Possuídos Brasileira

Autor(a): Guilherme Alves

Revisão: boreggio


Volume 1

Capítulo 2: Antigos Conhecidos

“Todos ficaram tão admirados que perguntavam uns aos outros: "O que é isto? Um novo ensino - e com autoridade! Até aos espíritos imundos ele dá ordens, e eles lhe obedecem!”
Marcos 1:27

 

 

A agulha, cada vez mais funda na pele dele, ia aos poucos adentrando na veia. Aquela irritante dor fazia o caçador morder os lábios com muita força. Lentamente, continuou fazendo o metal fino perfurar o tecido que cobria todo o corpo, até que este perfura completamente aquele frágil canal sanguíneo. 

Assim que viu as primeiras gotas de sangue vazarem, arrastou a agulha para a frente, fazendo o pequeno ferimento preencher todo o pulso.

— AaaAAaaaAahhhh!!

As suas mãos, de imediato, foram de encontro a cara, manchando-a de sangue. O seu corpo mexia-se sem parar com tremenda agonia. 

Contudo, de repente, algo mudou: de onde antes escorria um líquido vermelho, agora saía uma fumaça negra. Quando ele percebeu, todo o seu corpo já tinha virado um manto de fumo preto. Era como um fantasma, ou até entidade. Sem pés, flutuava acima do chão e o seu corpo era escondido por uma longa túnica escura feita de escuridão.

— Mesmo desta forma… — Assim como Atlas¹, parecia carregar o mundo nas costas. Sentia, tal como antes, o corpo voltar a ser empurrado para baixo, mas com uma intensidade muito maior. — Eu não tenho forças o suficiente para segurar a barreira por muito mais temp…

Antes que pudesse acabar a sua fala, o caçador percebeu a sua cópula negra ser despedaçada em múltiplos pedaços bem atrás das suas costas, no único lugar que as câmeras dos repórteres não conseguiam gravar.

Tudo, naquele momento, em volta do homem parou. Era tarde demais para impedir algo e, com o cérebro congelado, ficou preso no mesmo pensamento. Nada se mexia ou respirava. Era como se todos estivessem sido absorvidos por um enorme glaciar paralisante.

— Pronto, parei o tempo em toda a cidade — olhou para todos os lados sentindo o peso da solidão em meio ao tempo —, acho que é suficiente, pelo menos por enquanto. Já agora, detectei algo aqui dentro, parece que ainda está vivo.

O demônio que entrou dentro da barreira parecia baixo. No seu rosto, quatro cintilantes olhos dourados. Mais abaixo, em cada bochecha, marcas que representavam o sol e a lua expulsavam a escuridão, emitida pela proteção que embatia na cara dele. No meio do peito, a sua habilidade era exibida na forma de uma ampulheta, que, flutuando, rodeada pelos órgãos expostos, girava a cada fim de contagem das areias. 

Contudo, aquele não era o único do outro lado da parede sombria. Logo atrás um ser gigante, provavelmente medindo quatro ou mais metros, surgiu mostrando toda a sua importância. A figura adentrou em seguida, também demonstrava ser imune ao feitiço do tempo. Ao levitar em cima da cabeça, usava uma linda coroa de papoulas.

— Provavelmente deve ser quem fez esta barreira… Escuridão… Eu o conheço bem…

Os dois olharam-se pelo canto do olho, com a boca paralisada, por alguns segundos. 

— E de onde vocês se conhecem? 

Dando uns passos em frente no pátio da escola, a monstruosa criatura olhou para todo o edifício, o seu nariz conseguia sentir o cheiro do sangue. Suspenso, com o olhar sobre a paisagem fez perdurar, de novo, um opressor silêncio. Tão silencioso que parecia como uma faca atravessando a pele do seu companheiro. 

— Uns o chamam de perigo… Também já ouvi profeta… Mas a verdade é que isso não importa, o mal já foi feito por mim e isso eu não posso alterar. — Palavras que pareciam sem qualquer significado, foram as que saíram da boca da besta, daquele que por muitos era tratado como o próprio Diabo, o Demónio da Morte.  

Pensativo, o outro avançou igualmente de lábios fechados. A sua mente não sabia o que dizer, nem o que interpretar daquela confusão de frases que escutou momentos antes.

— Enfim — deu um breve suspiro —, vamos nos apressar, tempo é uma coisa que, infelizmente, eu não tenho hoje — resmungou a criatura que, aos poucos com ambas as mãos, fabricava runas antigas.

Prevendo a demora, o Demônio do Tempo sentou-se sobre as pedras que pavimentavam o chão. Para manter uma habilidade tão poderosa como aquela, era melhor não fazer esforços.

De repente, ao seu lado passaram dezenas de mantos que, no meio da escuridão, pareciam mover-se sem ninguém para dentro da escola. Os seus portadores, escondidos sobre a noite falsa criada em volta do edifício, flutuavam sobre as rochas da calçada. Nem mesmo as paredes os impediam; eram como almas vazias vagando pelo mundo.

As pequenas criaturas demonstravam estar sob controle do demônio gigante. Não falavam, não respiravam e não recuavam. Como escravos, faziam tudo o que fosse ordenado pelo seu mestre.

A outra besta sentiu que a sua energia estava sendo tomada rápida demais para que pudesse aguentar. O sangue, sem esperar, escorria de cada uma das suas marcas, tanto a estrela quanto o satélite terrestre choravam o líquido vermelho a cada segundo.

— Talvez não dure muito mais a esfera temporal. — Ao falar, levou os seus quatro olhos de encontro aos do seu companheiro, contudo a estranheza acertou o seu peito em cheio.

Levitando, a criatura estava mais alta que qualquer animal e mexia os olhos como nada que antes já fora visto. As pálpebras pareciam uma mosca de tão pretas e irrequietas. 

A criatura temporal hesitou em aproximar-se dele, o seu corpo negava o avanço de tamanha que era a aura mortífera expelida pelo corpo do gigante. Mas então parou. Tudo o que era de estranho acontecia diante dos seus quatro olhos cessou. 

As suas pernas cruzadas deram de encontro ao chão e as runas antigas desapareceram do ar. Logo depois, o brilho vermelho dos seus olhos voltou, ofuscando o preto. 

— Podemos ir, acho que não deixei escapar nada. O resto vamos deixar para os caçadores, já que estão aqui têm de ter algum trabalho. — Na mais calma das entoações, a sua fala se fez repercutir por todo o tempo glaciar que emergia Frankfurt. O rosto sem emoções apenas voltou para onde tinham entrado e, sem mais qualquer palavra dita apenas, retirou-se. 

O pequeno ser ficou confuso, perdido naquela confusão acelerada. Por outro lado, o outro demônio fazia tudo tão rápido que provavelmente tinha uma agenda bastante recheada para o restante do dia. Sem alternativa, o dominador do tempo seguiu quem o trouxera ali, passando pelo buraco de névoa. 

Andando calmamente fora da barreira, a natureza perto do alto demônio revelou-se morta: tudo ao seu redor perdia a cor em instantes. Mesmo que o tempo tivesse congelado parecia não ser o suficiente para conseguir impedir aquela matança imprevista. 

— Mas como? Achei que ninguém conseguia afetar o tempo que eu congelava! — Perguntou o discípulo confuso ao mestre. Talvez a resposta fosse distorcida, contudo ele queria saber algo sobre. Estaria o poder do seu superior num nível capaz de distorcer até mesmo as regras que, para ele, um recém nascido naquele mundo, eram divinas?

Não parando a sua longa caminhada pelo lado de fora da escola, ele resolveu tirar a dúvida do demônio: — No fundo, congelar o tempo não é bem isso, apenas acontece uma paralisação de tudo dentro da área em que a habilidade é usada. Eu ou alguém do exterior dessa área consegue interferir no mundo congelado, seja estruindo flores ou até mesmo uma parede. Sendo assim, podemos dizer que o que é afetado por pessoas não congeladas acontece normalmente sem qualquer problema… É bom que se lembre de cada centímetro do que eu disse para sobreviver no campo de batalha.

— Interessante, nunca tinha reparado nisso. Talvez possa usar essa informação para  aperfeiçoar ainda mais a minha técnica. — Respondeu ele ainda atormentado com tal verdade, aquilo destruía tudo o que havia na sua cabeça em relação a si mesmo. Qualquer pequeno descuido era agora, aos seus olhos, como uma oportunidade para o seu fim em combate.

No fim do caminho que parecia ser o percurso até ao pavilhão do colégio, um portal abriu-se para ambos os demônios. Era como se fizesse uma saudação para ambas as divindades. Respondendo ao chamado, ambas fizeram o favor de atravessar, quebrando por consequência, propositalmente ou não, o feitiço do tempo. 

O caçador, no mesmo lugar de antes, sentiu tudo voltar ao normal, como se minutos tivessem sido percorridos, contudo o seu corpo e mente, assim como os de todos os que estavam ao seu redor, ainda estavam no tempo atrasado. 

— Inimigos perdidos, não sinto mais qualquer força deles. Mesmo assim, parece que uma pequena parte da barreira foi afetada, nada que não se resolva. — Revelou ele pelo rádio, bastante confuso com tudo o que tinha acontecido.

O franco atirador ouviu aquilo e observou todo o espaço. Não havia nada onde antes estavam as criaturas, os corpos dos demônios também haviam sido ocultados. Tudo desapareceu como num passe de mágica.

— Realmente, não está aqui mais nada. Mas, por outro lado, eu consegui ver alguma coisa se mexendo para fora da escola e, ao que parece, depois desaparecer…

— E o que seria isso? Algum demônio fugitivo? — Questionou John, caminhando do outro lado da proteção negra. 

Fazendo uma pausa dramática, ele revelou em seguida: — Quase isso, mas acho que não. Parecem servos da Morte, seria falta de tempo ou descuido?

— Então a Morte veio brincar de protetor do planeta agora, acho que os chefes não vão gostar disso. — John caiu em gargalhadas, acompanhadas de uma tosse coberta de asma. 

O caçador que ainda se encontrava na escola apenas ficou em silêncio, o seu cérebro estranhando tudo aquilo pensava. Qual a razão da Morte em fazer aquilo?

— Eu vou desfazer a barreira, vocês dois retirem-se, o nosso trabalho acabou por hoje. 

Porém, algo continuava sem fazer sentido: será que a Morte foi tão rápida que nem mesmo os olhos deles conseguiram ver? Ou algo mais tinha acontecido? 

O caçador, ainda abalado, focou o seu olhar no relógio, esse que marcava exatamente quinze e quarenta e três. Todavia de repente os números mudaram, o quatro passou para cinco e, o três para dois. 

— Nove minutos… Eu me lembro de ler algo sobre uma habilidade assim, ainda por cima junto da Morte… 

Os olhos do homem arregalaram-se. Finalmente ele tinha percebido algo, a informação que coçava bem por debaixo do seu nariz o tempo inteiro.

— John, Andrey. Olhem para os seus relógios agora…

Os dois ficaram confusos, olhar para o relógio? Relutantes assim o fizeram. Tal como Michael, ambos viram o tempo avançar como por magia.

— Atualização temporal… Acho que eles têm que começar a atualizar os poderes, com  tecnologia não fica difícil de perceber os truques desses filhos da puta. — John com o isqueiro perto do rosto acendia o cigarro que tinha na boca. 

Andrey olhou para todos os lugares à sua volta, esperando ainda o encontrar na cidade, mas sem sucesso. 

— Demônio do Tempo, então foi esse o motivo de a minha cabeça estar tão confusa. 

Dando um trago, John suspirou fundo e, em seguida, expeliu todo o fumo para fora. Aquela situação dava-lhe motivos para rir. Então, de voz rouca, em meio ao fumo saíram algumas palavras: — Sente-te honrado, a elite dos demônios veio nos agradecer pessoalmente por limparmos as merdas deles. — Gargalhadas vieram depois, acompanhadas de uma forte tosse seca. 

Ao mesmo tempo, Michael, sem força, ainda na escola escutava toda a conversa, mas a sua energia não era suficiente nem para falar. O seu corpo fraco, começou a fechar os olhos lentamente e a sua mente a ficar da forma de um campo de neve. 

"A vontade de morrer aqui é pouca, mas parece que vou ter que aceitar. Fazer o que, usar tanto poder por quase dez minutos foi loucura. Seria uma ironia ir conhecer os anjos num lugar que nem este. Só de pensar nisso eu já fico… Ahahahahahah!… Ahahah!… Ah…...".

 


¹Atlas é um titã da mitologia grega, aquele que foi condenado por Zeus a carregar para sempre o mundo nas costas. 



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