Pôr do Sol Brasileira

Autor(a): Galimeu


Volume 3 – Terra Exilada

Capítulo 54: Ignorância Mútua (Parte 1)


Hanf... Estava sem trégua para meus pensamentos. A pestinha começou a me puxar com sua força inimaginável, fui arrastado para fora do carro e quase cai de cara no chão.

— Toma cuidado, Nirda! Eita, que vista, hein.

— É bem cedinho e estão a todo vapor!

Surgindo das profundezas das sombras, o ser maligno chamado “Will” me emboscou enquanto analisava o relógio de mão. Me segurou pelo ombro e sorriu ligeiramente.

— Tá feliz, é?

— Ver a praia e tantos navios quase me fez esquecer que saímos do inferno na terra e quase morremos dilacerados! — Amassou o cabelo.

— Olha o grandãozaum aí, ó!

Nirda, me cutucando pela milionésima vez, apontou para um porto próximo. Seu olhar radiante se preencheu com a vista de um... navio até que bem grande. Não é um navio normal.

Estávamos no meio de um estacionamento, rodeado por carros e com o mar no fim da paisagem. Mas... onde tá aqueles três? Olhei em volta e não encontrei o suposto pai que tinha que, também supostamente, agir como pai.

— Réviz, Luri e o Feites foram tentar resolver a questão da passagem. Precisamos atravessar para o setor do outro lado do mar e levar o carro junto.

— Ro-ro! Ro-ro! Ro-ro! — Nirda começou a virar uma líder de torcida do nada.

— Tá... Tendi.

— Algum problema?

— Tive um sonho esquisito. Não sei dizer se faz parte das coisas todas ou tem nada com nada.

Apesar de ter me contido em contar mais detalhes, Will me encarou numa expressão que quase gritava para que eu continuasse, levantou uma sobrancelha e entrou na frente de Nirda, que ainda estava girando por aí para a torcida imaginária.

— Vou resumir: muita neve, gente que nunca vi, tirando o tal general, que o Feites é reencarnado ou sei lá; mais neve, um cara encapuzado e uma luz fortona em ciano, meu corpo pálido, transparente e sem boca.

— Poderia ser as supostas memórias?

— E eu sei lá! Não tenho um momento de paz sem um absurdo acontecer. Daqui a pouco vem uma assombração bancar o senhor charada.

— Não sei se vai ajudar, mas Réviz disse que iria explicar algumas... Ah! Falando dele!

Meu irmão desviou o olhar e apontou diretamente para atrás de mim. Quando segui a direção, havia um grupo de quatro pessoas, que vieram na nossa direção.

Apesar de reconhecer a maioria, havia um que nunca nem vi na vida. Era um jovem da minha idade com um boné mais clichê de empresa possível.

Logotipo centrada no boné, camisa e calça padronizada em cores brancas e verdes. Aproximou mais depressa do que o resto e chegou perto do carro com um dispositivo estranho.

— Vai ser uma honra poder ajudar o senhor Feites!

O rapaz veio que nem um pit-stop, apontou o treco na mão e apareceu um pequeno holograma 3D do carro. O dispositivo fez a imagem tornar-se verde ao mostrar o ícone de confirmação.

— Pronto, terminei de scanear, agora só se apresentarem perto do deck para garantir na fila de entrada para o embarque. É daqui meia-hora! Se apressem!

— O que aconteceu aqui? — Assim como fazem comigo o tempo todo, mandei a pergunta na lata pro Réviz antes que pudesse dizer algo.

— Não havia vagas para os próximos dias. Tentamos uma negociação amistosa e conseguimos uma... “entrada vip” — Suspirou, revirando os olhos.

— Na verdade, a gente tentou de tudo, mas foi só o Feites mostrar o rostinho bonito que a chefa ficou nervosa e pediu pra aquele rapaz, que foi correndo ali. — Indicou o samaritano —, autorizar a gente. — Que bom que tá com a gente! — Luri puxou o reencarnado certinho para perto e começou a expor como se fosse um troféu.

— Me questiono se o cavaleiro em questão possui um parentesco com o militar que auxiliou o general Felipe — comentou Feites.

— Os três, venham aqui!

Réviz chamou nossa atenção, ainda me sinto estranho por ter que o imaginar como pai, mas não quero caçar mais intrigas.

— Precisamos nos preparar para a viagem, serão mais de dois dias. Mark, sua próxima missão é... — Lá vem o danado querer me matar... — É comprar itens convenientes para que possamos comer e beber, pegue o que quiser.

— Escutei direito?

Na mão estendida sem pretensão de me aplicar um golpe ou coisa assim, tinha um cartão roxo e reluzente. Will e eu ficamos abismados! Era o poder puro! Era o poder do consumidor a minha disposição!

— Tá bom! Vamos lá! Sempre quis fazer isso!

Uma pegada ardilosa catou o cartão de crédito da mão de Réviz. Minha irmãzinha já correu na direção que o pai dela indicou, balançando os braços.

— Volta aqui, Nirda! — gritei.

Até que foi bem rápido para acharmos o mercado aqui perto, vulgo “mercado o seu zé’. Era até que bem grande pra ser só uma conveniência.

A quantidade de corredores era razoável, mas, embora minhas opções estivessem aumentando, eu precisava me conter a cada segundo.

Não é todo dia que temos um cartão sem limite!

Estava tentando manter a postura enquanto segurava a mão da minha irmã. Sim, eu podia só dizer que estou posando de responsável, mas é só pra ela não sair correndo de novo.

— Aquele! Pega, Mark!

— Na volta a gente pega!

Hm! — me esnobou, que novidade.

A cada doce que via, puxava o bracinho, estava domando um ser insaciável pelo desejo de comer besteiras.

Fazia alguns minutos, que entramos. O barulho do carrinho na minha frente era o que Will empurrava, cuidadosamente colando as coisas pertinentes que via no encarte que segurava.

Caixa de suco, pães, garrafas, copos descartáveis... Tinha algo me incomodando. Beleza, num momento desse, talvez também estivesse se contendo para não pegar algo que gostava.

Passos paravam, o carrinho parava, uma mexida no cabelo e voltava a caminhar. A expressão meio tensa vinha sempre nesse roteiro.

Devia aprender a aproveitar melhor os momentos. Nirda sabe muito bem, dá pra ver que o Will não tirou aquelas cenas do parque por um segundo as cabeça. Também estou com elas frescas, eu devia tocar no assunto?

Aqueles defuntos, pessoas dilaceradas e sangue, os monstros... Sinto que não mereço esta calmaria. Só que não fui eu quem escolheu esse destino.

Droga! Que que eu devia dizer ou fazer?

Nirda parece ter esquecido, não quero trazer esse assunto, é abusar da sorte de traumatizar mais uma criança.

Dei mais um passo para alcançar o Will e...

— Nirda, pode pegar uns salgadinhos na entrada?

— É pra já, capitão!

Na posição de sentido, a mão dela escorregou sobre minha pegada e foi em direção a parte da frente do mercado tão rápido quanto chegou.

Voltei meu olhar para Will, ainda havia receio, só que entendi exatamente o que queria que eu fizesse.

— Will, você... tá bem?

Esteve concentrado em pegar os itens que marcou no encarte. Os dedos que passavam pelo cabelo pararam, começou a me encarar.

— Sendo sincero, Mark, parte de mim quer voar no seu pescoço.

— O quê?!

O encarte foi amassado numa apartada da mão, a vista afiada do meu irmão fez parecer um vilão em plena frase de efeito.

— Estou tentando me manter calmo, minimamente. — Ajeitou a franja. — Passei o tempo todo tentando acalmar a Nirda, que pedia pra ir embora. Foi fácil simplesmente sair numa missão pra salvar o mundo e deixar nossa irmã aos prantos?

— Mas eu... — Fui cortado. Afastei um pouco para trás enquanto ele vinha na minha direção.

— É por isso que disse “parte de mim”. A outra parte quer aproveitar cada segundo, afinal, teoricamente. estamos só viajando. — Deu pra sentir a raiva no quanto de ênfase que deu em cada palavra.

— Não achei que seria tão perigoso.

— Claro que não saberia disso.

Parou de avançar, respirou fundo e pareceu se acalmar. Não arrisquei e fiquei onde estava por via das dúvidas. Foi muito estranho vê-lo assim.

Meu rosto atordoado pela reação dele relaxou lentamente enquanto o ouvia continuar:

— Precisa lembrar que sou eu o mais velho. Quero te ver bem, mas tinha que ter nos contado antes!

— Me desculpa, Will.

— Nosso pai, o senhor Réviz, quer colocar o grupo de acordo e cientes do que está por vir. Apesar do que houve, ao menos algo bom veio disso tudo.

Algo bom? Nada vinha na minha mente nessa sequência.

Fomos adotados e nada demais aconteceu até anteontem no parque, onde tudo começou a dar perda total.

Antes de perceber, já estava de cabeça baixa. Começou um desanimo e tristeza. Havia algo de bom até aqui? Fui enfiado em tantas incertezas.

— O que seria?

Talvez só Will pudesse responder. Quase morremos por minha causa e deixei a Nirda quando mais precisava sem perceber.

Talvez... eu mereça isso.

— Faz quanto tempo desde que fomos ao mercado nós três?

Levantei meu rosto por reflexo, essas palavras tinham sentido?

Pior que tinham, mal me toquei neste detalhe! Quando foquei melhor no meu irmão, o tom pesado em raiva desapareceu em algo mais convidativo: um sorriso.

No mesmo instante tive uma lembrança do momento que o vi junto das nossas antigas mães num corredor da sessão de biscoitos, ainda mais novos. Nirda era tão pequena que Maria a carregava. Martía sempre ficava encarregada de pegar os itens pesados, mesmo quando ficava com a cara roxa.

— Que tal tentar sempre parar de nunca deixar o rosto erguido?

Fico feliz que tá tudo certo. O jeito que entende como me comporto com as duas palavras, com certeza, me motiva.

Se aproximou mais com o sorriso e parei de me afastar. Já estava na cara que era o momento de sempre segurar meu ombro e... AH! Ai, ai!

— Will?!

Meus ombros vão virar pó! Não foi uma simples segurada, foi uma moída que até estalou alguma coisa!

— Além do mais, se suas chamas curam, então não tem problema eu te dar um murro, né? Né?

Não tem saída, tá me segurando com toda a força!

— Peguei um fandangos pra cada!

Uma voz infantil completamente conveniente pro meu roteiro apareceu e distraiu Will, que olhou para o lado. Nirda retornou segurando salgadinhos até na cabeça.

Arrastei a menina comigo e fui na direção oposta do meu agressor em potencial.

— Óia só, Nirda! Topíssimo, haha, vamos ali dar uma olhada no suco?

— Suco? Mais suco? Mas a prateleira tá do lado do Will.

— Sim! Mais suco!

Will não vai ter coragem de me bater na frente dela.

Pera, tem passos pesados atrás de mim. Ele tem coragem sim! Ele tem coragem sim!

Comecei a correr casualmente pelo mercado com pessoas aleatórias julgando minhas ações como se fosse um doido varrido a solta.

Um tempinho mais ligeiro passou depois do corre-corre. Estávamos caminhando pelas ruas próximos do porto, empurrando alguns carrinhos de compra cada um.

Nirda insistia em querer ajudar, então a coloquei pra carregar os salgadinhos num carrinho pequeno que achei lá.

Demorou poucos segundos pra Luri acenar de longe para nós.

— Por aqui! — gritou, balançando os braços. Engraçado que pra essa doida aí ninguém olha torto.

Minha tal líder começou a apontar para a esquina que estava ao seu lado feito um boneco de posto. Era a mesma direção onde estava a doca mais próxima.

— Estamos na fila! Coloca os trem no carro!

— Já estamos indo!

Respondi logo pra evitar a fadiga dela. Começamos a empurrar os carrinhos com mais forças porque já estávamos numa subida.

Deu a entender que nosso tempo estava estrito, agilizamos ao chegar perto do carro a enfiar tudo no porta-malas.

— Desde quando era tão grande assim?

— Esse carrão do Réviz pode se moldar a necessidade. Só não pode voar ou mergulhar, ou falar, ou fazer catchau.

Réviz e o Feites estavam dentro do veículo. A fila andava lentamente, mas conseguimos colocar tudo e entrar antes de chegar nossa vez.

Depois do corre-corre-parte-dois ter acabado, o carro começou a subir a rampa e se aproximar no local indicado pelo bilhete, que Feites segurava.

— Bloco C2, número trezentos e quarenta e três. Senhor Réviz, siga em frente e vire para a direita na última oportunidade.

— Pertinho do elevador, vantagem vip! — comemorou Luri, abraçando o certinho que nem uma pelúcia.

— Fico contente em ser útil.

— Com a viagem relativamente longa adiante, peço a atenção de vocês. Sigam-me.

Réviz tirou o cinto rapidamente e abriu a porta sem nem respirar direito. Nos olhou de relance e pediu para o acompanhar num ar esquito. Pois é... Imagino que esse é o momento da conversa que Will me contou.

O seguimos até o elevador e, antes que eu entrasse, Nirda puxou minha calça e ficou receosa.

— Ele vai brigar de novo? — Parecia que estava para chorar a qualquer momento, se segurando.

— Ele não vai brigar, confie em mim.

Apesar de realmente ter acalmado minha irmã, isso foi apenas uma mentira convincente para nós dois.

Fomos jogados nesse rumo sem explicações, mesmo que eu tenha colaborado em partes, somente Réviz e Luri pareciam saber dos específicos.

E, ainda assim, existem coisas que nem eles sabem, essa é a razão do Feites estar conosco, não era?

Segurei a mão dela outra vez e nos dirigimos ao elevador. Apertei o botão para o último andar. Deve ser onde está a área dos passageiros.

Foi uma subida até que demorada, sem contar o silêncio que ajudou em absolutamente nada para retirar esse sentimento esquisito.

Só havia o rosto frio do meu suposto pai adotivo e a mão de Nirda que me apartava com mais força.

Depois do som clichê de chegada, as portas abriram para um corredor que dava acesso ao topo do navio. As salas ao redor mostravam o restaurante, banheiros, áreas de lazer, um salão e outras coisas

Fomos para o lado contrário, o lado onde devia estar a vista para o mar. Tinha quase ninguém. Afinal, fomos um dos primeiros a entrar.

— Preciso conversar sobre o rumo daqui em diante.

— Réviz...

Como assim? O cara simplesmente descarrilhou a concentração numa expressão cansada e triste. Relaxou o corpo no corrimão do convés.

Nirda ficou atrás de mim; e Will permaneceu ao meu lado, mas os dedos ainda tremiam um pouco.

Luri tentou confortar o vice. o fazendo se voltar para nós.

Feites cruzou os braços e continuou esperando a continuidade, sem dizer nada.

— Irei aceitar qualquer objeção. Contudo, querem que me escutem até o fim. Isso inclui a razão de ter os adotado e estarmos aqui e agora.

Se me dissessem que foi combinado, acreditaria, o sol do amanhecer ainda refletia no mar, destacando o vice como o protagonista da próxima cena.


 

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