Possessão Brasileira

Autor(a): Matheus P. Duarte


Volume 1

Capítulo 6: Aqueles que Caminham Pela Noite

Em um lugar sombrio coberto pela névoa e o silêncio da noite, um vulto andava por entre alguns prédios que pareciam ser armazéns de um porto. Ele adentrou um dos becos de lá e se encostou na parede, então observou cuidadosamente o caminho de onde veio. Pouco depois ajeitou seu capuz e seguiu até uma porta no final dos prédios. Um homem veio atender as batidas na porta, por meio de uma pequena janela.

Tá atrasada.

Eu sei. Tive que garantir que ninguém me seguiria.

Alguns segundos depois, pode-se ouvir o som da porta destrancando. Logo em seguida, a luz iluminou Kasumi, que estava encapuzada com um moletom e uma bolsa grande em mãos.

Entra, sem barulho.

O lugar se tratava de um galpão imenso com vários contêineres espalhados, transformando ele quase em um labirinto. Até mesmo o cheiro no ar lembrava o de ferro e ferrugem.

O rapaz, como poderia ser chamado, meio desengonçado, vestia-se bem ao estilo de um capanga de um filme, com uma touca e roupas escuras.

Os patrões já vão começar. Não pensava que te veria de novo depois do que aconteceu.

Sabe como é, só precisa ter os contatos certos.

Devem ser contatos muito bons mesmo. Conseguiram te tirar da prisão e tudo.

Kasumi ficou olhando os arredores e não fez questão de dar contato visual para ele, até falar aquilo.

Koharu — falou ela sem transparecer nenhum sentimento em particular.

O que foi?

Corra pra bem longe...

Os olhos dela se tornaram afiados como navalhas, capazes de causar calafrios no jovem. Ele engoliu seco e saiu, sem fazer perguntas.

Kasumi caminhou pelos corredores buscando por algo, acompanhada de ninguém além do som discreto de seus passos.

Em um lugar bem mais distante da entrada, um grupo de homens estavam abrindo alguns dos contêineres e transportando caixas, todos eles armados.

Vendo aquela cena, Kasumi colocou o dedo em uma escuta que tinha em seu ouvido.

Viu isso, Asashio?

Fuzis, coletes a prova de balas e tudo em grande quantidade, bem como aquela sua fonte disse. Logo os outros chegarão até você, seja paciente.

Dentre todos que estavam lá, uma mulher permanecia de braços cruzados, sentada sobre algumas caixas fumando um cigarro. Suas feições eram glamurosas, com batom vermelho e lápis nos olhos e suas roupas lembravam a de uma secretária, só que mais refinada.

Aquela que observava o desenrolar dos acontecimentos deu uma grande importância para ela, até mesmo vestindo uma expressão de desgosto.

Consegue identificar ela pela minha câmera? É quem eu penso que é?

Sim, trata-se de Hisen.

Ao ouvir isso, mordeu os lábios com força, ao ponto de sair sangue.

Querida, desculpe não poder estar com você.

Essas palavras acalmaram Kasumi, fazendo-a começar a respirar profundamente algumas vezes.

Não, eu vou ficar bem.

Alguns minutos se passaram e uma movimentação aconteceu. Alguns dos capangas correram para abrir uma das entradas do armazém, dando passagem para uma van entrar. Dela, um homem de meia idade com cabelos ralos, vestido com um terno, desceu.

Com certeza ele é Shinohara.

Aquele que estávamos atrás?

Sim, o dono daquela agência de talentos.

Hisen caminhou estalando seus saltos altos até ele. Enquanto o fazia, os comparsas dele abriram as portas da van e trouxeram algumas caixas, mas, principalmente, duas mulheres encapuzadas e amarradas.

Boa noite, Hisen. Como tem passado?

Antes de responder, tragou seu cigarro e soltou sua fumaça em direção a Shinohara que não pareceu se importar.

Vou bem, velho amigo. Gostei das mercadorias do outro dia, elas tem animado bastante as minhas festas, mas direito ao ponto. O que você tem para mim hoje?

Trago boas especiarias, ao gosto de seus clientes, posso garantir.

As mulheres foram posta de joelhos, uma do lado da outra, com ele apontando para elas como se fosse uma vitrine, de maneira convidativa a Hisen.

Ambos caminharam para inspecioná-las. Shinohara fez questão de dar uma boa explicação.

Deixe-me apresentar meus produtos — disse ele antes de retirar o capuz da primeira — Esta é Misaki, dezoito anos.

A garota possuía olhos e rosto inchados, embebidos em lágrimas e estava amordaçada. Ela se mantinha tremendo, mas era difícil dizer se era medo ou o frio do chão.

Bonita, corpo volumoso, belas pernas… Interessante…

Não, o mais interessante é sua história. Ele tinha um namoradinho. Quando ele descobriu que estava grávida, fez questão de abandoná-la e sua mãe fez o mesmo. Você tinha que ver o rosto de choro dela quando a encontrei vagando com fome na rua. Hahaha.

Os dois gargalharam como se tivessem ouvido a piada de um palhaço.

É hilário imaginar o quão frustrada ela está. Mas e quanto a esse extra que ela carrega?

Shinohara abriu um sorriso lentamente, sem mostrar os dentes e respondeu — Ora, não posso dizer o que fazer com sua mercadoria.

Veremos… Vamos ao próximo.

Ao lado dela, a outra garota começou a grunhir. Shinohara mudou sua atenção para ela, tendo em vista que a mesma havia despertado o interesse de sua cliente. Depois de colocar suas mãos sobre seus ombros, ele falou para ela.

Você é a estrela da noite. Alegre-se, sua hora chegou.

Com estas palavras, ele retirou o manto que cobra o rosto da jovem. Era uma menina propriamente dita, não devendo ter mais que quatorze anos.

A um mês ela me procurou em minha agência. Disse que queria se tornar uma ídolo para conseguir dinheiro para criar os dois irmãozinhos menores dela. Começamos apenas com umas fotos, mas aos poucos, a sem vergonha foi se soltando. Foi dela que compartilhei as fotos com você.

Ah, eu me lembro bem, a virgem. Linda, pura e ingênua… Vou pagar o dobro.

É sempre bom fazer negócios com você, Hizen. Sabe, não me importaria em visitar um dos seus estabelecimentos, quem sabe até beber com você.

Haha, como poderia dizer não? Ficaria muito feliz com sua companhia.

Dito isto, ambos apertaram as mãos e selaram o destino das duas garotas desoladas, confusas, que, com certeza, não podiam imaginar o destino cruel que lhes aguardava.

Hisen fumou mais uma vez seu cigarro e quando terminou chamou seus homens.

Levem-nas para um dos carros, nós já vamos.

Kasumi que estava deitada sobre um dos contêineres em prontidão estalou a língua e imediatamente levou sua mão a orelha.

Precisamos agir agora!

Já estamos.

Em um piscar e olhos, as luzes se apagaram. Todos ficaram apreensivos, apontando suas armas para a escuridão e acendendo suas lanternas. Após um momento de silêncio um dos capangas olhou para Hisen, a qual acenou apontando sua cabeça para frente. Ele então fez um gesto com a mão e mais alguns de seus companheiros o seguiram.

Entre o breu dos corredores, o pouco que entrava de luz através da lua refletia no cano das armas, apontadas para todas as direções, incluindo a parte de cima dos contêineres. Em uma bifurcação, eles se dividiram.

Dois homens caminhavam em direção aos disjuntores. Passo por passo, eles se esgueiravam entre as esquinas, até verem algumas faíscas saindo de um painel na parede. Quando um deles chegou mais perto, o outro, mais atrás, foi sugado para dentro da sombra em suas costas, sem vestígios.

Parece que cortaram os…

Ao se virar, uma faca foi enfiada em sua garganta, antes que pudesse terminar sua frase. Matheus o deitou lentamente no chão, enquanto terminava de agonizar.

Outro grupo caminhava em um corredor, até chegarem a um beco sem saída. Lá, uma boneca segurando uma carta estava escorada no seu final.

A dupla caminhou e o mais a frente a segurou em mãos, com um som de Click podendo ser ouvido.

O que diz aí?

Prazer amigos…

Um olhou para o outro, então uma explosão engoliu os dois.

Um capanga que estava mais próximo, correu para ver o que estava acontecendo. Ao virar o corredor em direção a explosão, ele parou no meio do caminho e ficou olhando para o nada. Em questão de segundos, sua cabeça rolou pelo chão. Sangue podia ser visto manchando um fio brilhoso, exatamente na altura de seu pescoço.

Mais um homem que caminhava logo atrás, vendo seu amigo morrer de forma súbita, recuo e ficou de costas para um contêiner, sendo imediatamente eletrocutado, o suficiente para espumar pela boca e sair fumaça de seus cabelos.

Aquele que estava liderando o grupo antes de ser dividido havia voltado para onde Hisen estava e viu apenas alguns poucos capangas, os mesmos que haviam ficado para trás para proteger ela e Shinohara.

Têm algo errado. Precisamos sair daqui imediatamente, senhora.

Completando sua frase, mais uma explosão foi ouvida, desta vez em seu próprio caminhão, engolindo alguns deles em chamas, transformando o lugar outrora escuro em um show de fogos.

Os remanescentes, abriram fogo em direção da onde veio o disparo que resultou naquilo.

Kasumi descartou seu lança-foguetes e pulou se cima do contêiner onde estava. De dentro de sua bolsa, retirou uma submetralhadora APC 9 e abriu seu moletom, removendo-o, expondo um colete tático com alguns carregadores.

Levando a mão ao ouvido, ela disse — Consegui chamar a atenção toda deles pra mim. A hora de entrar é agora!

De uma posição vantajosa, Matheus disparou contra a multidão que disparava contra Kasumi, resultando em duas baixas.

Naquele ponto, Hisen e Shinohara correrem em direção a uma saída nos fundos, deixando para trás a maioria dos últimos de seus homens e até as jovens que estavam sendo vendidas.

Nos fundos do armazém, o líder dos seguranças liderava o caminho para tirar ambos eles de lá.

Hisen, onde está seu carro?

Ambos não estavam com medo, mas com raiva, especialmente Hisen.

Como eles ousam?! Eu vou fazer questão de fazê-los gritar enquanto eu arranco suas unhas!

Teremos tempo bastante para pensar nisso, mas agora precisamos fugir!

Um carro estava esperando no estacionamento logo a frente deles. Quando seu último homem abriu a porta de trás para eles, o carro começou a ser metralhado. Como estavam no banco de trás, tiveram tempo para se abaixarem, entretanto, sua escolta não teve a mesma sorte e pedaços de carne e sangue saltaram através do vidro agora quebrado.

Quando os disparos pararam, a pessoa que estava atrás do cano fumegante do fuzil M27 era ninguém menos que Satsuki. Ela deixou o carregador de cinquenta tiros cair e retirou de seu colete um tradicional para recarregar.

Ao se aproximar lentamente do carro esfumaçado, olhou para o corpo repleto de buracos de balas, e com a mão fraca tentou abrir a porta de trás, mas foi arremessada com força no chão, jogando sua arma para longe.

Shinohara havia sobrevivido, ainda que tivesse sido atingido no estômago.

Então você é uma das responsáveis por isso?

Antes de dar tempo dela sacar sua pistola, ele avançou com velocidade sobre-humana, agarrou seu pescoço e a ergueu no ar.

Vá na frente, Hisen. Eu vou terminar com essa daqui — falou para a mulher que estava se arrastando para fora do carro.

Sem resposta, ela fez exatamente como pedido, correndo por entre os diversos prédios de forma desengonçada devido ao seu salto alto e desaparecendo nas sombras.

Já viu muitas mulheres, algumas inocentes, outras mais arrogantes, mas nunca uma com culhões para usar uma metralhadora e matar a sangue frio. Quem é você?

Ele baixou um pouco Satsuki, o suficiente para ela tocar com os pés no chão. Foi a oportunidade ideal para ela retirar a faca da cintura como um raio.

O golpe cortou a lateral do rosto de Shinohara, desde o queixo até pouco abaixo de seu olho esquerdo, o suficiente para largá-la.

Desgraçada! — falou enquanto cobria sua ferida com uma das mãos que escorria sangue por entre os dedos.

Quem disse que queria sua piedade? Você é só um animal imundo com um corpo vendido ao demônio. Um material de estudo tão nojento quanto um verme.

Satsuki, não era mais a mesma. Suas mãos estavam cruzadas a sua frente, como se apoia-se elas sobre uma bengala ou cajado, seu queixo levantado como se olhasse para um inseto e sua voz cheio de indiferença por quem estava a sua frente.

Shinohara deixou de lado sua frustração e olhou para ela com curiosidade, mesmo admiração.

Você é um de nós…? Sua presença é muito confusa. O que é você?

Satsuki correu a altíssima velocidade para continuar esfaqueando seu inimigo. O mesmo, porém, estava preparado e conseguiu se desviar. De seu calcanhar, ele retirou um canivete e se colocou em posição de luta.

Ela aceitou o pedido e o deixou vir pra cima. As lâminas se cruzaram, deixando as faíscas iluminarem a escuridão, revelando o desfecho mortal daquele embate. Pouco a pouco, Shinohara era cortado, isso porque conseguia desviar os ataques de seus pontos vitais.

Cada vez mais encurralado, aceitou tomar uma facada para empurrar Satsuki contra uma cerca que separavam o porto do oceano, resultando em seu entortamento. A jovem não podia retirar a lâmina por causa dele a manter apertado contra seu estômago e nem escapar por estar erguida do chão. Dando um salto, ele a arrastou tentando arremessá-la para o outro lado, mas ela conseguiu no último instante enfiar o dedo da mão que segurava o braço de Shinohara na ferida aberta em seu rosto e dai se livrou chutando o exato mesmo lugar onde ele havia sido baleado.

Quando se separaram, Satsuki cuspiu sangue enquanto se apoiava na cerca e Shinohara aos poucos se levantou do chão com uma expressão de dor e sua em volta do abdômem.

Você tem o poder de nós, mas mantêm um corpo humano… Jogou sujo, mas acabou de ganhar meu respeito. Esperarei ansiosamente que aprenda alguns passos de dança para nosso próximo encontro.

Com um breve aceno de cabeça, ele caminhou cambaleante para longe de Satsuki que estava prestes a perder a consciência.

// — // —

As luzes da sala se ligaram, fazendo a mulher que observava a tela se lembrar que estava ali.

O lugar era o escritório de Matheus e seus ocupantes eram o próprio e sua acompanhante, Mutsuki. Ele estava levantado, enquanto ela permanecia sentada.

Aqui, tome um pouco d´água — disse ele lhe oferecendo uma garrafa.

Obrigada.

Ela tomou um gole bem demorado, ao mesmo tempo que Matheus puxava uma cadeira para ficar frente a frente, com as mãos apoiados sobre o encosto.

Essa operação foi a primeira em que elas participaram. Conseguimos resgatar as garotas sequestradas por eles, mas não os capturamos. Satsuki quebrou uma costela e sofreu ferimentos internos. Foi também a primeira vez que usou sua possessão em combate.

Mutsuki permaneceu de cabeça baixa, olhando para o chão.

Yuudachi faz armadilhas, tipo brincadeiras, como pôde ver com os fios e a boneca. Kasumi não se destaca em nada específico, mas fica bastante violenta quando possuída, por isso evita, aliás, é bem difícil dela perder a calma. Asashio… Bom, ela sempre está cuidando de nós.

Como uma pessoa consegue fazer essas? — perguntou ela em um tom deprimido.

Matheus levou sua mão ao queixo dela, levantou o rosto dela e a olhou nos olhos.

Matar? Bem... Eu particularmente me alegro quando desgraçados como eles vão pro inferno.

Ele soltou seu rosto e limpou o sorriso perverso de seu rosto.

Cada um tem um jeito de lidar com isso. Alguns usam da comédia, outros só fingem gostar, mas o importante é que fazem o que precisam fazer. Usar sua personalidade possessa consegue deixar tudo mais fácil, a questão é que sempre há esse outro Eu sussurrando em seus ouvidos te pedindo por cada vez mais.

Como… Como pode ter algo assim dentro de mim? - falou olhando para suas mãos.

Se quer saber a origem, então ninguém tem uma resposta. Demônios sempre existiram, mas só vocês são casos documentados de possessão e mal faz um ano que as conhecemos. Agora, se quer saber como a escuridão está em você, é porque sempre esteve. Quando odiou seus pais por não darem o brinquedo que queria. Quando sentiu inveja de algo que os outros tinham e você não. Quando, por ventura, sentiu tanta raiva que quis matar alguém. A única mudança, foi a intensidade.

Mutsuki olhou para os arredores sem um rumo específico, com um olhar reflexivo.

Está dizendo que somos iguais a eles?

Todas as pessoas têm um potencial imenso para se corromperem. Qual o sentido de seguir vivendo, se no fundo somos todos falhos? Levante-se, Chikuma.

Matheus tomou a mão de Mutsuki para ajudá-la levantar. Quando estava de pé, ele cobriu a mão dela com a outra e olhou diretamente em seus olhos, com um sorriso tão melancólico como o de um réu no corredor da morte.

A beleza da vida é justamente encontrar a luz onde ela não existe…

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