Possessão Brasileira

Autor(a): Matheus P. Duarte


Volume 1

Capítulo 5: Uma Nova Vida

O relógio despertava as seis horas da manhã, junto com os primeiros raios de sol e o cantar dos pássaros que eram incapazes de chegar a dona do quarto escuro.

Mutsuki se revirou com dificuldade na cama, de cara fechada, afagando suas panturrilhas e gemendo, até conseguir sair dela . Há muito tempo levantar cedo era parte de sua rotina por conta de seus estudos, mas nos últimos dia deu-se por conta do treinamento que estava recebendo.

Vagarosamente, ela vestiu sua roupa de exercício, caminhando até o banheiro com ombros encolhidos, só para escovar os dentes e atirar um pouco de água fria em seu rosto. Feito isso, sentou-se na cama para calçar seus tênis e foi quando foram ouvidas batidas em sua porta.

— Mutsuki, já está na hora.

Ela não respondeu, apenas terminou de fazer o que estava fazendo e caminhou sem presa para a saída. Por trás da porta, Satsuki estava escorada na parede de braços cruzados, com um olhar severo olhando para ela.

— Vamos? — perguntou Mutsuki sem se importar com o peso do olhar, mas mantendo na mesma sua expressão de desgosto.

As duas saíram do bunker e começaram a correr pelos corredores do prédio que ficavam logo acima, com Satsuki liderando.

— Satsuki, por que esse prédio tá vazio mesmo?

— Concentre-se em seu treinamento.

Mutsuki deu um riso sem jeito, aparentemente tetando disfarçar seu desconforto com resposta.

Sua acompanhante estalou a língua e reforçou sua expressão pouco amistosa, mas acabou por ceder aos caprichos da novata.

— Era pra ser uma escola. Por um tempo, a cidade crescia bastante para este lado e dai começaram a construí-la. Acontece que a construtora teve uns problemas e as obras atrasaram. Por fim, quando finalmente ficou pronta, já não era mais necessária. Acaba que ela serve muito bem para nós ficarmos longe dos olhos dos outros.

Desde que estava lá, Mutsuki havia sido dada como foragida e uma verdadeira caça as bruxas foi montada para encontrá-la, tornando impossível dela aparecer em público.

O escola fornecia um local bastante interessante para se exercitar, uma vez que não existiam professores para impedir de correrem pelos corredores. Eles eram retos e longos e as escadas ofereciam um obstaculo interessante para complementar.

— Faz… Sentido… — respondeu ofegante e continuou — Mas… E o bunker?

— O Matheus não te explicou sobre nós ainda?

— Bom... Ele só me perguntou seu eu me sentia bem… E… Mais uma coisas estranhas… Ele quer falar comigo hoje…

— Uma hora ele vai te explicar tudo, por hora, concentre-se em não me atrasar mais do que está fazendo.

Mutsuki franziu o cenho, mas não ofereceu resposta, apenas continuou correndo os lances de escada que precisava.

O trajeto não era particularmente longo, mas era extenuante. Ela suava e ofegava intensamente, mesmo que suas mãos já estivessem apoiadas em uma parede ao lado da entrada do bunker e sua seção tivesse terminado.

— Vamos. Se o seu corpo esfriar, tudo fica mais difícil.

Satsuki foi na frente, deixando sua colega com o som da própria respiração e sua tremedeira nas pernas.

Seu banho dava apenas um pingo de alivio antes de seguir para o restante das atividades do dia. A água batia em seu em seu corpo como gotas em uma frigideira quente e ela dava breves suspiros, quase como se fosse uma canção.

Mesmo recém saída do banho, podia ouvir uma certa voz. Do lado de fora, Yuudachi a esperava, cantarolando como uma criança.

— Mutsu Mutsukinha! Mutsu Mutsukinha!

Mutsuki abriu a porta e ficou olhando com intriga ela cantando e dando alguns saltos em direção ao fundo do corredor, como na amarelinha. Pouco tempo depois, ela deu um último salto, virando-se para trás de braços abertos.

— Mut Mut! O que achou da minha performance?!

— O que? Você sabia que eu tava te vendo?

— É claro! Pude ouvir uma leve corrente de ar ao abrir sua porta e uma mudança no eco do lugar.

— Sério?!

Yuudachi sorriu com elegância e deu uma piscadinha com seu olho esquerdo, em um rara demonstração de maturidade.

— Alegre-se IJN Chikuma, você irá a guerra!

Dito isso, ela marchou em direção ao quarto no final do corredor, o qual deveria pertencer a Matheus.

Sem bater, ela entrou. Lá estava ele, sentado em uma mesa com um copo estranho e uma garrafa térmica em mãos.

Más que barbaridade, Tchê! — exclamou em português, ao contrário do japonês que todos falavam — Invadindo o quarto dos outros sem permissão!

— Bom dia, Matheuso! Vim aqui batizar a novata. — disse Yuudachi colocando seus dedos em forma de V em um dos olhos.

Ele ficou sério, como se estivesse diante do desafio de sua vida, estufou o peito, ergueu o queixo e levantou-se da cadeira, carregando o copo estranho forrado com couro na mão e sua garrafa térmica embaixo do braço, lentamente indo em direção a Mutsuki. Frente a frente com ela, a jovem vestiu um olhar convicto em seu rosto, ainda que sua postura estivesse enrijecida, e o olhou nos olhos, então, ele encheu o copo com um pó verde dentro com o que parecia ser água e ofereceu a ela.

— Beba devagar, está quente…

Ela colocou os lábios no canudo de ferro que havia e tragou o liquido devagar. Por alguns instantes, ficou com os olhos fechados, fazendo uma cara feia, até finalmente beber tudo.

— Que amargo. O que era isso?

Mate ou Chimarrão, depende de qual lado da fronteira você é.

— Você não é mesmo japonês, né?

— Brasileiro, nascido, criado... e morto.

— Morto?

Matheus ficou com uma expressão muito diferente, como se estivesse olhando para algo distante. Isso ativou instintivamente em Mutsuki um reflexo que a colocou na defensiva.

— Não ligue pra isso. Ele só teve um dia ruim e gosta de provocar os outros com coisas que só nós entendemos — falou ele parecendo estar na terceira pessoa.

— Nós?

Matheus deixou Mutsuki visivelmente curiosa, mas Yuudachi parecia bastante tranquila, fazendo-a relaxar aos constatar este fato.

— Queria muito estar com vocês, mas terá que ensinar ela sozinha, Mogami. Quanto a você, Chikuma, ainda teremos nossa consulta, então não se atrase.

Assim, ele virou as costas e foi embora de seu quarto.

— Que diabos foi isso?

— Então, Mutsuki. Tá lembrada de que você disse outro dia que as vezes se sentia como se não fosse você mesma? Chamamos isso de possessão. Ele aparentemente têm uma variação disso. Enfim, deixa eu te mostrar o lugar. De um jeito ou de outro, o Matheus é a melhor pessoa pra te dar detalhes desse assunto.

Ainda com lampejos de confusão, ela olhou para o restante da sala e pode ver uma parede cheia de armas fechadas por uma grade.

— Como é? Mas aqui não era o quarto dele?

— Com toda certeza e esta é a prova.

A novata arregalou seus olhos e abriu sua boca, incrédula. Na parede e em diversos compartimentos estavam, pistolas, rifles, espingardas e até metralhadoras alimentadas por cinta. O cheiro de pólvora e aço fazia o lugar parecer mais uma armaria do que o quarto de uma pessoa.

— Lugar interessante para esconder o arsenal, não acha? Bem na frente dos olhos de todos e ainda mais próximo dos olhos dele.

— Ele não bate muito bem, né?

— Nenhum de nós bate! Hahaha!

Yuudachi foi rindo até a escrivaninha de Matheus, onde pegou um molho de chaves. De lá, foi para abrir uma das diversas seções das grades, a qual estava repleta de armas curtas.

— E ai? Qual delas achou mais bonita?

Mutsuki chegou mais perto e apertou os olhos, dando uma boa vista de cima a baixo e perguntou — Eu nunca estive tão perto de uma antes… Não sei nem dizer a diferença entre uma e outra.

— Sabe pelo menos a diferença entre um revolver e uma pistola?

Mutsuki apenas deu uma risadinha sem jeito e coçou a cabeça.

— Aff! Tá, eu vou escolher uma pra você.

Dentre todas, Yuudachi escolheu uma pistola Rock da PSA.

— Tecnicamente, eu começaria muito leve com você, mas não dá pra saber quando vai precisar entrar em combate, então vou te treinar pra operar essa e essa apenas. Se tivermos tempo, eu te ensino mais uma coisinhas.

Logo em seguida, as duas sentaram ao redor da mesa de Matheus, com Yuudachi demonstrando aspectos de segurança, operação e manuseio daquela arma, os quais Mutsuki absorveu sem muita dificuldade, aliás, sua escolha foi com certeza foi feita justamente por isso.

— Agora eu vou te ensinar a atirar.

— E como a gente vai fazer isso? Digo, essa coisa faz barulho, né?

Yuudachi deu algumas palminhas, parabenizando o raciocínio, então caminhou com o molho de chaves em mãos até um armário que havia na sala, só para mostrar a Mutsuki que não era um qualquer. Por trás de sua portas, estava um corredor que dava para uma pequena sala em questão de diâmetro, mas bem longa, com uma divisória vertical e outro horizontal logo a sua entrada, servindo como mesas.

Mutsuki ficou olhando a sala, enquanto Yuudachi voltava ao arsenal, pegando várias caixas de munição e carregadores em seus braços.

— Aqui — disse ela jogando as coisas sobre uma das mesas — 100 tiros deve dar. Pega os carregadores, eu te mostro como carrega.

Yuudachi pegou algumas munições para ilustrar pra Mutsuki o processo e depois a devolveu para que fizesse sozinha.

— Entendi como se faz, mas quantas balas eu coloco?

— Já coloquei três, então falta vinte.

— Vinte?!

— Munições 5.7 são bem finais, então vai bastante delas. Fazem o serviço, baixo recuo... Perfeito pra treinar gente como você, o que não quer dizer que pode sair atirando como louca só porque tem bastante.

Tudo pronto, foi a vez de treinar a pontaria.

— Pega ela, se concentra e tenta…

Mais algumas instruções vieram até dar seu primeiro tiro em direção a um alvo de papel que surgiu depois de Yuudachi apertar um botão na lateral da divisória.

— Não, você colocou muita força na hora de puxar, tem que compensar desse jeito…

Mais um tiro foi dado, depois outro, depois outro e assim até o exercício finalmente terminar, com Mutsuki pelo menos conseguindo acertar o papel, que era do tamanho de uma pessoa adulta.

— Ah, Mutsukinha… Você se divertiu pelo menos?

— Não… O barulho, o peso dela, o cheiro depois dos tiros… Eu não consigo me sentir bem com isso… — falou vendo o reflexo de seu rosto entristecido sobre o aço da arma.

— Que pena, ia ficar tudo mais fácil e eu teria mais uma amiga pra brincar — suspirou a garota simulando estar limpando as lágrimas de seus olhos e continuou — Vamos parar por aqui, só acho que você precisa falar disso com o Matheus. Se tem qualquer dificuldade, ele pode ajudar.

— Certo, eu preciso me encontrar com ele de qualquer jeito — disse ela largando sua arma e o equipamento de proteção.

Yuudachi, que estava com uma vassoura limpando as capsulas de munição do chão, recebeu uma agradável surpresa. Mutsuki a envolveu com os braços, em um abraço que a pegou totalmente de surpresa.

 — Obrigada por me ajudar. Eu gosto muito desse seu jeito fofo!

Mutsuki, pela primeira vez desde que chegou lá, fez uma demonstração sincera de afeto, aos moldes de quando estava com Mika e Kanae. De fato, deixou Yuudachi vermelha, sem saber como reagir.

Depois de se despedir, seguiu para sua próxima parada, o escritório de Matheus.

Diante da porta, bateu algumas vezes antes de abri-la, mesmo sem uma resposta.

— Chegou em boa hora. Entre e feche a porta.

Assim, Mutsuki voltou a ocupar novamente o lugar em que estava em seu primeiro dia.

— Acho que devo algumas explicações, a começar pelo que aconteceu na naquela noite.

Mutsuki enrijeceu e se reclinou na cadeira.

— Desde quando você começou a se sentir fora de si, Chikuma?

— Hum… A uma semana. Minhas colegas reclamaram disso depois de um trabalho para o colégio.

— E sobre o que era?

— Era sobre um filme de guerra…

Mutsuki de repente ficou em silêncio por alguns instantes e continuou.

— Achamos que estava bom, mas ai o professor começou a falar mal depois de termos entregado ele, dizendo que a ideia era usar a ficção junto realidade…

Ela levou as mãos a cabeça, como se estivesse com dor.

— Você está bem?

— Eu não me lembro de quase nada depois disso. Quando me dei conta, estava caminhando na calçada com minhas amigas.

Rapidamente ela voltou ao normal, embora sua expressão determinada tivesse dado lugar a de melancolia.

— Qual era o nome do filme?

— Lágrimas do Sol.

Matheus começou a rir brevemente, mas logo voltou a ficar sério.

— É um bom filme… Olhe o que você fez

Mutsuki começou a se encolher e tremer em sua cadeira, se assustando com a própria reação, entretanto, seus dentes se cerraram e seus dedos começaram a estalar com a força que estava fazendo.

— Tenente…

Essas palavras fizeram Mutsuki relaxar, somando-se a um sorriso que ele abriu, o suficiente para desarmá-la.

— Por que? Como você fez isso?!

— Acalme-se. Deixe-me lhe explicar. O processo de possessão, como chamamos, diz respeito a uma variação do transtorno de múltiplas personalidades. Ele faz você acreditar ser outra pessoa e as duas personalidades entram em choque.

Ela baixou a cabeça em direção as suas mãos e respondeu.

— Então, eu sou louca?

— Não, Chikuma. Você é igual a todos nós.  A diferença das pessoas saudáveis, se é que existem, das mais loucas, é apenas um único dia ruim…  Este processo não é apenas físico ou mental. Preste atenção.

Matheus levantou sua prótese de metal e virou sua palma para o alto. Entre seus dedos, uma corrente elétrica se estabeleceu, mas o mais estranho, eram seus raios vermelhos.

— Se existe a possessão, então também existem os demônios. Neste mundo temos pessoas que vendem a alma a eles e vários que caminham entre nós, sendo que muitos não sabem serem o que são. Todos caminham entre nós nas sombras imaginando todo tipo de maneira de usarem você em benefício próprio.

Ele baixou sua mão e voltou a olhar no olhos de Mutsuki que voltavam a se levantar timidamente.

— A maioria tem poderes de origem psíquica ou de amplificação de sentidos, além de seu corpo ser muito mais desenvolvido, mas alguns poucos conseguem poderes específicos. No meu caso, posso fazer uso da eletricidade. A algum tempo fui contratado pelo homem que salvou minha vida para caçar esses monstros, os verdadeiros demônios, iguais a todos nós, mas que sucumbem a perversão.

De dentro das gavetas de sua escrivaninha, ele retirou uma série de fotos, alguns documentos e os colocou sobre a mesa.

— Estávamos investigando este homem — disse apontando para a uma das fotos.

Ele era alto, idade por volta dos 30, com barbada baixa e cabelos longos, possuindo um olhar que parecia perfurar até o fundo da alma.

— Makimoto Musashi, um dos grandes lideres da Yakusa. Enquanto levantávamos informações sobre ele, descobrimos que uma mulher aparecia bem próxima dele.

A próxima foto para qual ele fez seu dedo repolsar era de ninguém mais, ninguém menos que Misato.

Mutsuki ficou incrédula, sem reação.

— Descobrimos que ela havia caído nas graças de Makimoto e começou a se afundar nos negócios do mundo do crime. Pouco tempo depois, ela apareceu morta junto de mais três capangas o que nos levou até onde estamos.

Um silêncio mortal pairou sobre a sala. Matheus permaneceu imóvel, esperando uma resposta de Mutsuki, a qual não tardou em chegar.

— Então… É este o responsável por ter destruído nossas vidas…?

— Não só a de você e suas amigas, mas de todos que cruzam seu caminho. É assim que tipos como ele são.

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