Possuídos Brasileira

Autor(a): Guilherme Alves


Volume 1

Capítulo 9: Luxemburgo

“Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.”
Mateus 6:34

 

Os dois, Maria e Andrey, caminhavam na Praça dos Caçadores, um lugar muito célebre da cidade. O mármore reluzia por todos os lados, cobrindo até os pequenos detalhes em ouro que apareciam não ter voz, talvez por conta da construção ter sido erguida recentemente, fazia pouco mais de sete anos atualmente. Logo abaixo dos seus pés, um longo caminho de azulejos escondia o solo, era como se fosse um encontro quase abstrato de preto e branco.

— Eu gosto de vir aqui sozinho às vezes, embora eu preferisse como estava antes da reforma. — O caçador espiou em frente, para a coluna que levantava a estátua, era mais imponente que qualquer outra ali ostentada.

Maria percebeu de imediato onde se retinha a atenção do seu companheiro, e retorquiu:

— Não me digas que, depois de tudo, és daqueles que ainda acha certo o que ele fez.

O homem confecionado de pedra à frente deles era Ethan Lewis, o fundador da Organização Mundial dos Demônios, na mão direita empunhava uma tocha, que da ponta expelia um fogo eterno, pelo menos era o que corria pela boca de quem lhe punha os olhos. Na outra mão, uma espada, tão longa que perfurava o chão.

— Não acho que ele esteja de todo errado, os demónios nunca fizeram nada por nós. — Percorreu a visão pela figura de mármore. — Embora ache que o extreminismo puro é um pouco exagerado.

Um amplo silêncio dividiu os dois, era maçante e fazia o coração receoso da mulher disparar. Sem outra alternativa, forjou com as suas palavras uma espada:

— Extreminismo… — A sua respiração, por um leve ápice, ausentou-se com um ar risonho. — Foi por isso que começou a Grande Tensão. Na escola disseram-me que as vítimas mal passavam dos dois dígitos, mas quando penso em todas as pessoas que foram perseguidas por proteger os demónios… — Mirou o caçador com curtas lágrimas a gotejar pela face. — Os meus avós estavam no meio dessas pessoas. Gostaria de os ter conhecido.

— Então, talvez, este não seja o melhor lugar para tu estares. — Andrey por um segundo cessou a sua conclusão e passou suavemente os dedos pela face da jovem, dissolvendo as lágrimas. — Muitos aqui têm problemas com demónios. Olha para a tua frente, para lá da estátua, aquele prédio… — O dedo dele confrontou o vento num instante e bem lá no alto contornou o prédio que os encarava de frente, mórbido, com rachaduras a saltar sobre a vista. — É onde nós acabamos todos, depois de anos de guerra, cada um pelo seu motivo: um braço a menos, uma perna cortada ou até mesmo a falta de sanidade; sacrifícios tolos por sonhos estúpidos e vinganças desmedidas… Eu também tenho o meu objetivo, um sonho que me vai levar diretamente à cova, disso eu não duvido, o máximo que eu posso fazer é tentar aguentar o maior tempo que conseguir.

A mulher, de longe, pressentia esse destino, um destino em forma de uivos de dor, todos vindos do mesmo lugar…

— Quando não está aqui ninguém, parece que estamos debaixo do inferno… Eu sinto pena deles, escondidos para morrer atrás do sonho do Ethan, irónico não achas?

Aquelas palavras correram para a mente de Maria como poucas vezes ela sentira. Com a vinda delas, reinou mais uma vez o silêncio, porém era um reinado mais pensativo, seguido do sopro agitado do vento. Os seus cabelos dançaram pelo ar, rodopio atrás de rodopio, seguidos pelo bailado das roupas, peças de tecido atrevidas que diante a ventania expunham as peles ao frio.

Presa ainda no longo caminho da reflexão, Maria sentiu algo lhe tocar, uma agulha de incerteza, de cara para aquela verdade que lhe tinha sido escondida, receava avançar pela primeira vez, o seu sonho diante daquelas palavras parecia tão… inútil, quantos não pensaram assim, tal como ela, em melhorar o mundo, e terminaram semelhantes àqueles pobres homens, abandonados para que o tempo os levasse. Por longos segundos, a luta de uma vida estava exposta nas paredes degradadas do enorme edifício, seria ali que terminaria a sua jornada? Era provável que sim, ou então ficaria sem vida muito antes, em algum campo de batalha como foi imposto a muitos outros, homens que com menos sorte nem puderam ver a miséria que os aguardava.

— Mas por que lutamos? Não seria melhor simplesmente…

Andrey impediu-a de terminar, com um único golpe cortou-lhe as palavras a meio com a sua língua e as substituiu pelas próprias:

— Quem sabe? — Mirou mais uma vez no homem de pedra, constatando a presença de detalhes vermelhos a percorrer toda a espada. — Desde sempre nós lutamos por algo e quantas mais pessoas têm objetivos grandiosos, mais nós somos afetados por eles, assim nascem as guerras, assim nasceu a morte…

— Ou, simplesmente gostem de lutar uns contra os outros, talvez, tanto os humanos como os demónios, nem precisem de um motivo, só se querem matar uns aos outros, assim como animais selvagens. — Suspirou por um segundo e, repensando o alvo dos seus olhos, espiou as veias que lhe saltavam do braço recheadas de sangue. — Nós mudamos tanto o nosso corpo e mente para aumentar as nossas chances contra estas criaturas que já nem sabemos o que somos hoje em dia, uma mistura das duas raças? E se em vez da cura, formos tão doentes como a doença? 

As perguntas, vindas do abismo mais profundo da jovem, mostraram-se como jatos, tão rápidos e poderosos, que acertar o alvo, mesmo com aquele vento, foi um simples trabalho. Andrey bloqueou com as palavras a fluírem na cabeça. O antigo soldado de corpo robusto, procurando o que falar, espiava uma criança de roupa simples, não tinha nada menos que o necessário e brincava com uma bola, tão pequena, tão frágil. Sorria a cada arremesso, e corria logo depois para junto dos pais, era para eles que ela dedicava as suas jogadas.

— Nesse caso… Existe sempre quem, de tão puro, cure até a mais perigosa doença. — Os cantos dos seus lábios moldaram-se num sorriso.

A sua expressão animada contagiou a jovem desde o primeiro segundo, que sem nem perceber soltava um risinho. Uma conexão entre os dois parecia ser inevitável, Maria acreditava que aquela ligação podia fluir até uma boa relação, mesmo que tivesse escutado a vida toda que amizades no seu emprego terminassem sempre no fim mais trágico possível.

— Mas enfim, tu não vieste aqui hoje para ter um debate filosófico de caçadores, deste tipo ainda vais ter muitos e com as piores ideologias, acredita em mim. Sendo assim, que tal um crepe? 

A pergunta escapou com o ar e atravessou as defesas de Maria, era inusitada claro, quando o viu abrir a boca pensou que talvez fosse mais uma das suas linhas complicadas, mas agora parecia mais um encontro. E se fosse? Assim que lhe subiu essa questão, o calor cor de tomate preencheu as brancas bochechas da mulher.

— Si… sim… — respondeu tímida, escondendo os olhos pelas estátuas.

Andrey libertou uma gargalhada e, sem rodeios, iniciou a sua caminhada para junto de uma pequena lojinha de doces, era famosa naquela região, muito por conta da sua decoração moderna com madeira por todos os lados, acompanhada de um recheio rosa que saltava nas paredes. Vendo que Andrey ficava cada vez mais desfocado no horizonte, Maria acelerou o passo com medo de o perder.

Naquele momento, a pequena lojinha, estava quase vazia, mas também nem o horário, nem o dia eram propensos a comer um crepe, mas quem se importaria!? Assim que entrou, o atirador, encostou-se ao balcão, as garçonetes olhavam-o pelo canto do olho, sem perderem o foco no trabalho, de certa forma ele parecia conhecer cada canto daquela loja com a palma da sua mão, provavelmente era um cliente habitual.

— Bom dia, eu e a minha colega queremos dois crepes para levar. — Com a chegada de Maria, colocou o seu braço à volta do pescoço fino da jovem. Sem entender nada, ela limitou-se a encarar o chão, enquanto queimava de vergonha por dentro.

Uma das cinco mulheres, que lá trabalhavam, veio a correr até ao caixa para anotar o pedido, respondendo com poucas palavras:

— Bom dia, Andrey, não é costume estares acompanhado.

— É apenas trabalho.

— São cinco euros então.

— Isto está cada vez mais caro.

— Sabes como é, para ti o preço aumenta sempre — respondeu outra delas, uma que varria o chão, aproveitando a ausência de clientes. A mulher tinha o cabelo apanhado e caminhava com um sorriso matreiro no rosto. Era bonita, assim como as outras, mas de alguma forma cativava bem mais que as companheiras. Talvez fosse o seu nariz arrebitado, ou o seu pontilhado de sardas que cobria a cara, quem sabe? — Mas claro, não tinhas esse problema se deixasses de cá aparecer, meu bem.

A que estava na cozinha, fez sobressair a sua voz, gritando o mais alto possível quais seriam os sabores. Andrey encarou Maria e Maria o copiou. O caçador tinha como sabor favorito o chocolate, quanto mais melhor. Já a jovem, depois de uma encarada com ar de desaprovação ao amigo, concluiu o seu pedido, desejava um recheio de morango.

A comida não demorou muito a vir, o interior de ambos os crepes escorria pelos lados de tão preenchido. A primeira mordida foi do homem, estava esfomeado, Maria seguiu com uma pequenina dentada no doce.

— Incrível, como sempre. Acho que é aqui que nos despedimos então, meninas. Eu e aqui a minha querida amiga, temos mais sítios para visitar hoje. Mas não se preocupem, eu volto em breve.

— Podias não voltar, isso sim…

Empurrando a jovem para fora, ele recusou-se a ouvir qualquer palavra a mais que lhe fosse dirigida. Já do outro lado da porta, com mais calma, voltou a morder mais um pouco do crepe, mas acabou incomodado por uma questão de Maria:

— Aquela não é bem a forma que eu achava que tratavam as pessoas por aqui, aconteceu alguma coisa entre vocês?

— Bem, sim… — Deu uma pequena pausa, tempo suficiente para engolir o pedaço e avaliar um pouco o que seria melhor dizer. — Aquela mulher que estava a varrer o chão… como eu posso dizer… era uma antiga namorada minha. Claro que, na altura, eu ia ali para passar tempo com ela. Mas… — Deu outra mordida no meio das palavras, perturbando todo o seu discurso.

— Mas o quê? Fala de uma vez, sem comer no meio, por favor.

— Calma, isto é muito bom… Enfim, eu apaixonei-me pelos crepes e não consigo comer em mais lado nenhum sem ser ali. Mas ela é uma boa pessoa, acho que só não foi muito com a tua cara. 

Mais uma gargalhada saiu da mulher ao ouvir aquilo, era tão tolo, mas ao mesmo tempo transmitia um sentimento tão verdadeiro. Andrey também achou graça nas suas palavras e seguiu junto a ela a rir, mesmo que, pela primeira vez, nas suas bochechas fosse visível um tom avermelhado.

— Senhor guia, então e o que vamos fazer agora?

Depois de dar a última mordida no crepe, pensou no que se seguiria, que caminho iriam tomar. Requisitando alguns segundos para isso, respondeu com outra pergunta: 

— Já foste até à sede da OMD?

— Não, que me lembre… — Sentia a resposta na ponta da língua, mas algo a impedia de sair, tentou lembrar-se e, para isso, colocou um dedo sobre os lábios. — Fui só até à sede dos caçadores… eu acho.

— Então acho que temos a nossa próxima paragem definida. 

Apressado, agarrou-lhe na mão e correu pela praça. Maria assustou-se, ainda comia o seu crepe e quase o deixou cair no chão com a força que a tinha tomado. Ambos sem nem perceberem, devoraram longos metros por entre os prédios, eram altos e cheios de vidros, muitos pertenciam a grandes corporações: Quatro Cavaleiros, Quantic Tech, Mei Liu Corp., Demoniac Weapons, Demons Company, Hot Succubus… Andrey, de alguma forma, sabia-as todas de cor, tornando as ruas autênticos museus de Néon.

Maria, buscando de volta o espírito de reflexão, sentiu a mesma sensação de quando saiu de casa dominar-lhe a mente, um sentimento de vazio, tudo parecia tão alucinante, alto, magnífico, mas sem vida. Todo o lugar parecia uma mentira. Não havia qualquer história na cidade, de certa forma afirmar isso era verdade, tudo fora destruído, qualquer resquício dos tempos antigos tinha ficado para sempre acorrentado ao passado.

Contudo, quando ela olhava Andrey, sentia tudo isso desaparecer, ele não se importava se havia vida, ou não, queria apenas se divertir. Lembrava uma criança, um jovem que, tentando conquistar um pouco de atenção, mostrava o quarto às visitas da mesma idade. Junto disso, tinha dentes perfeitos, um tom mais puro que o branco e quando sorria era um deleite, uma prisão que de forma ágil tinha engolido Maria.

— Bem, chegamos.

Estava a pensar à tanto tempo que só se apercebeu que estava parada quando as palavras cavaram o seu cérebro e tomaram-no de assalto. Olhou, logo para a frente, e viu um enorme templo, não… não era uma templo, mas tinha características disso. Na entrada quatro pilares grossos, decorados na parte superior com pequenas cabeças de demónios, sobre elas um frontão triangular que glorificava os primeiros representantes da divisão europeia, cada um vestido de forma a glorificar um deus dos velhos panteões.

— Achei curioso…

Por alguns segundos, olhou com mais pormenor, reparou na bandeira hasteada no topo da construção, todavia isso já era padrão da OMD. Porém, algo mais a cativou, em baixo das figuras estava o lema de todos os caçadores.

— Salvar até que a morte me impeça…

— Sempre o achei lindo, mesmo que muitos nem se lembrem dele hoje em dia.

Andrey limitou-se a concordar com a cabeça, estava ofegante e decidiu sentar-se no primeiro degrau da escadaria que levava ao edifício. Diante dele, ficava agora o jardim, belo no seu verde, com árvores vermelhas e rosas por todo o lado, no centro uma pequena fonte de água.

— Dizem que foram as últimas palavras do Ethan no campo de batalha, algures na Alemanha, por volta de 1917. O mais interessante é que foi contra o Demónio do Inferno, o representante direto da casa da besta. Foi uma batalha lendária, eu diria, embora o seu desfecho seja trágico.

— O Ethan sempre gostou de guerra, mas, no fim, foram elas que o condenaram. — Por um instante, Andrey notou algo de diferente e olhou para Maria, sentia uma aura nova a pairar sobre aqueles belos olhos parisienses. — Só agora é que eu reparei, para uma pessoa tão tímida, consegui fazer-te soltar um pouco. Acho que é uma vitória maior do que todas as que o Ethan teve na vida. — Terminou com o ar a levar-lhe a gargalhada.

Ouvindo aquilo, levou as mãos à cara e corou as bochechas. Naquelas horas em que esteve ao lado dele nem reparou, falava como se fossem velhos amigos, amigos que não se viam há um bom tempo.



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