Volume 1
Capítulo 23: Histórias
Era o ano de 2019.
Minha equipe havia sido despachada para uma missão de paz da ONU no continente africano, para lutar contra um grupo de guerrilheiros locais.
Eles já haviam saqueado vilas, sequestrado pessoas e usado do terror como ferramenta de seus planos doentios.
O próximo alvo deles seria uma cidade a alguns quilômetros de nossas instalações, pequena, mas grande o suficiente para abrigar a maior parte do dinheiro de produtores rurais nas redondezas. Se não bastasse, a polícia também era extremamente corrupta.
— Então a gente tem que ir lá tomar tiro por causa de um bando de vagabundo?
— Ué, o salário em dólar tá aí por isso, né?
Estávamos no Urutu, um blindado de transporte pra quem não sabe, de baixo de um calor desgraçado, assando que nem porcos pela falta de ar condicionado e enxarcados pela umidade.
Meus colegas falavam de tudo um pouco, coisas das quais não posso citar em respeito a vocês, mas basicamente era em como gastariam o dinheiro com festas, bebidas e com… Bem, digamos suas amigas.
Eramos pouco mais de trinta, contando com os motoristas, comandantes e a tripulação dos veículos que nos transportavam.
— Mas como é que a gente sabe que essas caras vão tá lá?
Um soco veio em cheio bem no braço dele, de modo que deixou o fuzil cair no chão.
— Você não presta atenção no briefing e depois fica enchendo o saco.
O Tenente responsável pelo pelotão não era conhecido pela sua paciência, se bem que com um idiota daqueles não dava pra ter.
— São dados de inteligência, Bisonho.
— Eu sei, mas é que também tem alguns boatos estranhos sobre esses caras. Que fizeram paquito com o demônio, que pintam símbolos com sangue.
— Não se esquece que preferem as cabritas.
Por motivos implícitos, o comentário aleatório que surgiu só para deixar o tenente ainda mais carrancudo.
Para me distrair, voltei a inspecionar meu fuzil, o bom e velho FAP. Pesado, pouco prático e muito divertido de usar em automático. O carregador de trinta tiros do comprimento do meu antebraço e da largura da minha coxa dava um ar imponente que não cansava de admirar.
De repente, o operador da metralhadora gritou.
— Fumaça!
Todos saltaram pela escotilha para ver o sobre o que estava se referindo.
A cidade a qual deveríamos proteger queimava em chamas.
— // — // —
Nas ruas, pneus queimados bloqueavam a maior parte das estradas, mas o mais estranho, é que as ruas estavam desertas.
— Conseguiu alguma coisa?
— Não comandante, o rádio simplesmente não funciona.
— E o sinal via satélite?
— Nada. É como se estivéssemos completamente isolados.
Nós havíamos parado em uma estrada ao lado da delegacia, só para descobrir que estava vazia.
— Os tiras somem, o rádio fica mudo, a cidade pegando fogo… Que porra é essa, um filme de terror?
Hoje, parando pra pensar, nunca imaginei amaldiçoar tanto as palavras que saíram daquela boca.
Uma névoa começou a descer do nada. No início, parecia parte da fumaça, mas logo não conseguíamos enxergar um palmo a nossa frente.
Então vieram os gritos…
Homens, mulheres e crianças começaram a implorar por ajuda, gritando em agonia. Dava para ouvir até o som da carne deles sendo cortada e o moer de seus ossos.
— Senhor! O que vamos fazer?!
O tenente estava fora de si, olhando para aquela imensidão branca, ao mesmo tempo com seu calor abrasivo e seu ar sufocante.
Foi quando algo o derrubou no chão e o arrastou até sair para dentro do mar cinza.
O som metálico roçando por cima do asfalto logo se transformou em um gemido infernal dele sendo enforcado.
Alguns dos nossos foram atrás tentar salvá-lo, só pra encontrar o corpo separado da cabeça imerso em um enorme poça de sangue.
Eles caíram no chão com medo, então, em meio a névoa, o barulho e o clarão dos tiros correram de todas as direções.
Dava pra ver um vulto andando aqui e ali, sempre com aquele barulho de ferro arrastando.
— O que vamos fazer?! — gritaram meus soldados desesperados.
— Procurem cobertura e fiquem um de costas pro outro!
Assim fizeram, mais ou menos uns dez, que ficaram atrás de carros, muros, becos e qualquer outro lugar grande suficiente para abrigar uma pessoa.
Depois de mais um minuto, os tiros pararam de vez.
Um dos nossos caminhou sangrando em nossa direção, gemendo como se estivesse se afogando.
O médico correu até ele, alguns colegas dando cobertura, outros com medo demais para reagir.
Eu fiquei olhando para ele no chão, com minha arma montada sobre o bipé, só esperando um alvo aparecer.
Quando ele alcançou o moribundo, ele estava cercado por algumas correntes que fincaram em sua carne. De fato, parecia que estavam servindo como as cordas de uma marionete.
O socorrista tentou soltá-lo, mas elas começaram se envolver em suas mãos, atravessando seu corpo com pontas de arame farpado.
Ambos de tornaram uma só massa de carne e ferro, gritando como bestas que queimavam no inferno.
Mais vultos parecidos começaram a surgir da névoa, não só dos nossos, mas também de civis e dos policiais que deveriam estar nos esperando.
Enquanto ainda estavam distantes de nossa posição, tive que tomar uma decisão.
— Eles não estão mais vivos. Abram fogo!
Fui o primeiro a disparar, com minhas munições traçantes servindo de guia para os demais.
Os alvos, a palavra que decidi usar pra facilitar na hora de puxar o gatilho, não caíram com um ou dois tiros, mas com uma rajada intensa. Alguns continuavam se arrastando no chão, outros seguiam em frente mesmo com os membros decepados, sendo arrastados pelas correntes.
Era impressionante como um carregador de 30 tiros não durava absolutamente nada. Nunca odiei tanto ter que recarregar como naquele dia.
Pouco a pouco, vi meus homens sucumbirem nas mãos daqueles monstros e seus pedaços retalhados se fundindo a eles, tornando-se maças de carne deformadas.
Peguei os sobreviventes e ordenei que recuássemos a nosso último reduto de defesa, a delegacia.
Entre tiros, gritos e os urros vindos dos mortos retalhados que se arrastavam pela calçada, entramos aos tropeções, uns por cima dos outros.
No mesmo instante, começamos a cobrir a porta e as janelas com mesas e cadeiras e tentamos aguentar.
Eles começaram a forçar entrada, mas foram rechaçados com sucesso, transformando a pequena escadaria em uma cachoeira de sangue.
Meu fuzil estava tão quente que, quando abri a câmara para inspecionar, vi fumaça sair de dentro dela e imediatamente extrai o carregador.
— Já era, se continuar a munição pode explodir… Vocês estão bem?
Quando me virei para ver os outros, tudo que restava de nós eram apenas três, com medo demais para me responder.
Peguei minha pistola e mãos e tentei imaginar o quão útil serviria para me manter vivo.
Não demorou muito para descobrir que não teria muita utilidade…
Entre as correntes e os restos de carne, uma figura humanoide imensa, envolvida em arames farpados com o coração exposto, perfurado por cadeado de ferro enferrujado estava caminhando em nossa direção.
— Pro andar de cima!
Corremos com o que sobrou pelas escadas, quando um estrondo chegou atrás de nós, seguindo de algo que me atingiu no ombro.
Quando me dei conta, um dos meus soldados estava esmagado ao meu lado os outros passaram por mim, cambaleantes.
A porta havia sido destruída e lá estava ele, me olhando com olhos que queimavam como fogo no inferno.
Foi a minha vez de correr, escapando das correntes que tentavam me acertar, as quais tinham força pra conseguir quebrar as paredes, o piso e entortar o corrimão.
Por sorte, consegui escapar.
A névoa já estava bem mais fina. Dava para ver o campo de batalha por inteiro, os corpos espalhados pelo local, mas o mais estranho era o fato do sangue e dos pedaços formarem algum tipo de símbolo, algo… Demoníaco.
Um rugido ecoou de dentro do prédio e ao nos virarmos, um emaranhado de ferro estava vindo na escada, como cobras rastejando.
Uma vez encurralados, meus olhos se voltaram em buscar qualquer esperança de sobreviver.
Naquele momento, pude ouvir o som de ferro batendo, logo ao lado do prédio.
Para minha surpresa, o cascavél, nosso veículo de reconhecimento com um canhão de 90 mm estava parado logo ao lado, com alguns monstros batendo na lataria.
— Me ajudem aqui!
Comecei atirando, seguido pelos outros.
Quando os monstros caíram, um dos nossos abriu a escotilha.
— Mas que merda é essa?!
— Só tem você?
— Só tô vivo porque perdi no par ou ímpar na hora de decidir quem ia ficar tomando conta do tanque.
Enquanto me preparava para saltar sobre ele o restante de meus homens foram atingidos pelas correntes, assim como eu, que cai sobre o veículo com o impacto, o qual abriu um corte fundo em minhas costas.
— Você tá bem, cara?
Não deu para responder, pois os gritos de nossos colegas me tirou toda e qualquer motivação.
— Não dá pra fazer nada… Consegue nos tirar daqui?
— Se desse pra fugir, já estaria bem longe daqui. Os desgraçados acorrentaram os eixos e rasgaram os pneus.
Meus olhos correram por todo lugar, tentando encontrar uma opção.
— O canhão ainda funciona?
— Acho que sim, mas parados aqui somos alvos fáceis.
— Me dá sua arma.
— Ah?! O que você vai fazer?
— Espera meu sinal!
Comecei a correr para o meio da rua, quando vi o monstro sobre o terraço da delegacia, exibindo os corpos de meus companheiros caídos como troféus.
— Vem me pegar seu desgraçado! — Gritei atirando uma rajada contra ele.
Os tiros não fizeram nada, só o deixaram mais irritado, justamente o que precisava.
A besta avançou contra mim, defendendo o coração exposto com as correntes e assim fiquei imóvel, esperando ele me pegar.
Quando a munição na arma acabou, peguei minha pistola com mão esquerda. Infelizmente, antes de continuar disparado, ele lançou algumas correntes que seguraram meu braço e me puxou, agarrando meu abdômen para me erguer no ar.
Seus olhos olharam para mim com um senso de superioridade, como se estivesse esperando implorar. O que fiz foi justamente cuspir na sua cara.
Os segundos mais dolorosos de minha vida se sucederam logo em seguida.
Aos poucos ele foi triturado meu braço, até ficar preso apenas por pedaços da pele.
— Vai pro inferno, maldito!!!
Este foi o sinal para seu coração ser perfurado por um disparo do tamanho de um melão.
Minha última lembrança depois de ficar coberto de tripas e sangue foi do meu colega falando alguma coisa pelo rádio.
Não precisa entender o que estava dizendo. Algo dentro de mim já dizia que nós havíamos vencido.
— // — // —
— Quando acordei já tinham transformado meu braço em uma prótese e em funcionário deles…
A sala de estar iluminada pela luz tímida de um abajur dava um ar sombrio a volta do grupo que lá se reunia.
Matheus parou de falar para encher seu chimarrão, sendo o som da do pingar da água o único que se manteve presente.
Asashio, Mutsuki e Yuudachi permaneceram quietas, trocando olhares uma com a outra.
— Eu nem sei o que dizer…
— Concordo com a Asashio. Isso tudo é tão…
— Matheuzo, hum… Tão surreal. Chega ser difícil acreditar.
— Parece mentira, né?
Todas elas assentiram.
— Se vocês acham isso… É porque estão certas! Hahaha.
— É o que?!
Yuudachi deu um salto e o agarrou da gola.
— Você fez a gente de trouxa esse tempo todo?!
Mutsuki estufou as bochechas e apertou as mãos, chegando a tremer.
Asashio levou a mão a testa, fechou os olhos e respirou fundo.
— Independente disso, vocês tem que admitir que foi divertido.
As mãos a volta de seu pescoço se afrouxaram.
— É, isso é verdade… Mas pra que inventar essa história toda?
Antes de responder, preparou um segundo gole de sua bebida e alcançou a ela, que recebeu e voltou a ficar sentada.
— Faz uns dias que estou pensado nos ficamos nessa coisa de só falar o necessário para dar continuidade a uma tarefa que estamos envolvidos. E quanto a nós? O que pensamos, sentimos ou gostaríamos que os outros ouvissem, em outras palavras, sentar pra conversar. Decidi lhes mostrar o que gosto de fazer, contar histórias… Então, o que acharam?
A mais escandalizada resolveu começar falando dos furos de roteiro e coisas consideradas por ela sem sentido.
— Mutsuki, pode levar esses remédios pra Kasumi por mim enquanto termino o jantar?
Ela prontamente pegou as cartelas, acenou com a cabeça e deixou os outros terem sua pequena discussão, partindo para o andar superior, até o quarto usado por Asashio, batendo na porta antes de abri-la.
Kasumi estava deitada lendo um livro particularmente grande com o braço que não estava enfaixado.
— Você gosta de ler?
Naquele instante, estendeu seu braço para largá-lo sobre a cômoda ao lado.
— Gosto, mas faz bastante tempo que não faço isso.
— Hum… Vim trazer o seu remédio — disse alcançando alguns comprimidos.
Prontamente, ela os levou a boca, buscando logo em seguida uma garrafa d´água ao lado.
— Se sente melhor?
— Bem, Tenho ainda dor no corpo, principalmente nas costas. Perdi muito sangue, então me sinto meio fraca… — suspirou — Como estão as coisas por aqui?
Mutsuki deu um passo atrás e se enrolou para tentar disfarçar.
— Ah… Estamos um pouco cansadas, mas acho que não vai demorar muito até ficarmos cem por cento!
Sua empolgação era artificial, entretanto, era suficientemente boa para disfarçar a gravidade dos acontecimentos mais recentes.
Kasumi apontou com a cabeça para a cômoda ao lado.
— É familiar pra você?
Ela pegou o livro em mãos.
— A Interpretação dos Sonhos… Não me é estranho — por alguns instantes ficou com a mão no queixo pensando — Lembrei — disse estalando os dedos — Meu irmão falou dele uma vez.
— Foi ele quem me deu.
Mutsuki abriu os olhos de surpresa.
— Conheceu ele?
Kasumi não respondeu de imediato, preferindo olhar em seus olhos por alguns segundos.
— Eu fui despachada pra proteger uma amiga dele, Kaori. Suspeitávamos que ela poderia ser um dos próximos alvos de Hisen.
— Então você…
— Sim, me feri protegendo os dois.
Mutsuki a encarou, sem palavras.
Um sorriso se estampou em seu rosto, dai caminhou para abraçá-la com rapidez.
A mesma tentando abrir a boca, mas parou no mesmo instante em que foi apertada, até mesmo de respirar.
— Muito obrigada! Muito, Muito mesmo! — falou em um tom carregado de afeição.
— Mut… Suki…
— O que foi? Pode me pedir qualquer coisa!
Com muito esforço, as palavras que precisava vieram, quase inaudíveis.
— Dói…
— Ah, desculpa!
Ela deu um salto para trás, deixando Kasumi conseguir respirar de novo.
— Minhas costas… — se queixou passando a mão boa sobre elas — tal irmão, tal irmã.
— Você nos acha parecidos? — perguntou coçando a bochecha.
— Bastante.
— Não diria que nos parecemos muito. Ele é mais maduro e menos… Desajeitado, hahaha.
— Não teria tanta certeza… Sabia que ele se ofereceu pra cuidar de mim na clínica?
— A é? Faz bem o jeito dele de retribuir…
Mutsuki ficou de cabeça baixa, pensativa, com uma certa nostalgia.
— Este livro — disse colocando a mão sobre ele um tanto melancólica — Foi a primeira vez que ganhei alguma coisa desde que era pequena… e o primeiro amigo verdadeiro que tive nessa vida…
A jovem olhou com curiosidade para tais palavras.
— Me diga, Mutsuki — perguntou com os olhos ainda focados no objeto — O que você pensa de mim?
— Bom… Acho você bem elegante, madura, sabe, tipo uma irmã mais velha.
— Quanta ingenuidade…
Por um instante, ela deu uma risada forçada e logo voltou seu olhar penetrante, severo e amargurado para a sua jovem colega.
— É pelo visto você não fez ideia de quem eu seja.
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