Possuídos Brasileira

Autor(a): Guilherme Alves


Volume 1

Capítulo 11: A Morte a cada Instante

To­dos vão para o mesmo lugar; vieram todos do pó, e ao pó todos retornarão.
Eclesiastes 3:20

 

 

Maria ouvia o frio do chão bater como pequenas ondas sobre as suas costas. Ao fundo podia cheirar o rastro de palavras soltas vagueando pelo ar. 

— Mamãe, para onde vão as pessoas quando deixam o mundo? — Era uma voz parecida à de caçadora, contudo vinha carregada num tom infantil.

Uma mulher surgiu à sua frente, alta com longos cabelos alaranjados. Na mão trazia uma cesta de morangos, tinham um cheiro que colocava ao fundo as deslumbrantes paisagens do Sul da França. 

— Não sei, anjos vão para o céu, demónios para o inferno, mas, e nós? Nunca parei para pensar nisso… 

— O meu professor disse que os anjos vêm buscarmos para o céu. — A criança passou por Maria e correu para junto da mulher. — Será que me vêm buscar a mim também?

A jovem, olhando a cena, estendeu o braço e andou alguns passos em frente. Quanto mais andava, mais o mundo parecia distante, aquela era a barreira, onde a vida e a morte davam as mãos. 

— Espero que sim… — Aqueles olhos verdes esmeralda que reluzia olharam para lá das flores que nasciam no campo. — Será que vou ver um anjo antes desse dia chegar?

— Eu vi um, mãe… — sussurrou Maria, deixando escapar o seu interior — os olhos dele eram cruéis… — As últimas palavras misturaram-se às ondas que a engoliram num mar vermelho, onde respirar água até perecer afogava-lhe a garganta. 

Podia sentir a vida escorrer por entre as bolhas, cada vez em menor número, que nadavam até ao infinito. 

— Maria, acorda! — Sentiu o calor do seu corpo desaparecer quando uma mão gélida percorreu pelo seu rosto. — Não estás no melhor estado… 

A voz lembrava de alguém conhecido, alguém que a aguardava em vida. Enquanto refletia, sombras surgiram à sua volta, secando cada centímetro de água. 

— Ótimo, a tua respiração finalmente voltou. 

Pareciam faróis verdes no meio das camadas de branco que os rodeava, sobre elas borrifadelas de sangue revelavam um terror escondido. Escondido aos olhos mais desatentos, contudo os ouvidos menos treinados podiam notar os seus berros desesperados. 

— Consegues falar? — questionou o homem — Espero que as sombras consigam recuperar o essencial… 

— Eu estou… — Toda a face ardia numa comichão fervorosa, essa sensação vinha acompanhada de gritos e gemidos que aqueciam o ambiente. — O que aconteceu com a minha cara… — Os seus dedos tocavam em algo líquido, algo vermelho, que escorria pela pele até tocar nos lábios, era sangue.

Michael suspirou de alívio, colocando os fios de cabelo que lhe ofuscavam a face para trás. Maria conseguia ver todos os poros da sua pele, suor e mais suor a fluir como um rio até desaguar no chão. 

— Está tudo bem, as sombras vão fazer o necessário, mas eu não sei se vai ser possível esconder a cicatriz do teu rosto. Até para a tecnologia mais avançada vai ser um trabalho difícil.

— Não entendo, que cicatriz? — A mulher, encarando Michael, notou os seus olhos verdes cristal, semelhantes aos seus. — E como eu vim aqui parar? Eu estava num campo… A minha mãe…

— Isso deve ter sido uma alucinação… estiveste muito perto demais de não voltar, a tua cara que o diga. Basta olhares para o espelho. — Levantando-se do chão ele estendeu a mão para erguer Maria. 

A jovem apertou-a, aceitando a sua ajuda. Mal colocou os pés no chão, sentiu o seu receio de retornar, o medo, um sentimento tão forte que a fez ceder para o piso, e isso teria acontecido se não fosse por Michael, que controlou os músculos mortos de Maria com o restante das suas sombras, dando ao seu corpo o único trabalho de a guiar pelas ondas de desespero que gritavam por toda a sala.

Imóvel, e segura nos braços do caçador, a mulher rodou a sua atenção pelo espaço. Tudo estava tão parecido, mas ao mesmo tempo tão diferente… O sangue saltava por todos os lados, tal era a sua semelhança com ervas daninhas, crescendo em todos os buraquinhos que a vista decidia bisbilhotar. Ao fundo, com o corpo envolvido num nevoeiro negro, a besta gritava a sua cantoria desesperada, uma sinfonia que trazia odores a morte.

Porém, tudo isso não passavam de tenebrosas distrações na paisagem, aquilo que realmente nascera para dominar a concentração parecia ser a forma que o seu rosto tinha tomado, nada mais florescia tantas dimensões de pensamentos. 

Maria encarou o presente. O espelho, cheio de facas na língua, começou por cortar o seu coração em milhares de pedaços. A cicatriz estendia-se desde o queixo até se misturar com os fios de cabelo na testa. 

— A minha cara… — murmurou a jovem com desespero a saltar pelos olhos.

Tocado pela situação, Michael percebeu o quanto aquilo significava para uma jovem de tenra idade, uma jovem que nutria um carinho especial pela sua aparência. Acariciando o rosto da mulher ele falou:

— Já vi caçadores recuperarem de coisas piores. — Risinhos voaram pela sala. — O nosso problema agora é outro, não te esqueças que ainda temos um demónio para matar. Ele é a tua presa, só tu podes escolher o que fazer com ele. 

— Eu… Eu não sei… — Uma onda varreu a motivação, contudo algo secou a água que lhe cobria a cara, uma forte determinação. — Acho que estou pronta para terminar isto de uma vez. — O sangue banhava as faces da jovem num mar flamejante. — Quando mais tempo passar, pior vai ser para a minha cara. — A mão trêmula pousou sobre o abismo que dividia a pele, as veias pulsavam em meio ao terror de um simples toque e a carne recordava o corte de mil facas afiadas, uma memória que manchava de dor os nervos.

Fitando Maria, estava o demónio de olhar negro, parando aos poucos com os ataques constantes na barreira sombria. A mulher podia sentir o julgamento cair sobre si, vindos de lapsos de consciência que iam brotando na  mente animalesca. Já não faltava muito para chegar à última fase… 

— Basta um golpe e tudo acaba… — sussurrou. 

— Vou ficar a ver daqui. — Michael recuou alguns passos para junto da parede que os cercava por trás. — Quando quiseres é só dares a ordem. 

— Eu sei… tenho só de respirar antes… 

— Eu acredito em ti, eu sei que tens muito para nos mostrar ainda. 

— Talvez seja isso que faça o meu coração pesar, carregar um peso tão grande nas costas… — Gotas pintaram o pescoço de vermelho e escorreram peito abaixo. — Pensar dói… 

— Esvazia a mente, o que importa está na tua frente e quer devorar cada centímetro do teu corpo.

— Solta-a! — Maria cerrou os punhos com a força que ainda aquecia o seu coração. 

A escuridão dissipou-se pelo ar, como pequenos redemoinhos que dançavam até se perderem num deserto de pó. No meio dos vapores negros surgiu a besta, a saliva escorria-lhe pela boca, salpicando por todos os lados, nas mãos as garras reluzentes refletiam vários rostos repetidos da jovem 

— Duas patas… Isto não é bom… — Michael olhava de longe com um ar pensativo. 

"E agora, Maria? Enfrentar uma criatura dessas num estágio tão avançado, ainda por cima, no início de carreira, é uma carta de demissão para o cemitério, mas tu sabes bem disso. Vai ser um bom teste." — sussurrava o caçador na sua mente. 

Com um salto, o demónio voou pelo ar de boca aberta, preparado para morder a mulher quando caísse no solo. Ela, calculando a sua melhor opção de fuga, recuou pouco antes da mordida cheirar o seu braço. 

Todavia, a sede de sangue continuava a queimar nas artérias da besta, foi com essa força que os seus dentes pontiagudos revelaram a língua de serpente que protegiam. 

Sem pensar duas vezes, o punho de Maria, notando a falta de atitude da dona, tomou as rédeas da batalha, cortando o ar até chegar ao rosto da besta, aos olhos do tempo não passou de um mero instante… Um ruído encheu a sala logo depois… Quando os dois caçadores olharam, a besta gemia na parede, tentando regenerar parte da cabeça… 

"Ela não é humana… Ela é acima de todos nós, um ser ainda mais forte que os Caçadores, desprendida das amarras que nos tornam produtos com datas de validade curtas…" 

Maria sorriu de orelha a orelha, tinha funcionado, por mais que parte de si ainda recusasse acreditar. Aquele, sem dúvida, seria um dia a recordar no portfólio da jovem.

— Terminou? — questionou ela enquanto na mente salpicavam ainda mais dúvidas do confronto. 

A cabeça de Michael rodou sobre a sala, os seus olhos notaram novas manchas vermelhas nas paredes monótonas. Pequenos objetos, quase todos despedaçados, pavimentavam o chão da mesma forma que pequeninas pedras de calçada. 

— Ele não está morto, consigo ouvir daqui a sua respiração. Talvez ainda precises de um pouco mais de treino no controle dos sentidos. — Suspirou quando viu o monstro mover-se para fora da parede e atribuir ao corpo a sua forma animalesca. — Lembra-te, tudo se bem moldado pode tornar-se uma arma, isso faz do conhecimento o poder mais forte no campo de batalha dos demónios…

— Eu… Eu consegui… — murmurou a jovem, evitando o foco nas palavras do companheiro — Não acredito que resultou. 

Por mais que o mesmo instante repetisse vezes sem conta na cabeça de Maria, o mundo continuava a girar, giro sobre giro, passo sobre passo, corria a besta, contudo recuou, algo tinha mudado.

— Começou… Agora sim vai dar trabalho… 

As palavras soaram em forma de eco para a mulher, fazendo-a recuperar o presente para si. Tinha de ser rápida a agir, aquela era a sua presa. 

Correu até negar a curta distância que os separava. Ela estava tão perto que sentia o cheiro mórbido de um corpo envelhecido que exalava cada vez mais dos pêlos de raposa. 

— Lembra-te da escola, só porque não fala não quer dizer que não pense. 

— Curioso, mas acho que a tua análise pecou em acertar o ensinamento. — A voz chegava distante ao ouvido de Michael, outro demónio, pensou o caçador instintivamente. Todavia quando os seus olhos buscaram pelo alvo encontraram apenas Maria de olhos arregalados e uma besta erguida pelas duas patas, como ela era alta. — Sendo sincero, eu não queria ter conhecido humanos de tamanha elegância numa situação tão penosa para mim. 

— Falar, o estágio final… 

Maria, seguindo o fluxo das palavras pelo ar, deu de caras num muro de incertezas que se estendia até ao limiar mais alto da sua ansiedade. 

— Vamos terminar logo com isto — soltou Michael com gotas de nojo na língua. 

A criatura, mal escutando a frase, lançou um olhar mortífero seguido de sons ásperos. 

— Eu não sei o que vos fiz, garanto que foi sem querer, mas gostava de sair daqui sem qualquer problema. 

Os olhos de Michael revidaram a tensão que corria entre ambos, igualavam a pequenos raios que explodiam em trovões irritados. Contudo, o maior terror vinha do coração da jovem, o seu alvo não era mais como um animal que vivia na barreira, tinha tomado um lado, um lado que transbordava em consciência. 

— Michael, ele é como nós, eu não consigo. — Maria recuou alguns passos. — Eu recuso-me a matar… a matar pensamentos… 

— Isto não passa de uma armadilha, achas mesmo que pode existir humanidade no coração deles? Nós não somos iguais, não somos e nunca seremos! — A escuridão encheu a sala, bloqueando portas e janelas e envolvendo o corpo do caçador numa aura forte. — Agora vamos terminar isto, de uma vez, e voltar para Luxemburgo. 

— Uma criança assustada e um velho rezingão, que sorte a minha. Talvez tenha tempo para ir comer um gelado quando terminar.

O calor, que florescia nas olhadelas, fazia o suor escorrer com tamanha fluidez que, mais uma vez, lembrava um rio procurando o mar vermelho que cobria o chão. Como agulhas monstruosas, as garras da besta brilhavam assim que correram pelos dedos, mesmo de longe notava-se as gotas de sangue que manchavam a mão felpuda. 

Um movimento, foi o que bastou para as sombras formarem um exército de escuridão e cavalgarem sobre o demónio. A besta acabou consumida num instante, uma negritude plena. Contudo, nada aconteceu, o seu corpo em vez de ser devorado parecia estar apenas a ser guardado para depois.

A criatura lançou cortes ao acaso, mesmo que não existisse um oponente que os seus olhos pudessem enxergar, até que a luz apoderou-se da sala, derrubando a escuridão para o solo. Todavia, aquela não tinha sido uma vitória dos raios que brilhavam da lâmpada, fora a escuridão que desistira do ataque. 

— Que divertido, uma bela distração para poderem escapar, começo a gostar do velho. — disse, com risinhos a escorrer pelos lábios, enquanto olhava pequenas manchas negras revelar um quarto vazio. — Espero que dure mais que estes coitados. — Deu alguns passos em frente, encarando as cascas sem vida deixadas pelo chão.



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