Volume 1
Capítulo 13: Prisão da Paixão
"O amor deve ser sincero. Odeiem o que é mau; apeguem-se ao que é bom. Dediquem-se uns aos outros com amor fraternal. Prefiram dar honra aos outros mais do que a vocês."
Romanos 12:9-10
A vida corria pelo ar, iluminada por um Sol que se fazia erguer no céu, sempre acompanhado por algumas nuvens matreiras que tentavam esconder a sua beleza. Os pequenos raios luminosos brincavam pelos cabelos de Jamilla diante da visão de Andrey, reflexos que ofuscavam o olhar penetrante do caçador.
— O mundo parece alegre hoje — disse o homem, desviando a atenção para a entrada majestosa que se curvava diante deles — Acho que é a primeira vez que vejo esta cidade com ânimo a correr pelas veias.
Jamilla, segurando uma maleta nas mãos, sentiu o odor dessa alegria passar junto do seu nariz, uma fragrância primaveril que corria com o vento, contudo a primavera já se fazia longe.
— Aposto que isto é um sinônimo de boa sorte. Eu sabia que, depois daquela chamada, nada podia estragar o meu dia.. — Escondeu o sorriso deleitado por debaixo de uma máscara de mãos, permitindo cair a maleta sobre as pedras da calçada.
— Chamada? Que tem de importante essa chamada?
Usando a maleta caída como desculpa, decidiu apanhá-la para disfarçar o vermelho que lhe manchava as faces, e limpar a mente das fantasias que lhe beijavam o pensamento.
— É importante, o Michael me convidou para um jantar esta noite. Ele disse que voltaria pela tarde para Luxemburgo e queria aproveitar para ir comer algo comigo.
— Um encontro!? Bem, talvez ele queira reconciliar as coisas entre vocês, deve estar com um peso a sobrecarregar aquela cabeça oca.
— Talvez… — concordou a mulher, olhando as grades que a prendiam no meio de um emaranhado de medos. A curta frase que ele deixara escapar, logo após o término dos dois, acertou o coração de Jamilla outra vez. — Talvez… — Sentiu lágrimas florescerem no cantos mais escuro dos seus olhos.
O caçador sentiu aquele silêncio mexer com a cabeça da linda mulher, ela estava perdida num mar de memórias, todas ao mesmo tempo. Foi então que algo inesperado tomou a visão do homem, parecia ser uma família de aranhas, corriam alegres pelas pedras do passeio. Contudo, não eram as únicas, a poucos centímetros seguia mais uma caravana com dezenas de insetos de oito patas.
— Não sei se é impressão minha, mas existem cada vez mais aranhas por aqui. Será que é por causa da temperatura? — questionou o homem, tentando fazer com que as suas palavras espantassem os pensamentos corruptos de Jamilla.
— Ah… Aranhas?
— Sim, não achas que andam por aqui muitas ultimamente? — interrogou.
A resposta não tardou em chegar, surgindo na forma de um leve aceno de cabeça, poupando qualquer gasto excessivo de palavras. Andrey, poucos instantes a seguir, sentiu a boca da mulher hesitar quando olhou o companheiro de lado, essa hesitação transformou-se segundos depois numa frase envolta em alegria.
— Estamos a precisar de ir trabalhar, não achas? Estou a sentir que temos um longo dia pela frente. Não é nada que não estejamos habituados — concluiu, erguendo a cabeça para a porta que os aguardava de sensores apontados.
— Prefiro o trabalho no terreno, tem mais ação e menos papelada. — Caminhou através da porta, seguindo Jamilla. — Até porque, para garantir a paz, pouco os papéis podem fazer.
— Não posso negar, mas tu sabes muito bem que a OMD é mais do que um simples grupo de segurança.
A mulher passou os olhos sobre uma tela gigantesca que se arrastava até metade da parede esquerda, nela saltava, por entre os píxeis desgastados pelo o tempo, uma propaganda. Do outro lado, notava-se uma pequena sala, parecia deixada ao abandono, restando apenas os zumbidos dos monitores, monitores que ficavam cada vez mais amarelos com o passar dos anos, a vaguear sem destino pelo ar.
— “Regular é Coexistir”... Que linda frase, que linda desculpa…
— Se for para tornar o mundo um lugar melhor, é mais do que justificado — interrompeu o caçador.
Jamilla parou o passo, adormecendo o corpo pelo balcão. Os seus cabelos rodopiaram pelo ar, danças que tiveram um fim curto assim que a cabeça girou pelos odores metálicos saídos da idosa câmara de segurança, revelando as grandes avelãs aguadas que saíam pelos seus olhos.
— Eu sei por onde tu queres entrar, mas não vamos voltar a ter esse debate, entendido? — Fez um gesto imperceptível para a câmara. — Da última vez perdemos três horas a conversar, não tenho tempo para desperdiçar mais três.
Por detrás do balcão, saltou um homem de corpo robusto, cheio de teias de aranha pelo corpo e com alguns ficheiros antigos debaixo do braço. Os seus belos fios castanhos trançados escorriam por uma face de características opressivas até descansarem nos ombros, encontrando-se com a sua jaqueta azul escura. A pele do rapaz era semelhante à de Jamilla, contudo afundava-se mais na negritude, revestindo-o num tom que pouco se fazia ver pelo continente.
Ainda com perfumes matinais a castigar a boca com longos bocejos, o segurança teimava em não deixar cair os olhos numa prisão profunda de sono. Contudo, assim que fitou o corpo esculpido de Jamilla, sentiu uma explosão de cafeína no sangue.
— B-bom dia — disse em meio aos gaguejos — A que se deve a honra desta inesperada visita.
— Mais um dia de trabalho, pelo menos é o que eu espero. — Pelo pequeno buraco recortado no vidro, a mulher colocou o cartão nas mãos do porteiro, adormecendo mais do seu corpo sobre o balcão. — Eu sei que estou um bocadinho atrasada, mas podes fazer o favorzinho de fingir que não aconteceu nada?
— A-ah, c-claro que sim, u-um atraso de vez em quando é humano.
Vendo a esperteza da colega, Andrey passou também o seu cartão pelo buraco, rezando para o segurança recusar caridosamente colocar a marca que tanto temia, seria a primeira falta de atraso no seu currículo empresarial.
O homem puxou os óculos do bolso, avaliando calmamente com uma breve olhadela o documento, decretando a sua sentença no mesmo momento:
— Infelizmente não consigo ajudar, amigo. Se alguém descobre estou feito. Mesmo que eu queira muito é impossível, eles estão de olho este mês, ouvi dizer que querem cortar gastos. Não posso me dar ao luxo de acabar sendo considerado um gasto, você não acha? — Devolveu o cartão mal lançou as últimas fagulhas mentirosas sobre o caçador.
— Eu compreendo muito bem a situação, compreendo até demais. — Notando que pouco ia ganhar por ali, deixou Jamilla e o homem no balcão e caminhou para junto da cancela que dava acesso ao resto do edifício. — Ao menos podes abrir aqui para mim, não tenho tempo a perder.
Os dedos atrapalhados do rapaz correram para procurar entre os botões aquele que destrancaria a divisória de metal, assim que o encontrou e pressionou ouviu-se um som mecânico, um barulho que fez a cabeça de Andrey sintetizar no modo de trabalho. O comportamento mudou num piscar de olhos, deixando a coluna desleixada que exibia momentos antes por uma postura perfeita.
— Ele está bem? Parece um robô…
— Ele e um robô têm mais semelhanças do que parece… — contou, desprendendo os seios do balcão — Não passam de máquinas programadas. Bem, acho que vou trabalhar também, já que sou paga para isso.
Por mais que o tecido cinzento escondesse as curvas requintadas de Jamilla, dificilmente ofuscaria o seu brilho, tão intenso que gritava de longe, cegando o recepcionista, que hipnotizado acompanhou o desfilar das coxas recheadas da mulher até se perderem no horizonte de betão e concreto.
— Nunca me canso desta vista — soltou num sussurro enquanto o seu nariz recebia vislumbres do perfume floral que descaiu da mulher.
Caminhando sem pressa, Jamilla sentia a sensação que revirava o seu coração sempre que passeava pelos corredores infinitos do edifício, era o que chamavam de nostalgia. Vinham sempre as mesmas memórias, a principal recordava do dia que ela viu tudo aquilo pela primeira vez, o seu sangue corria em animação, lembrava-se de ter passado cada segundo a estudar milimetricamente cada pedaço do edifício: a cafetaria, só de pensar conseguia sentir o cheiro a café quente passar pelos olhos; os escritórios, sempre lotados de pilhas e mais pilhas de trabalho; contudo, onde mais vívidos eram os detalhes parecia ser o ginásio onde os caçadores treinavam, o relinchar das máquinas antigas e os gritos entre as respirações sempre a interromper as suas conversas.
— Foi logo a seguir ao ano novo, ainda me recordo de estarem decorações de natal espalhadas pelas paredes. — Bisbilhotou com o olhar, sempre de passo sonolento, a vista que os vidros conheciam, todos mostravam salas cobertas de pessoas ocupadas com a atenção posta em algum arquivo. — Aquele realmente foi um caso para dizer: “ano novo, vida nova”.
Ao longe, os seus olhos falsificaram uma miragem de Michael, um Michael mais novo, ainda com expectativa a pulsar nas palavras. Ambos tinham entrado para a OMD por volta da mesma altura, a sua cabeça dizia que existiam alguns meses de diferença entre os dois, mas isso pouco importava, a verdade é que foi essa a causa da amizade, uma relação de ajuda entre os novos membros da equipa.
— Num dos dias, ficamos até mais tarde. Eu estava a ajudá-lo a preencher um relatório e quando terminamos, foi este o corredor que usamos para voltar… está um pouco diferente, mas a máquina de vendas ainda é a mesma. — Parou os pés bruscamente e ficou a contemplar, de olhos e palavras, o passado que dançava diante de si. — Nem acredito que ainda vendem RedJuice, pensei que a marca tinha falido. Eu adorava e ele sabia disso, comprou-me sem eu saber naquele dia para me recompensar, quando descobri pulei de alegria. — Fechou os olhos num ato de desespero, queria aguçar os seus outros sentidos para tocar a memória com mais detalhes. A sua voz, desprendida da realidade, narrava as visões que brilhavam sobre o seu pensamento, cantando para aqueles dois, Jamilla e Michael, que após se sentarem no banco para a qual ela agora olhava, partilharam os fones, dessa música nasceu um bailado que criou as raízes daquela parceria, uma eterna dança do amor.
Um som ecoou de longe, constante, passos rápidos que se aproximavam. A sinfonia repetida revirava os pensamentos saudosos num mar de ondulações.
— Jamilla, vi pela doce voz que eras tu, estava mesmo à tua procura — disse o Anjo de olho na saia cinzenta da mulher, esperando que revelasse algo mais. Contudo, com uma breve análise estranhou os seus olhos — Pode ser a tua beleza a perturbar a minha cabeça, mas estavas a falar sozinha?
— Sim… — As bochechas rosadas saltavam em sangue, esguichando de vergonha mais uma vez. — Costumo falar comigo mesma muitas vezes, ajuda conhecer-me melhor, recomendo por acaso.
— Certo… enfim, o Andrey está à tua procura, ele precisa de ajuda em alguma coisa importante. O John tentou dar uma mãozinha, mas está naqueles dias.
— O que o John fez desta vez para deixar a balança chegar ao azar? Não deve ser assim tão difícil equilibrá-la.
— Acho que envolvia algo com apostas e um casino ilegal. Ele não consegue deixar a ganância sair do corpo por um dia sequer, sabes como ele consegue ser.
Bastou uma palavra para a jovem traçar o destino do resto da conversa que tentava germinar por meio das palavras, seguindo o caçador logo depois. Realmente o edifício era confuso, como diziam os visitantes, caminhos e mais caminhos, caminhos sobre caminhos, tudo isso na medida em que pareciam ficar maiores ou os pés mais cansados. Porém, isso não impedia que fossem um deleite aos olhos, já que muitas das paredes tinham, sobre a camada monótona de branco, uma partitura de pinceladas, exibindo, através de um vasto arco-íris, as histórias de vários caçadores lendários. Para acompanhar essas exposições visuais, plantas brotavam, tentando dar um ar mais moderno ao antigo edifício, mesmo que por fora lembra-se um templo grego.
— Eles estão ali dentro, diz-lhes que eu volto já.
A sala, há semelhança de tantas outras no edifício, tinha um aspeto comum, mesmo que fosse reservada apenas para o principal esquadrão da Europa. Jamilla passou com os olhos sobre o espaço, notando de imediato Andrey e John debruçados sobre um computador.
— Cheguei, o Anjo disse que já voltava… Mas e então, qual é o problema, rapazes? — Espreitou por entre a confusão, tentando perceber o buraco que iria se enfiar. — Aposto que é mais uma conta para eu disfarçar no orçamento mensal.
Sem desviar o olhar, Andrey sentado em frente ao aparelho, abriu a boca para rebater a frase matreira:
— Longe disso, é algo bastante estranho por acaso. Consegues dizer se houve alguma alteração recente nos servidores?
— Que eu saiba não, por quê? — Aproximou-se dos dois, encarando também a tela.
Os dois caçadores revelaram o problema assim que sentiram a sombra dela a pairar sobre ambos, nenhuma das duas contas conseguia acesso para entrar na base de dados. A mulher largou a maleta sobre a mesa e, afastando os homens, passou com os dedos sobre o teclado, digitando primeiro os seus códigos, todavia o resultado foi o esperado.
— Ainda ontem eu consegui entrar, isto não faz sentido.
— Porra, logo hoje que eu precisava de preencher um relatório importante, tinha de acontecer uma merda destas — disse John, retirando de junto do computador e reclamando para a sala, fazendo uma pobre cadeira de vítima no percurso.
— Vou tentar com os do Michael, talvez consiga. — Repetiu as senhas três vezes até garantir que o erro não tinha qualquer relação com uma falta de atenção. — Nem estas estão a funcionar!? Deve ser algum erro do servidor, vou ver o que eles dizem.
Levantou-se do meio de ambos, retirando o celular, a tela deitava como o ar pequenos cristais de tão quebrada. O contacto, marcado como favorito numa imensidão de número, estava há distância de um simples toque.
— Espero que eles atendam, não posso trabalhar assim. — Ouvia chamar do outro lado da linha, todavia os segundos foram passando, um atrás do outro, até o toque estremecer uma última vez nos ouvidos da mulher.
— Merda, parece que a sorte não vai mesmo colaborar comigo hoje. — Puxou um cigarro da caixa junto com o isqueiro, tossindo sem parar na primeira tragada. — Porra!! Até o cigarro… Acho que vou dar uma volta, tenho de ir arrefecer a cabeça e ver se isto melhora.