Possuídos Brasileira

Autor(a): Guilherme Alves


Volume 1

Capítulo 8: Novos Rumos

“Ele muda os tempos e as horas; ele remove os reis e estabelece os reis; ele dá sabedoria aos sábios e ciência aos inteligentes.”
Daniel 2:21



Maria olhava para cima, diretamente para um mar de escuridão que reinava no quarto. Contudo, talvez por conta das suas habilidades que ultrapassavam a capacidade humana, conseguia ver o teto perfeitamente. Era sombrio, com um toque monótono e como costumava dizer nos seus pensamentos "o melhor lugar para refletir", e ela assim o usava, passando horas presa à tinta cinza mal pintada. 

"Cada pincelada deve ter uma história curiosa…"

Momentos depois, como se uma flecha lhe acertasse o peito, retornou ao que a tinha feito permanecer acordada todas aquelas horas. 

"Já se passaram quase quatro dias, mas mesmo assim tudo ainda é tão diferente" pensou a mulher enquanto encontrava a melhor posição para descansar. 

Os pássaros começaram a cantar, aquilo era um sinal para ela, mostrava-lhe que o dia começava a florescer, mas a sua mente inquieta não parecia ceder ao que ainda restava do luar. Porém, os seus olhos trancaram-se com o peso do sono, não que adiantasse muito, seriam apenas algumas poucas horas de sono. 

Aranhas, anjos, Luxemburgo… Curtas visões percorreram os seus sonhos, pareciam sempre longínquas, todavia deixavam na boca uma sensação de futuro, ou até mesmo incerteza. Mesmo que não passassem de manchas, ela ouvia gritos e vozes, também distantes. O seu peito apertava cada vez mais e o ar… deixou… de… entrar… 

Quando deu por si novamente, tinha voltado ao quarto, estava sobre aquele teto mais uma vez. Pensou em levantar-se, mas a preguiça falava mais alto e obrigava-a a descontrair o seu corpo na cama por mais uns minutos, ou até horas. 

Lembrou-se então dos dias anteriores, era sempre Andrey a acordá-la, embora vivesse não só com ele, mas também com Camilla, esta estava sempre com um olhar traiçoeiro, como se fosse uma adversária, contudo no quê? Ela acreditava ser na sua posição como única mulher do grupo. 

Foi no meio de toda essa sopa de pensamentos que ouviu um leve abrir de porta, acompanhado dos primeiros raios de sol a entrar no quarto assim que ouviu o barulho das persianas a abrirem.

— Está na hora de acordar, mesmo que não haja trabalho, o Michael me encarregou de te mostrar a cidade hoje. Vai ser um longo dia.

Ela nem teve tempo para ouvir o que dizia o seu companheiro, a luz cegou-a completamente. Atrapalhada levou a mão ao rosto para impedir que a tortura continuasse. 

— Quem não gostaria de conhecer a cidade de Luxemburgo, não é? — completou ele tentando atiçar alguma reação na garota — O dia está perfeito para isso e tudo.

Desta vez ela escutou o que o homem disse, quer dizer a atenção dela focou-se apenas em duas palavras: "conhecer… Luxemburgo". Assim que pensou melhor os seus olhos arregalaram-se, ela tinha passado alguns anos em Roma depois de entrar na escola, muito por conta do procedimento genético, com isso há muito tempo que não via outra metrópole em pormenor, mesmo que não tivesse perdido o hábito de namorar a sua amada cidade de Paris à distância. 

— Andrey, o que há para comer hoje? — questionou ela rolando para a parede onde o sol não a apanhava. 

 O jovem, com os seus vinte e quatro anos, observou a atitude atrapalhada dela e soltou algumas gargalhadas. 

— Não te rias, o sol magoa-me!!!! 

Em apenas alguns dias a timidez da moça tinha sumido até certa parte, já falava normalmente com a maioria deles, pelo menos nos momentos que não reparava que as palavras lhe estavam a escapar da boca. 

— Eu não estava a rir, foi apenas um soluço. Agora respondendo à tua pergunta, a Jamilla antes de sair deixou omelete e pão na mesa para nós, e acho que ainda há suco de laranja na geladeira. 

Ao ouvir que o café da manhã era o que ela mais gostava, voltou-se para Andrey e salivando pela boca bloqueou na mesma palavra: 

— Omelete…. OMELETE….

Andrey sorriu, retirando-se logo em seguida. Maria estranhou a atitude de início, mas assim que ouviu o barulho do microondas percebeu tudo. Estava animada, fazia um bom tempo que não comia aquela iguaria mais que perfeita, a junção de tudo o que havia de bom naquele muito, ovos.

Com a imagem do amarelo torrado das gemas misturadas, levantou-se da cama e de porta fechada escolheu trocar de roupa. Maria usava naquele momento um pijama roxo, escolhido para combinar com os seus olhos verde esmeralda, e nos pés umas pantufas felpudas com caras de coelhos. 

O armário não tinha grande coisa, meia dúzia de peças e nada mais, muitas ainda estavam a caminho, aquelas tinham sido as únicas a caberem na sua mala de viagem. Todas muito diferentes, contudo a sua favorita foi a escolhida da vez. Uma blusa branca com pequenos coelhos, uns pretos e outros vermelhos, estampados, mais abaixo umas calças jeans pouco chamativas. 

Terminada de se vestir, aproveitou o tempo sozinha frente ao espelho para colocar um pouco de maquiagem: batom vermelho seduzente nos lábios, rímel nas pestanas e pouco mais que isso. 

— Achei bom, mas se calhar com o cabelo apanhado fica melhor — falava ela em monólogo movimentando o elástico na mão. 

Assim ela fez, e bem, ficou deslumbrante, parecia uma verdadeira parisiense de estilo inovador e ao mesmo tempo tradicional. Andrey, como uma sombra, olhava tudo encostado na parede, tinha entrado há um bom tempo, mas como não queria incomodar a jovem modelo limitou-se a observar as poses atraentes dela.

— Já vi que tens o sangue dos desfiles a correr-te nas veias. — Deu um curta gargalhada. — Mas, acho melhor irmos comer, temos muitas coisas para fazer hoje. 

Despreparada a novata saltou de susto, quase caiu no chão de desespero por não perceber que estava a ser vista por uma plateia tão silenciosa. As suas bochechas coraram em seguida e qualquer palavra que pudesse dizer foi limitada a um escasso grunhido tímido.

Passado o susto seguiu o companheiro, o corredor até à cozinha era longo, e de noite muito tenebroso. Maria olhava em seu redor, ainda não achava aquele um teto familiar, em cima do móvel ao seu lado haviam cinzas, dentro de um pote, por respeito ainda não tinha conseguido coragem para perguntar quem era, contudo a sua mente já formulava uma resposta. Talvez fosse um caçador antigo que morreu em serviço? Ou algum familiar de um dos dois colegas de casa?

— Olha que a comida vai esfriar, melhor correres. 

A cadeira onde a jovem se sentava estava levemente puxada para trás, ela deu alguns passos e aproveitou a situação para saltar para o assento sem usar as mãos. 

— Quando olhas para a comida ficas toda animada.

— Eu… tenho fome… ok…

Sem nem perguntar, caiu de boca na comida, devorando tudo o que vinha no garfo. Andrey, olhando para ela, deliciava-se com as atitudes chamativas da garota. Terminada a omelete com apenas quatro garfadas, seguiu o suco, bebido de uma só vez. 

Cheia de tanto comer ela encarou o rapaz, soltava pelos olhos uma visão da morte: 

— O que vamos ver exatamente? — perguntou ainda com a boca cheia de comida.

— Primeiro quero educação na minha casa, senhora envergonhada. Segundo, eu ainda não vi o plano, essa seria uma boa hora para olhar. — Na maior cara de pau, o caçador, simplesmente abriu a folha já amassada do tempo que esteve no bolso dele e começou a soltar os nomes que ali apareciam. 

— Certo… Mas, não é como se eu conhecesse os nomes…

Andrey pareceu apenas evitar e continuou com os olhos a percorrer as dezenas de palavras da lista. Notando o fim da conversa, ela levantou-se da cadeira, juntando toda a loiça numa pilha, e movimentou-se para junto do balcão da cozinha. Não havia espaço em lado nenhum, camadas e mais camadas de pratos, canetas e talheres sujos em cada centímetro de mármore. 

— Deixa isso num sítio qualquer. Em princípio, esta noite vamos decidir quem lava os pratos, então não te preocupes, a não ser que sejas tu, mas isso é outro problema — disse ele, parecendo meio morto no seu tom, contudo não desviou qualquer foco das letras azuis. 

Naqueles curtos quatro dias, Maria havia notado que a organização de Jamilla e Andrey não fazia muito sentido, deixavam tudo para lavar no último dia da semana. Qualquer dia toda a cozinha iria parecer uma competição para mais uns pratos sujos, ou empilhar mais um tanto de talheres recheados com pedaços de comida. De alguma maneira lembrava-a de Paris, a agitação, a confusão e o lixo que ocupava cada pequeno buraco do seu curto espaço. 

Enquanto Maria se esforçava no Tetris com roupagem gastronómica, o caçador moreno, ergueu-se, tinha terminado a sua busca pelo plano e preparado, foi em direção à porta da casa. A jovem confusa não teve muita escolha a não ser segui-lo.

— Vamos sair agora, como é a tua primeira vez em Luxemburgo vou colocar algumas regras. Primeiro, nunca te afastes de mim. — Fez uma pausa e olhou para todos os lados como se fosse algo secreto. — Segundo, não fales com estranhos, não quero problemas com pessoas aleatórias.

Abriu a porta no segundo seguinte, dando um passo em frente. O ar acertou-o na cara e fez o penteado dispersar-se sem rumo para todos os lados. Ela sorriu, o caçador estava todo despenteado, nada parecia fazer efeito sobre o maldito sopro infernal de Luxemburgo. 

Enraivecido, o homem desviou-se da entrada, ao mesmo tempo, que tentava usar os dedos para endireitar o impossível. A jovem passou por ele, levando a porta consigo. 

— Trancada. — O som da chave a girar saiu junto das suas palavras.

Andrey apenas concordou com um grunhido e seguiu em frente pelo corredor de portas ao ar livre. Maria fez o mesmo, contudo a vista dos subúrbios captava a sua atenção, prédios altos de cores monótonas, deviam estar carregados de pessoas, mas expressavam vazio no meio de tantos iguais. 

O caçador percebendo a distração da jovem interrompeu o inquietante silêncio através de palavras calmas que aos poucos iam formando um monólogo: 

— Dizem que durante a guerra da democracia toda a cidade foi destruída por demônios para evitar que fosse parar às mãos dos americanos. As fotos da antiga Luxemburgo são magníficas mesmo que não possamos ver mais a sua beleza ao vivo. 

Ela escutou cada centímetro da frase com a máxima atenção e ao passo da caminhada deu continuação às frases do seu superior: 

— Mas, porque eles iriam destruir a cidade? 

— Muitos deles não estavam contentes com a possibilidade de a Europa passar a ter influência americana e não russa, como acontecia antes. — Levou a mão à cabeça, coçando-a. — Porém, eu acho que destruir a cidade não adiantou muito para eles, acabaram mortos e a monarquia caiu poucos dias depois.

— E agora temos esta cidade sem cor… que pena…

— Ao menos foi positivo, adiantou o inevitável e no final foi um sacrifício necessário para que uma nova era de paz nascesse na Europa.

Maria sentiu-se interrompida, o homem por outro lado parecia falar para si próprio de novo. Porém, à medida que a distância entre os dois ia aumentando as palavras escapavam aos ouvidos da jovem, ela nem mais tentava ouvir e voltou de imediato à sua contemplação do cinzento padrão da paisagem. 



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