Volume 1
Capítulo 5: Amores Perigosos
"Enquanto ele ainda falava, apareceu uma multidão conduzida por Judas, um dos Doze. Este se aproximou de Jesus para saudá-lo com um beijo. Mas Jesus lhe perguntou: “Judas, com um beijo você está traindo o Filho do homem?”
Lucas 22:47-48
— Tinha ficado decidido na última reunião que não íamos interferir mais, então por que foste até à escola?
O Demônio da Morte, sentado na sua cadeira habitual, olhou para o fundo dos olhos dele e suspirou. Os seus três irmãos estavam ali, à sua frente, curiosos para saber o motivo da sua resiliência em esconder as provas de todos aqueles ataques.
— Não é um assunto tão simples para que possa ser resolvido com uma votação… nunca foi. As provas mostram que alguém está a tentar provocar-nos, ou, no máximo, a querer começar uma guerra. Nós não podemos deixar isso acontecer…
Um deles, envolto numa armadura degradada pelo tempo, bateu com as mãos sobre a mesa e levantou os ânimos. Na cintura era revelado um brilho que vinha diretamente da lâmina da sua espada.
— Se eles quiserem guerra, então nós daremos. Não vamos ser os tolos que acreditam em paz, irmãos… — Palavras amargas encobriram a voz alta da criatura, entristecendo o seu revoltante discurso. — Estivemos tempo suficiente em guerra para saber que é impossível fugir dela.
— Eu sei que a guerra corre no teu sangue, mas temos de ter calma. Eles não iriam querer lutar se não tivessem armas para isso. O tempo em que, nós sozinhos, éramos os quatro mais fortes acabou, novas ameaças nasceram. Nós vimos isso. — Daquela besta, as frases saíam, contudo não havia uma boca, apenas um longo bico negro seguido por penas pretas que se arrastavam formando o que parecia ser um cabelo. O corpo dele era magro, de ar doente, cheio de pequenas deformações. Algumas marcas rabiscaram a pele, todavia o que mais chamava atenção era a longa saia, de ratos vivos a dançarem em círculos, que se alongava até ao chão.
— Guerra, eu sei a verdade das tuas palavras quando afirmas a mentira que a paz sempre trouxe, e Peste, eu compreendo que hoje é mais difícil lutar do que há centenas de anos atrás, a Primeira Guerra Demoníaca está aí para reforçar isso. Porém, não é isso que me preocupa. Eu simplesmente quero deixar o mundo calmo por apenas um tempo.
Todos ficaram boquiabertos, os seus corpos irrequietos começaram a mexer-se sem parar sobre os assentos. Ao mesmo tempo, da janela que trazia a luz para a sala, nuvens cobriram o sol, eram negras como a noite mais mortífera.
— Bleh… nem acredito que o nosso querido irmão, a qual foi dado o título de Morte, agora quer tornar o mundo em um lugar pacifico, mas que piada. Pensar que um dia tu foste aquele que era conhecido por matar cidades inteiras. — A besta deu uma mordida no lanche que trazia consigo, mas parecia continuar esfomeada, devorando mais um pedaço em seguida.
— É simples, Fome, nós agora somos uma empresa. As pessoas dependem de nós. Nós vimos, mais do que todos os outros, o que nós perdemos com as bombas naquele dia.
— Sim, vimos como ficaste mais forte… apenas isso… Até porque a ordem partiu de ti, não teriam havido tantas mortes se não o tivesses feito…
— Vamos votar aqui e agora, então. — A Morte ergueu-se da sua cadeira esculpida a prata, a toda a volta gravuras de momentos heróicos em que havia participado.
A Guerra, naquele momento, focou-se totalmente nos olhos arredondados de seu irmão e, com um simples movimento levantou o braço em tom de oposição, respondendo em seguida:
— Os nossos problemas resolvemos no campo de batalha, não com joguinhos políticos.
Fome seguiu o gesto de Guerra, mas tomou o silêncio como protesto. Parecia calmo, mesmo perante a rápida mudança de tom de Morte.
— Eu não irei concordar com isso, uma guerra, com a tecnologia atual, seria enviar-nos para um inferno na terra — disse Peste, ao ver aqueles dois apoiarem uma ideia, que na sua cabeça parecia, impensável.
— Parece que temos um empate. Por mim, encerramos o tema aqui, mas se alguém quiser recorrer é só dizer.
A Morte, findando o discurso, deu dois passos para trás e virou o seu corpo. Diante de si, estava agora a janela, cobria a parede inteira, para ele era a melhor vista da cidade. As pessoas a andar pareciam formigas lá de cima, sempre de um lado para o outro. Estar ali, no topo, era como ser um deus de mentira frente aos seres sem identidade, seres que não passavam de paisagem para os seus momentos de reflexão.
— Eu vou recorrer… O rei vai concordar comigo, temos de tomar a frente de uma vez, se não pode ser tarde demais — revelou a Guerra, ao mesmo tempo, que deixava o seu corpo cair pela cadeira fria de ossos, a qual chamava de sua.
De olhos postos na rua, nem se deu ao trabalho de voltar para passar as ordens ao irmão. Abriu a boca de forma lenta e soltou palavras mais decoradas que a sua pele:
— Tens duas semanas para apresentar uma prova concreta, mas desta vez não é a nós quatro e sim a todo o concelho real, espero que estejas preparado.
— Sendo assim acho que terminamos por hoje, certo?
— Acho que sim. Então como tenho coisas para fazer, acho que vou embora. — A Peste recuou a cadeira, o barulho do ranger dela afetou todos em volta.
Fome que corria para a saída, voltou de imediato a atenção para o irmão. Era tão alto quanto a Morte e por toda a pele uma aura era emanada.
— Vais fazer o que mesmo? — questionou o mais novo dos quatro ao encarar a Peste.
De cima, ele observou o pequeno tamanho do seu irmão, era comparável ao de um humano, semelhante até com um pequeno inseto diante de um enorme animal. Curiosa, a besta revidou a pergunta com outra:
— Não tens mais nada que fazer?
Guerra, com a cabeça em chamas, levantou-se também, à semelhança dos seus iguais, e tomou a frente no caminho para a porta. O seu passo era mais acelerado que o comum e o fogo cada vez ardia mais de ânsia de brasas. Pelo reflexo do vidro, a Morte observava agitação do fogo vívido.
— Que se passa irmão, algo aqui incomodou-te?
Talvez, fosse apenas uma miragem do que se refletia na sua frente, mas ele jurava ter visto aquela corajosa besta engolir seco.
— Não te faças de desentendido, é claro que ele vai ter com aquela puta dos Sete Pecados.
— Luxúria, queres tu dizer… — Saltou um olhar de raiva sobre Fome.
Com um sorriso no rosto, que parecia o de uma verdadeira criança, soltou uma gargalhada e interrompeu a fala de Guerra:
— Isso, estava a faltar-me o nome.
A besta nem respondeu às provocações, sabia que ainda mais viriam do seu irmão. Decidida a ir embora, abriu a porta e tomou o lado direito do corredor para si. Em passos mansos, andou sobre o chão branco, relembrava-o dos tempos na Sibéria, era como pisar uma fina camada de neve.
O fogo foi-se dissipando a cada pegada. Todavia, curtas brasas insistiam em tomar do ar o sossego. Ao chegar ao fim do corredor deparou-se com inúmeros quartos, levantou a cabeça, que antes se fixava apenas no chão, e viu o seu nome sobre uma das porta, estava gravado numa placa de ouro.
Os seus olhos deram logo de encontro à maçaneta, que estava consumida pelo tempo. Longas marcas de dedos mortíferos carimbavam o objeto. Receou pouco em tocar-lhe, encaixando num só gesto a sua mão nessas marcações e girando aos poucos a maçaneta.
Ouviu o som do trinco abrir e aguardou alguns segundos para suspirar de alívio. Mais calmo, aplicou um simples empurrão e deixou a porta libertar-se para dentro do quarto. Daquela pequena abertura, já conseguia observar a cama e, em cima dela, uma linda mulher deitada. Consumiu-a com os olhos, reparando numa primeira olhada no seu vestido vermelho seduzente, contudo não era a única característica das vestes da mulher, lambendo-a novamente com a vista reparou em pequenas rosas brancas por todos os lados, saltavam por todos os lados onde a sua visão era mais apegada.
— Vejo que finalmente chegaste, meu querido, queria imenso falar contigo. As saudades matam-me, sabias? — Rapidamente levantou o tronco. Diante de si, estava uma brasa ofegante, desesperada por amor.
— Ainda bem que pudeste vir, preciso de algum prazer hoje… — Deu um longo suspiro. — Sabes, aqueles três matam-me, sempre fiz de tudo por eles…
— Se eles não te respeitam, faz como te falei, amor. Impõe-te e mostra quem realmente és.
Ela saltou da cama apressada, ao passo que ajeitava o longo vestido. Guerra já tinha tomado para si grande parte do quarto quando Luxúria aproximou-se e abraçou o seu corpo.
Apanhado de surpresa, sentiu o seu fogo abaixar perante o tocar delicado dos peitos da besta, pequenos e macios. Era mágico o que aquele corpo demoníaco feito há semelhança de uma mulher humana podia fazer por ele.
Assim que deu por terminado o longo abraço, ela dirigiu cada uma das suas mãos para lugares opostos. Uma foi para cima, tomou como seu o rosto, recheado de cicatrizes, do temido em batalha Demônio da Guerra, acariciando-o devagar. A outra, mais recheada dos odores de Afrodite, virou para baixo, cobrindo-se do calor que residia dentro da armadura.
— Não tem nada melhor que acalmar essa tua chama, meu bem. Eles a fazem queimar, mas eu sou a água do teu coração. — Focou os seus olhos nos dele e fez ambos os lábios se tocarem. Os de Guerra ardiam assim como a chama, ela sentiu os seus, que eram finos como os de uma humana, queimarem de dor, era como pisar em brasas quentes.
Contudo, em seguida, Luxúria recuou e tomou algum espaço para si. Palavras de justificação surgiram na boca dela e vazaram sobre o Demônio:
— Desculpa-me, tenho de ir fazer uma chamada. Um assunto importante da Hot Succubus.
— Ah… eu espero aqui dentro então, temos muito que fazer ainda — retrucou, dando um leve sorriso.
A porta estava aberta ainda, notando isso limitou-se apenas a passar por ela agitada e a fechá-la bruscamente no outro lado. Sozinha no corredor, puxou o celular do bolso e digitou um número que não estava registrado no aparelho.
O barulho da vibração preencheu o espaço calmo. Era persistente a teimosia em não atender ao pedido da Luxúria.
— Sim, o que tu queres? — disse uma voz grossa do outro lado da ligação.
— Ele já está na minha mão… E ao que parece as coisas não estão muito bem por aqui, os irmãos já não estão todos em sintonia como antes.
Pela tela do celular, ela conseguiu ouvir um barulho de palmas antes da palavras chegarem, recheadas de alegria, surgirem:
— Muito bom, se tudo continuar desta forma, vai ser uma questão de tempo até a nossa criação ser revelada ao mundo. Que diversão.
— Pouco me importa se está tudo bem para ti. Odeio fazer estas coisas. Só quero o meu dinheiro e desaparecer depois…
— Eu sei disso, vemo-nos amanhã. — Em tom de deboche, deu uma leve risada e desligou.
Assim que, a besta ouviu o som de finalização da chamada, arremessou o telemóvel com tudo contra a parede que havia diante de si.
Sem pensar duas vezes, tomou o silêncio como amigo e sentou-se em posição fetal sobre o chão. Uma mistura de sentimentos explodiram-lhe na boca, essa mistura juntou-se às palavras que saíram:
— Seu filho da puta de merda, como eu odeio estes joguinhos.