consciência mergulhando no ciberespaço. Revisou mentalmente os dados que havia compartilhado com ele. Então assentiu.

— Isso mesmo.

No fundo, estava aliviada com o autocontrole dele. E impressionada. Seu coração se aqueceu. A admiração que sentia por ele só aumentava.

— A maioria dos dados relacionados à minha mãe — continuou Miguel — está direta ou indiretamente ligada a essa corporação. Talvez eles tenham forjado tudo isso. Criado uma narrativa conveniente.

Mesmo se fosse o caso, aquilo ainda era preocupante.

Sara estava desaparecida há cem anos — o que tornava mais fácil usá-la como bode expiatório. Ninguém em sã consciência na atualidade sairia em sua defesa.

E os testemunhos dos poucos aliados capturados ao longo do tempo confirmavam sua culpa. Fosse por manipulação ou não, aquilo só piorava a imagem dela.

A verdade é que, com o poder da Farmacêutica Mendes, fabricar mentiras convincentes era fácil demais.

Mas… e se fosse verdade?

Mia balançou a cabeça. Afastou o pensamento imediatamente.

— De qualquer forma — disse Miguel —, nosso objetivo continua o mesmo: encontrar minha mãe. Mas minha mãe não quer ser encontrada, afinal, se nem mesmo uma das maiores corporações a encontrou depois de cem anos, não vai ser com meia dúzia de pessoas que faremos isso, então, precisaremos ir atrás do velhote primeiro.

Mia concordou com a cabeça.

Ela contou a Miguel o que Nina havia dito: Dr. Tiago também estava desaparecido há cem anos.

Mas, diferente de Sara, ele não era considerado um criminoso.

Apenas cinco pessoas sabiam que ele trabalhava com ela — e entre essas cinco estavam Mia e Miguel.

Por isso, seu desaparecimento não poderia ser associado ao sumiço de Sara. Era só mais um mistério num mundo cheio de ruínas.

Talvez. Não, era quase certeza que ele tenha deixado alguma pista de onde esteja para o casal... encontrar Sara seria apenas questão de tempo depois que o achassem.

— Então não se preocupe, Mia.

Miguel a puxou para perto.

Mia corou com o gesto repentino, mas não tentou se afastar.

Ela não sabia se ele havia feito aquilo de propósito ou não — mas, de qualquer forma, não queria sair dali.

— Mesmo que o mundo inteiro acredite que minha mãe é a inimiga da humanidade — ele disse —, nós sabemos quem ela é. Minha mãe nunca faria uma coisa dessas.

— Hm! — Mia acenou várias vezes com a cabeça.

Miguel sorriu e afagou seus cabelos com carinho.

— Agora, vamos ver se se juntar a essa gangue vai realmente valer a pena.

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