Volume 1
Capítulo 12: Sabores de Mudança
"Para tudo há uma ocasião certa;
há um tempo certo para cada propósito
debaixo do céu:"
Eclesiastes 3:1
A mão do caçador, percorrendo o rosto ferido da jovem, serviu como chave para despertá-la de sua prisão de insegurança. Maria não estava mais na sala onde o último confronto tinha acontecido, parecia ser mais uma praça de comércio. Perdida, viu curtas memórias brilharem por sua cabeça como pequenos flocos de neve.
— Onde estamos? — Inspecionou o lugar por longos segundos, até que percebeu onde a sua mente queria tocar. — Eu lembro-me de ver algo parecido com isso nos mapas do aeroporto…
— Parece ser a área das lojas antes do embarque... está tudo no sítio, inclusive a comida.
Maria viu pelo canto do olho Michael dar uma mordida em algo, o som recordava algo crocante e o cheiro trazia o gosto de manteiga.
— Eu trouxe alguma para ti — concluiu, apontando para um tabuleiro que estava ao seu lado.
No prato sobressaía um croissant, com uma aparência igual àquele que os lábios do homem tentavam esconder dentro da boca. Ao lado dele, alguns frutos secos e uma fatia de queijo preenchiam o resto do cardápio improvisado.
— Come, deves estar desgastada.
Dureza surgiu nas palavras do caçador, junto a um certo tom de melancolia. Certamente, aquilo não era mais um simples exercício.
— Tudo bem… — A jovem arrancou um pequeno pedaço da cauda do bolo e mordiscou aos pouquinhos. — Que péssimo, é mesmo um croissant para turistas — opinou, tentando cortar o silêncio que os devorava.
O homem, girando a cabeça em redor, concordou com um leve aceno e voltou a resguardar-se na calmaria.
— Se… Será que ficaremos bem aqui? Este lugar parece muito aberto — disse ela, trespassando o olhar pela parede que os protegia à direita.
— Por isso é que o escolhi, lugares grandes são o principal inimigo para quem ataca de perto. — Michael fez uma longa pausa. — Não falta muito para ele nos encontrar, consigo ouvir os seus passos. — Com a mão a pairar sobre a testa da mulher, ele lançou alguma da sua escuridão. — Certo, parece que a ferida já sarou quase por inteiro.
Maria mordiscou mais outro pedaço assim que sentiu que Michael não diria mais nada, contudo mal teve tempo de se deliciar com ele. Por um dos corredores brotaram cantorias, uma orquestra de sons indecifráveis.
— Ele encontrou-nos, já não era sem tempo… Alguma ideia para matá-lo? Não te esqueças que ainda és a responsável desta caçada.
Os passos longínquos, avançando no meio das palavras do caçador, ecoavam pelo largo espaço, tão rápido que aceleravam o coração de quem os ouvia atentamente.
Através do vidro, ambos viram o corpo da besta sair de um dos corredores. Porém, poucos foram os detalhes que conseguiram gravar, a velocidade era indecifrável aos olhos, como um mero vislumbre.
— Eu sinto o vosso cheiro por aqui, não precisam de ter medo, eu não mordo — divagava a criatura no meio de risinhos matreiros.
Maria, sem nunca tirar os olhos de onde vira o demónio passar, expandiu o seu pensamento até onde as ramificações pudessem chegar. Aquele inferno não podia durar mais, as saudades que ela tinha dos banhos quentes e de Andrey sussurravam-lhe ao ouvido.
— O golpe que eu acertei deixou-o fragilizado, talvez se der mais um… — Soltou a jovem ao vento. — Eu só preciso de um favor… Não é nada de especial…
— Diz o que queres e eu logo vejo.
A mulher recuou perante a cara fechada de Michael, ele julgava conscientemente todas as decisões tomadas. Todavia, num ato final de determinação envolto em memórias de uma omelete quente, as palavras escorreram pelos lábios macios da jovem e beijaram os ouvidos do companheiro.
— Tudo bem. — O homem levantou-se sem dizer mais nada.
Do lado de fora, a besta, continuando a sua busca por qualquer perfume que pudesse guiar os seus sentidos, cheirava bancos e mesas. Contudo, cada vez a fila de móveis parecia maior diante dos seus olhos. A isso juntavam-se as fragâncias culinárias vindas de todas as dezenas de lojas alimentares, pequenos estabelecimentos que exibiam, quase como troféu, lindas fotos de produtos que ao serem vistos da realidade não passavam de uma imitação da própria mentira visual.
As pegadas que o caçador dava no tapete vermelho soavam como pequenas gotas de água a cair sobre o abismo mais profundo. Essa quase falta de ruído, todavia não impediu que uma audição bem treinada lançasse pelos olhos negros um meteoro de angústia.
— Parece que temos aqui um herói. Que corajoso. Será que ele conseguirá salvar a princesa em perigo?
— Tens sorte hoje. Realmente muita sorte.
Michael dissipou a escuridão que o seguida pela sombra e, movimentando o corpo, revelou uma pose de combate. Os seus dedos, parecidos a pequenos bastões, juntaram-se, formando um bloco de cimento em cada punho.
Os pés da besta avançaram sem qualquer aviso prévio, saltando pelas mesas e cadeiras e colocando um manto de destruição debaixo do monstro.
— Vou fazer esse sorriso desaparecer, isto é uma promessa. — Chamas quase que saiam dos olhos do oponente de Michael. — E depois vou torcer e retorcer esse corpinho humano até não sobrar mais sangue para pingar sobre o chão.
— Veremos…
O primeiro soco chegou como uma avalanche descontrolada para cima dos olhos verdes do caçador. Contudo, o seu corpo, seguindo a leveza com que a corrente o guiava, afastou o perigo com um simples desvio.
Em seguida, vieram as garras afiadas e foram revelados os dentes pontiagudos, todos falharam em tentar tirar uma lasca sequer de pele ao homem, que continuava de sorriso arreado, troçando da pouca sorte do demónio.
— O meu plano não era cansar-te tão rapidamente, mas parece que não tens muito mais fôlego nos pulmões — disse Michael, degustando da respiração atrapalhada da raposa.
— Tu… ainda não… viste nada... — Esperou pelos pulmões. — Tenho de me resguardar para a verdadeira adversária, é ela que eu temo. — Para incendiar a pólvora que lhe gotejava pela língua, tentou emular um falso sorriso, mas, aos olhos inimigos, pareceu mais um sussurro desesperado de ajuda.
— Convém passares por mim primeiro, então eu não guardaria essa força toda para depo…
A mandíbula da besta passou perto de libertar o sangue do caçador, tão perto que até mesmo a pele despreocupada do homem se sentia agora viva, num mar de arrepios.
— Tenho de admitir, para um demónio fraco, tu até que consegues fazer alguma coisa. — Olhou as sombras que o observavam de longe. — Pena que existe um abismo entre nós.
Confusa, sem entender para onde o seu adversário virava os olhos, a criatura investiu mais uma vez. Dois golpes com as suas enormes garras, um após o outro, a sua velocidade era tremenda, tamanha que nem Maria, escondida, conseguiu acompanhar, notando apenas linhas brancas pelo ar.
Logo após, uma gargalhada subiu pelo salão, acompanhada de uma pausa silenciosa. Assim que a raposa voltou a si, não restava ninguém à sua frente.
— Devias ter ficado de boca fechada — sussurrou, com uma expressão alegre na face.
— Eu digo o mesmo, raposa.
Num instante, todos os ossos que a criatura sentia sustentar as suas costas foram fragmentados. Quando notou já estava desabada sobre o chão e do peito saía uma mão negra a arder em escuridão.
O sangue subiu à boca do monstro, ao mesmo tempo que as células se restauravam, camada sobre camada, contudo o braço do caçador continuava ali, imóvel, atormentando o suspiro aliviado que queria deixar escapar pela boca.
— Por mim morrias já aqui, mas não és o meu adversário. — Expulsando a praga do seu punho, o caçador lançou o corpo para o frio mórbido do chão, marcando o tapete com um rastro de sangue vívido. — Maria, é a tua vez. Tal como combinado, ele mal tem força para fazer o que quer que seja.
Lá estava ela, linda, majestosa no seu desespero militar, de olhos verdes postos na pobre criatura a agonizar no chão.
— Não esperava uma recepção menos digna à minha chegada pela tua parte, minha querida — disse, ainda com os lábios vertidos em sangue.
— Desculpa… — Como uma folha a cair no outono, assim fez a sua primeira palavra de lamentação. — Perdoa-me, eu não vou fazer isto por mal…
A besta saltou do solo, ainda com as entranhas a escorrer pelo buraco que tinha no peito, e correu pelo corredor de medo e desespero que o separava da jovem, ficando frente a frente com os seus belos cabelos ruivos por pentear.
Maria, tentando descobrir o limite da sua força, chutou uma das pernas do oponente. Mesmo que ela estivesse recheada de músculos, o resultado foi o mesmo, voou dezenas de metros pelo ar, enquanto as lojas olhavam inexpressivas.
Sem alternativa, o corpo da besta desabou novamente, não restava mais nenhuma fagulha de determinação que o fizesse avançar.
— Acabou, até que durou mais do que eu pensava — soltou Michael, limpando o pó que se acumulou pela roupa — Só falta finalizar, Maria.
O demónio engoliu seco ao ser confrontado com tais palavras, a sua vida fora tão breve para terminar ali, como mais um ofício de caçadores cruéis. Debateu-se contra o chão sem parar enquanto esses pensamentos brotavam na sua cabeça condenada.
Sangue salpicou junto da pequena onda de pó que se fez erguer. A jovem podia sentir os restos de carne, e alguns pedacinhos do cérebro, beijarem o seu braço reforçado com cicatrizes infantis.
— Podemos dar este caso por encerrado… — troçou o caçador, aproximando-se do corpo sem vida.
— Gostava de não ter feito isto…
Da mão pingavam restos da cabeça do demónio, gota após gota, manchando a carpete com pequenas poças mortíferas.
— Se gostas ou não, pouco me importa, mas se quiseres sobreviver tens de acreditar em mim, sempre. Leva isto como um pequeno conselho de amigo.
A água salpicava em vermelho quando batia na camada de cerâmica que a rodeava. Um vermelho constante, que se recusava a sair das mãos de Maria, por mais que ela forçasse, talvez fossem já as suas próprias feridas, causadas pelos cacos de vidro espetados nos dedos, a transbordarem sangue incessantemente.
— Avó, eu matei um demónio pela primeira vez… A imagem não me sai da cabeça por nada… Eu queria poder esquecer, só por um segundo… Acho que agora consigo finalmente te entender… — As palavras, soltas pelo ar sem destino, batiam nas suas milhares de imagens que o espelho refletia e caiam no abismo do esquecimento. — Agora eu sou como eles… uma assassina… era o que tu dirias se me visses agora.
O som constante, que se sobressaia no emaranhado de sinfonias berrantes, vindo da água lavava a alma da jovem. Contudo, uma mancha negra persistia em perturbar a sua mente, como uma agulha presa no seu cérebro que a fazia recordar vezes sem conta as suas escolhas até ali.
Passos firmes ecoaram pelo banheiro, parando perto da porta. Uma corrente silenciosa tocou na pele da jovem e reduziu-a a um emaranhado de arrepios, alguém a observava.
— Maria, está tudo bem? — perguntou Michael, tentando espreitar para dentro da divisão — Já se passaram vinte minutos, não podemos perder mais tempo, o helicóptero está à nossa espera.
— Desculpa… perdi totalmente… a noção do tempo… Só mais um segundo e eu saio…
Sem qualquer resposta por parte do homem, os seus pés fizeram o mesmo barulho de momentos antes, desaparecendo na multidão que lutava de língua afiada do lado de fora.
— Mais vale limpar a mente por enquanto, o que está feito eu está feito…
Molhou o rosto com as últimas correntes que fluíram da torneira, dispersando as gotas que ainda teimavam em beijar as mãos com simples gestos. Assim que deu as costas para o grande espelho, as palavras que Andrey usara na praça em Luxemburgo, deixadas de escanteio, voltaram para a assombrar. Realmente, aquele não era um mundo feito para ela.
O banheiro, que antes parecia tão simples, foi ganhando mais detalhe conforme passava diante da vista de Maria. As paredes, divididas ao meio por uma faixa branca, estavam cobertas de azulejos cor-de-rosa, um tom que, de tão claro, fazia lembrar uma bochecha corada.
— Que desperdício, uma beleza daquelas a caçar demónios. Ainda por cima ficou com ferimentos no rosto. Os admiradores dela vão ficar boquiabertos quando a virem, até consigo imaginar a cena. — Sentia a voz de Pietro passar pela porta do banheiro. Curiosa, aproximou o ouvido. — Espero que lhe pagues bem pelo serviço, ela vai precisar.
— Ela agora é uma caçadora, tem de estar preparada para essas situações. — Maria, deixando a alegria fluir num sorriso, saltitou por entre o silêncio matreiro que a escondia. Eles eram finalmente colegas de profissão. — Contudo, ela ainda é jovem e o caminho longo. Mas, tem um potencial que não se vê todos os dias, talvez comparável ao meu, ou até mesmo ao de Alexei.
O cheiro intenso do cigarro perturbou o nariz delicado da caçadora, entrando pela brecha que a jovem usava para olhar as silhuetas dos homens. Era Pietro quem fumava, soltando os vapores mortais entre cada respiração.
— Mudando de assunto… — Deu um trago e esperou alguns segundos antes de prosseguir. — Não achas estranho que a identificação dele não tenha acusado nada na entrada do aeroporto? Não é comum o Cálculo¹ da Demon Company falhar.
— Quando eu vi o ficheiro dele, reparei que faltava a informação do Cálculo. Dúvido que seja uma mera coincidência. — Michael ergueu os ombros com ar desinteressado. — Mas, pouco importa, o caso vai ser esquecido, o corpo vendido à Demon Company e comprado por algum cidadão estúpido que acha que tem liberdade só porque pode injetar um demónio nas veias.
— Mesmo assim, eu acho melhor dar uma vista de olhos nas informações, sinto que me está a escapar algo. Com sorte, ainda descubro alguma organização maligna que quer destruir a humanidade. — Risadas, acompanhadas com uma tosse revoltosa, cortaram o ar de Pietro.
— É uma ótima ideia, ao menos fazes alguma coisa no escritório para além de preencher papelada — revidou o caçador enquanto dava tapinhas nas costas do amigo — Só não te esqueças de colocar no relatório que o demónio não apresentou qualquer grau de consciência. Não tenho paciência para me justificar aos chefes e aos jornais, outra vez.
— Não te preocupes, os meus olhos só vêem um monstro confuso, sem capacidade de pensar, e os que o virem dirão o mesmo, eu dou-te a minha palavra.
¹Cálculo é uma conta feita pela empresa Demons Company, que visa tentar prever em que momento os humanos que possuem um contrato vão entrar no estágio de Descontrole.