Possessão Brasileira

Autor(a): Matheus P. Duarte


Volume 1

Capítulo 7: Reiteração

Era a manhã do dia seguinte em que Mutsuki viu o vídeo da operação junto de Matheus. Ela se preparava mais uma vez para fazer seu costumeiro treinamento com Satsuki. Quando abriu sua porta, se deparou com a própria, prestes a bater para ser atendida.

Haha. Bom dia, Satsuki… — falou sem jeito.

Ora, vejam só. A menina virando mocinha... — respondeu com um olhar curioso.

Talvez por causa da noite passada, Mutsuki estava um pouco encolhida, forçando um sorriso, ainda que não fosse estranho dela agir assim quando estava sem graça.

O que foi? Já vai começar a se queixar antes mesmo de começar?

Não! Eu só me distrai. Vamos indo.

Assim se deu início a mais uma seção de treinamentos físicos, com a novata se mantendo pensativa durante toda manhã, disfarçando vez ou outra estar incomodada.

A alguns dias, ela começou a fazer musculação na academia, barra, abdominais e outros exercícios, resultando em uma forma física mais bem apresentável. De fato, estava até ajudando a descarregarem algumas coisas da van para a cozinha, isso sem ela se queixar do peso delas.

Asashio, onde deixo essas?

Deixe aí mesmo, depois eu tenho que separar tudo na dispensa. Obrigada, por causa disso o almoço vai ficar pronto já já.

Mutsuki assentiu, caminhou para a mesa e se debruçou sobre a ela, ainda com suas roupas de exercício. Asashio começou a cortar todos os ingredientes, dando umas piscadinhas em direção a distante Mutsuki.

Já está acostumada a morar aqui?

Hum…? Ah, sim. Vocês são muito generosas comigo.

Não precisa mentir…

Asashio permaneceu mexendo nas panelas, como se nada tivesse acontecido. Mutsuki, por outro lado, baixou seu olhar em direção ao chão.

Esses olhos eu conheço muito bem. O Matheus já deve ter mostrado alguma coisa pra você.

Mutsuki permaneceu quieta. Asashio caminhou até ela e sentou-se a sua frente. Com suas mãos, levantou o rosto da dela e a olhou nos olhos, então, com a ponta dos dedos, forçou-lhe um sorriso, apertando suas bochechas como uma criança.

Axaxiu! Nã me apeta axim!

Que fofa você fica quando sorri!

Asashio soltou ela, deixando marca de seus dedos em seu rosto corado.

Isso doeu! Eu não sou mais criança!

Nunca é tarde pra colocar um sorriso no rosto. Somos família agora, Mutsuki, pode falar de qualquer coisa conosco. Qualquer coisa.

Realmente, de forma bem contrária aos recentes acontecimentos, o clima mudou drasticamente. A flexibilidade emocional dela conquistou um sorriso de Mutsuki, o primeiro sincero em muito tempo.

Logo apareceu Yuudachi, que conseguiu ter um vislumbre do breve momento de felicidade.

Mutsukinha! Você brincando com a Asashio?! Eu quero também!

Yuudachi agarrou Mutsuki por trás, fazendo questão de se roçar e fazer todo tipo de mão boba que era capaz.

Yuudachi! Não morde minha orelha!

Salgadinha… Delicia!

Ah!! Que nojo!!

Asashio começou a rir da cena cômica. Alguns segundos se passaram e, antes que a brincadeira fosse longe demais, ela interveio com uma pergunta.

Não puxa meu sutiã! Machuca!

Cadê a Satsuki?

A brincalhona parou tudo que estava fazendo para que ela pudesse responder, deixando Mutsuki encolhida com as mãos a volta de seu peito, com a raiva estampada em seu rosto.

Ela disse pra mim no corredor que tava indo pro banho.

Faz tempo…

As duas se olharam com preocupação, transparecendo pela sala.

Alguma coisa de errada, gente?

Não necessariamente, só estou meio preocupada. Por que você não vai chamar ela pra almoçar?

Mutsuki ficou olhando interrogativa para ela.

Isso Mutsukinha. É hora de juntar Tone e Chikuma como as boas irmãs que são!

Ela se virou, franzido o cenho com o comentário.

Do que é que você tá falando?

Todo leme a bombordo! Velocidade máxima!

Yuudachi levantou Mutsuki da cadeira, a alinhou com saída e a ordenou, obviamente causando estranheza, mas a confusão falou mais alto e ela acabou cedendo aos comandos de sua amiga.

Yuudachi certificou-se de abanar Mutsuki ao virar o corredor, dai fechou a porta da cozinha e foi até Asashio que estava de volta as penelas.

Sinto pena dela — falou de cabeça baixa.

Eu também, a questão é que não podemos ficar escondendo as coisas dela pra sempre. Podemos precisar confiar nela em um momento como esse.

A comida seguiu fervendo sem mudar em nada a expressão de indiferença da cozinheira, por outro lado, Yuudachi falou por suas costas como se fosse uma dolorosa confissão, de punho cerrado e cabeça baixa.

Seria a coisa que eu mais odiaria nesse mundo.

Após alguns segundos Asashio olhou para a mesa da cozinha onde todos se sentavam e respondeu.

Eu também…

Em frente ao quarto de Satsuki, Mutsuki bateu e pediu licença. Não houve resposta. Com uma expressão de preocupação, girou a maçaneta.

Aquela era a primeira vez que entrava em seu quarto, por mais que morassem uma ao lado da outra. A escrivaninha estava coberta de livros, a maioria de medicina e biologia, todos espalhados. Sua cama estava desarrumada com o lençol tocando no chão. O pó era evidente em vários dos móveis que lá estavam. Até mesmo suas roupas de exercício estavam jogadas no chão imundo, carente de higiene.

Um som reverberava, o de água caindo do chuveiro. Por uma fresta na porta do banheiro, Mutsuki olhou para dentro, então descobriu Satsuki tremendo sentada em um canto.

O que aconteceu? — perguntou ela ao empurrar a porta.

Não consigo… Limpar…

Mutsuki olhou para os lados e pegou uma toalha que viu pendurada do outro lado da porta, então desligou o chuveiro.

Vem, eu te ajudo.

Não! — exclamou batendo o lado oposto de sua palma contra as mãos de Mutsuki que se aproximavam.

Eu mesma tenho que fazer isso.

Eu só quero ajudar. Você tá muito gelada — falou ao segurar seu ombro por um instante só para mais uma vez ser rejeitada.

A coisa que eu menos quero agora é alguém enchendo meu saco! Isso só me da mais vontade de fazer o que eu não quero.

Satsuki cruzou seus braços ao redor do peito como se tentasse conter seus movimentos, mantendo-se tremendo.

Você tem raiva… — falou Mutsuki olhando para o chão e continuou — Eu sei porque eu sinto ela todos os dias e isso me deixa triste, porque foi isso que destruiu minha vida.

Sua colega ao ouvir isso de repente parou de tremer e ficou um pouco em silêncio, até quebrá-lo com um pedido.

Pode me alcançar a toalha? — disse depois e respirar fundo.

Mutsuki saiu de seu estado pensativo e melancólico e restaurou um pouco o brilho nos seus olhos, o suficiente para fazer o que lhe foi pedido.

Ela pegou a toalha e rapidamente passou por seu corpo, só o suficiente para parar de pingar. A novata já ia saindo banheiro cabisbaixa, quando uma nova pergunta a impediu.

Te incomoda de ter feito o que fez? — falou se enrolando na toalha.

Não ouve resposta, apenas o silêncio e depois o som de passos indo em direção a porta.

Satsuki ficou olhando do banheiro ela sair corredor a fora e murmurou baixo — Você é mesmo ingênua.

No caminho de volta a cozinha, Mutsuki andou lentamente, olhou para o teto, para os lados e deu alguns suspiros. Com a mão prestes a abrir a girar a maçaneta, ela treinou um sorriso no rosto antes de entrar.

Voltei.

Como está a Satsuki? — perguntou Asashio que estava de costas para a entrada pegando os pratos na prateleira de cima do fogão.

Então, ela tá num daqueles dias, sabe, por isso tava demorando.

Entendi. Depois eu sirvo um prato pra ela.

Mutsuki coçou um pouco a cabeça, mas se manteve quieta mais uma vez.

Durante o almoço, se limitaram a comer sem conversar, e como esperado, Satsuki não veio e nem mesmo Matheus, por algum motivo.

Não perdendo tempo, começaram a nova tarefa do dia, no arsenal.

A prática havia melhorado muito sua precisão. O grupo de seus disparos agora era equivalente a uma mão aberta a cinco metros, nada impressionante, mas definitivamente suficiente para a maioria dos empregos.

Neste momento, estava aprendendo a limpar melhor sua arma bastante suja.

Viu? Passa a escova, limpa aqui, ali e depois é só passar óleo.

Após um bom tempo, a arma brilhava como nova.

Ah! Minha Mutsukinha tá crescendo! — exclamou Yuudachi, abraçando ela com ternura.

Não sei se fico feliz ou com vergonha… Só tô com uma dúvida. Como eu carrego essa arma comigo? Ela é grande.

Yuudachi começou a cantarolar com a boca fechada e foi para fora do estande por alguns minutos. Quando voltou, carregava consigo uma bolsa feminina.

Aqui está a solução, minha jovem.

É bem discreto. Achei bonito essa cor cinza meio azulada — disse inspecionando o objeto.

Gostou? Escolhi pra combinar com seus olhos. Só vai ficar meio ruim pra sacar rápido. Quando tivermos tempo pra treinar armas de porte velado, a gente pensa em outra coisa. Dá uma olhada no que fiz.

Ela pegou a bolsa e abriu, mostrando um fundo falso costurado nela, junto de encaixes para carregadores e um pequeno compartimento que dá para o lado de fora da bolsa.

Ué… Pra que eu vou querer outro buraco que não o fecho?

É pra você conseguir tirar sua pistola sem levantar suspeitas. Eu coloquei uma capa rígida e uma mola dos dois lados da bolsa. Quando você aperta esse broche, um buraco aparece, grande o suficiente para você conseguir puxar a arma.

Que nem nos filmes de espionagem?! Que nostálgico!

Seus olhos brilharam como uma garotinha que ganhava um brinquedo novo.

E não para por ai! O broche é em formato de navio, nesse caso o IJN Chikuma!

Hum… O que é esse tal de “IJN” e por que tem meu nome mesmo?

É a sigla para “Marinha Imperial Japonesa” e Chikuma foi um cruzador pesado que serviu na segunda guerra mundial.

Você é mesmo fã dessas coisas, né… Me conta uma coisa, onde você aprendeu a costurar desse jeito?

Yuudachi se espantou por algum motivo, olhou para o lado e coçou a cabeça antes de responder.

É que eu morava em um orfanato…

Mutsuki recuou um pouco ao ouvir estas palavras e fechou seu rosto outrora alegre.

As coisas lá precisavam durar, então, quando eu fiquei mais velha, as freiras me ensinaram. Acabou que eu gostei bastante. Os mais novos ficavam toda hora na minha volta pra costurar os bonecos deles.

Ela parecia bastante entusiasmada ao relembrar de seu passado, como quando alguém fazia aniversário.

Você parece gostar muito de crianças, Yuudachi.

A companheira de Mutsuki mordeu seus lábios com um certo amargor e desviou o olhar, então se virou de volta para a entrada e, de costas, respondeu.

Não… Eu as odeio mais que tudo…

Mutsuki chegou a levar a mão em direção a ela e a abrir a boca, mas hesitante, recorreu, novamente, ao silêncio e a deixou ir.

O dia estava prestes a chegar a seu fim. Mutsuki estava em sua cama, olhando para o teto, com um livro sobre armas sobre seu peito, o qual possuía um marcador com a foto de Yuudachi. Estava tarde, de modo que ela não deveria estar acordada, não para seguir com sua rotina de treinamento.

Após algum tempo, ela se sentou na cama e olhou para os arredores. Quando finalmente se levantou, foi até o banheiro lavar o rosto e beber um pouco de água. Um som não muito alto foi ouvido do corredor, chamando sua atenção.

Quando abriu sua porta, pôde ver o quarto de Asashio levemente aberto com a luz ligada, então caminhou para ver se o som vinha dali. Sua dona não estava lá.

O quarto era estranhamente simples e muito bem organizado. De tudo que estava lá dentro, somente se destacava um coldre pendurado na cabeceira de sua cama, com uma pistola e uma faca presos a ele.

De lá, Mutsuki saiu em direção a cozinha, o lugar onde via Asashio com mais frequência. A falta de um barulho era algo incomum de se ver dentro daquelas paredes.

Um pouco antes de chegar a seu destino, vozes podiam ser ouvidas do corredor, ainda que baixas, embora não parecessem quererem disfarçar.

Respira… Um, dois… Um, dois.

Os gemidos de uma mulher reverberaram de forma angustiante, somado a uma respiração ofegante.

Mutsuki acelerou o passo, mas quando estava prestes a abrir a porta, ouviu uma frase que a impediu.

Eu não quero que as outras me vejam assim…

É, eu imagino… Quer mais gelo? Não faz mal se queimar um pouco.

Eu acho que vou matar alguém…

Segura minha mão.

Pelas vozes, Asashio e Matheus estavam lá. Mutsuki ficou ouvindo. Lá dentro, ambos estavam sentados na mesa, com ela segurando uma pedra de gelo em sua mão esquerda e a dele com a direita.

Se fizesse isso, como faria?

A Sagiri te pediu pra fazer isso comigo?

Não necessariamente, é que temos a mesma profissão.

Não disse que foi soldado?

Fui várias coisas, até pessoas diferentes… Pode se abrir comigo. Não tem como você falar algo que vá me impressionar.

Asashio respirou fundo algumas vezes e prosseguiu, apertando ainda mais a mão que segurava.

Eu… Começaria cortando seus tendões para não revidarem, depois, sem pressa, minha faca iria de unha por unha, dedo por dedo.

Tratamento legal de se aplicar em um criminoso de guerra.

Ha… Ha… Hahaha.

Asashio ria e gemia de forma não humana, desprovida de qualquer empatia, como quando uma criança se diverte arrancando as asas de um inseto.

Seu corpo ficou mais relaxado e os picos de tremedeira que tinha foram ficando cada vez mais distante dos outros.

Isso, Asashio, muito bem. Enquanto manter isso dentro de sua cabeça, as coisas se mantém nos conformes. Como você se sente agora?

Me sinto péssima… Até quando eu vou lutar contra minha própria vontade, combatendo dia a dia contra mim mesma?

Até o dia em que parar de lembrar de si mesma. As garotas gostam muito de você e eu também. Continue assim e vai ver que vai ficar cada vez mais fácil se distrair. Não é nada demais, apenas mais um dia ruim.

Mutsuki voltou para seu quarto melancólica após estas últimas palavras, cuidando seus passos para não fazerem barulho. Lá, atirou-se sobre a cama de forma a olhar fixamente para o teto por alguns instantes, então seus lábios se abriram.

— “Encontrar a luz onde ela não existe”…?

Depois disso, seus olhos se fecharam e ela dormiu profundamente.

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