Pôr do Sol Brasileira

Autor(a): Galimeu


Cidade Flutuante – O Segundo Setor

Capítulo 25: Conversão

Com o clima exageradamente sério, Luri arrumou seu terno branquinho como neve de cima a baixo — se preparava para um discurso que pudesse definir toda sua carreira.

— Vamos lá. Comecemos com este mapa deveras legal feito por minha pessoa. — Com a mão delicada, arrastou com leveza o papel para mais a frente do jovem de cabelo hipérbole. — Vamos… — Forçou uma tosse enquanto falava. — Pegue.

Mark deu outra olhada, era realmente o segundo setor no papel, mas com traços esquisitos. Sua atenção teve o foco sequestrado pelo pequenininho rosto daquela que agia tão formal gravado na folha.

— Foi você que desenhou? 

— SIM! Fui eu! — Levantou da cadeira ao estufar o peito.

Luri, apesar de tentar estar centrada momentos antes, era facilmente influenciada para se perder com as próprias emoções — Mark começou a notar isso. De maneira desleixada, o barulho de impaciência que surgiu entre os dois retomou ela até seu foco original.  

Réviz mantinha seus olhos fechados e braços cruzados, esperava pela conclusão da conversa que teria tanto impacto quanto o treinamento com a inquietação tão presente em sua cadeira, os dedos se mexiam e os pés não permaneciam quietos. Para o terceiro nível, Luri precisava ser direta.

— Veja esta folha em sua frente. Pode me descrever os detalhes na qual identifica? — Passou a mão na sua chuquinha, rebobinou a Luri educadíssima e empinou ligeiramente o queixo.

Nada mudou, Mark continuou com o rosto estranho. Engolia o comportamento forçado com uma cara amarga. Pegou o papel e examinou bem, revirou em cada ângulo e logo concluiu:

— Tá…  Eu sei geografia básica. Este no mapa é a nossa divisão. Tem pontinhos ligados em algo que acho que era para ser um espiral. Pera, isso me lembra um selo de…

A moça quase caiu da cadeira. Tentou se sentar ao lado, mas encolheu o rosto soltando um “depois me diz o que reconheceu” como se já tivesse a resposta na ponta da língua. Se conteve ao colocar os cotovelos na mesa, apoiando a cabeça sobre sua mais bela elegância de mentira e disfarçada novamente.

— Já ouviu falar na Estrela Sorridente?

— Às vezes, vi notícias na TV. É uma organização criminosa que a polícia nunca chegou perto de acabar de vez, eu acho… Bom, pelo menos, é o que a repórter contou. E parece ter dedos em muitos lugares; coisas assim, os clichês de filme mesmo.

A moça relaxou, aliviada por evitar explicações que não queria — ia fazer um discurso muito formal para descrever o que o rapaz disse em tão pouco tempo. O líder de esquadrão se assemelhava com uma estátua, escutava cada palavra do rapaz com muita atenção. Uma conversa boba que não mostrava as intenções reais dele.

Queriam apenas fazer perguntas para ele? Mark varreu a sala com a vista e notou nada de anormal. Talvez queiram que ele diga algo em específico? Mark sentiu um ar peculiar e se ajeitou na cadeira. Do outro lado da mesma, seu pai misterioso. Ao lado dele, uma mulher que sem comporta que nem uma criança. 

Isso era muito obvio para Mark, tentavam testá-lo. Por quê? Se a energia que usa não é motivo especial, que era o fator crucial para manter seu pai tão interessado a ponto de fazer perguntas sem sentido para um jovem logo em um ambiente daquele — uma ODST, lugar onde o principal de todo Segundo Setor aconteceu, acontecia e podia acontecer.

— Irei direto, sendo certeira, precisa, imediata e tudo maís ao assunto. 

A fala retirou Mark de seus pensamentos, quando percebeu, Luri estava com uma cara mais abatida e séria novamente. Aquilo o pegou de surpresa, tinha um remorso perceptível com lábios trêmulos. Uma tristeza que notava de longe. Levantou da cadeira e foi em direção ao jovem, desviou a mão pela mesa até os pontos que descreveu:

— Os pontos nas quais vê são casos extremamente especiais, existem fortes indícios sobre envolvimento de ações diretas dessa organização. Contudo, o detalhe mais importante era que estes mesmos casos não puderam ter suas causas determinadas, uma certeza nula. 

Somente um olho de Réviz começou fitar o garoto, fez contato direto sem disfarçar, encarou e permaneceu. Apenas queria gravar presencialmente até o mais micro dos comportamentos de Mark.

— Nesta linha, existe não só uma conexão entre os casos, mas pistas que levam, não só para a Estrela, pois trazem também menções de uma mesma cidade. É capaz de me dizer onde esta linha acaba? — Pegou a cadeira e colocou próxima dele, sentou e esperou a resposta com cuidado.

— Na capital da Passagem, a cidade flutuante. 

— Sim… acertou.

Após explicar a função do mapa, voltou para si mesma. A cabeça permaneceu num angulo negativo, apontava o queixo para o chão e apertou as mãos. Naquele momento, Luri estava prestes a desabar na frente de Mark, que sentiu a amargura e levantou da cadeira.

— Tá tudo bem? 

Luri apenas se levantou da mesa e se escorou na parede mais ao longe. Apenas restaram os outros dois que mantiveram o silêncio por igual na frente um do outro. Notou o semblante um pouco vil de Réviz, que permanecia centrado nos confins do seu subconsciente, sem piscar. De fato, um agir incomum para um pai. Uma definição de apenas “agente” foi apropriada. O jovem não era mais que um instrumento de informação.

“O que ele quer comigo?” Ele devia saber de algo? Ou melhor, devia perguntar logo? Seja mesmo com as inumares perguntas que podiam ser justas em representar com clareza sua angústia, nenhuma possuía a coragem de encará-lo de volta; deixando sua única opção, que era permanecer quieto. 

“Atente-se”, a voz ecoou em sua mente. Apesar de não chegar nele, Mark aprontou e retirou o gancho da arma ainda invisível, se preparando para o pior, ainda tremendo com um certo medo e suor frio.

— Raciocina extremante rápido. Imagino que passou por sua mente alguma razão para estarmos lhe explicando isto. — Réviz leu o comportamento de seu filho como um livro. — Como um membro do terceiro nível, acaba por supor que haveria uma espera totalmente justa no compartilhamento de informações que não irão para cidadãos comuns e que, para que se desvincule do casulo de desconfiança, darei um jeito neste seu comportamento aqui… e agora.

Luri, ao seguir o sinal do queixo de Réviz, de um estalar de dedos. Barulhos de aço rangendo percorreu nos ouvidos de Mark. Todas as estradas do prédio foram bloqueadas. Barreiras de energia e portas de metal revestiam as aberturas para que nem átomo de oxigênio passasse. O comodo onde estavam foi completamente selado, mantendo apenas Réviz e Mark no lado de dentro.

— Este local, neste exato momento, se tornou uma base de proteção nível três.

Toda a sala se revirou como se estivesse viva. A mesa se esticou, cadeiras surgiram do chão, as paredes se tornaram cinzas e Luri sumiu com o apagar das luzes. Com respiração agitada, Mark viu o seu pai do outro lado da sala iluminado por holofote que não conseguia saber de onde vinha. Em instantes, a sala virou algo diferente.

A inércia do local fez o jovem perder o equilíbrio, tropeçou na corda invisível do gancho e acabou sentado na cadeira outra vez.

— Eis aquilo que pode considerar parte do processo de tornar-se um dos agentes mais importantes desta divisão, e talvez do seu treinamento. Bem-vindo ao interrogatório!

— Ei, ei, ei, ei! Calma aí…

Tentou levantar da cadeira, entretanto foi puxado com muita força de volta da mesma maneira que um ímã faria. Tentou, tentou e tentou; sendo cada vez mais inútil. Estava grudado por alguma força que o mantinha preso constantemente e impossível de se superar.

— Sinto a necessidade de dizer que queremos certas certezas com sua pessoa, mesmo que esteja óbvio… Pois é… Não leve a mal. O processo existe por uma razão.

— Querem me matar de novo? Hein?! 

Ignição surgiu em Mark e uma ligeira faísca em cor ciano apareceu em suas mãos. Sua mente estava acelerada, pensou, por um único milésimo, confrontá-lo. A vitória era tudo que não via…

Até poucos dias, nunca brigou com ninguém. Tudo que fez foi seguir impulsos de emoção que se mantiveram sempre guiados por uma sorte que já viveu antes, uma sorte que não queria contar, sorte tão milagrosa e sem sentido.

“Recomponha-se”. Pernas começaram a tremer, olhos estreitaram e apenas seguiu o jogo. Olhou ao redor e não viu mais nenhum moveis, era apenas ele. A ignição que surgiu prosseguiu outro comando que surgiu no corpo, o chancho foi puxado, a corda que havia saído retornou. A faísca ingenua não acendeu o fogo ciano, e Mark tentou permanecer calmo.

Quando se não tem quaisquer ideias do que está por vir, coragem basta. Afinal, foi só o que conseguia raciocinar. Pensamento ignorante, triste e verdadeiro. Não tinha comprometimento de revidar algo, então respirou fundo para aceitar o desafio. Assim prosseguiu… com coragem. 

“Aonde em me meti?”, pensou. Seu pai, com os braços cruzados como se negasse a postura de seu filho, estava pronto para desabafar algo, apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçou os dedos da mão e continuou:

— Me diga qual é sua primeira lembrança… Não, permita-me frasear adequadamente: diga como chegou no orfanato.

De tudo que viveu, aquela pergunta foi a única coisa que sequestrou seus pensamentos para o que não possuía mais… a ideia real de afirmações que perdeu e tentou recuperar.

“Como vim parar no orfanato?” Uma pergunta que já se fez inúmeras e inúmeras vezes. Esta frase que o também fez esquecer de tudo que aconteceu há segundos. 

Colocou sua mão na testa, fechando os olhos. Tomava tempo para pensar do que podia dizer, não para inventar, apenas não tinha noção se era verdade ou se podia ser mesmo uma mentira.

— Pra falar a verdade… — Suspirou enquanto balançava a cabeça. — Diria que tenho a miníma ideia.

Réviz pareceu curioso com a resposta. O terceiro nível conversou com a diretora antes de encontrá-la no orfanato presencialmente, fez questão de saber a razão dos três ex-órfãos estarem lá. Dependia apenas do Mark confirmar, não queria ter que investigar as memórias de mais ninguém… Mark engoliu seco, viu seu pai sinalizar com a cabeça para continuar, então prosseguiu com receio:

— Minha lembrança mais antiga era quando estava brincando no jardim do orfanato quando criança, nem haviam pintado ainda. — Sua voz ficava mais lenta, tinha um peso muito emocional no que recordava. — Foi o mesmo dia em que perguntei para Maria sobre como cheguei, — Esboçou um ligeiro sorriso — tinha acabado de ver um filme dum cara que perseguiu uma jornada clichê para achar os pais e descobriu que era uma das pessoas mais importantes do planeta; esperava uma resposta à altura da minha mã… Maria, quero dizer.

O resto era somente silencioso, a voz do jovem, ainda que fosse reclusa com a nostalgia, dispersava no ambiente em alto bom som com o destaque que somete lá permanecia. As duas mãos param cada uma num bolso da blusa. 

— Recebi uma resposta mais clichê ainda: “te deixaram na porta numa madrugada chuvosa”. — Abaixou a cabeça, desapontado.

Depois de respirar fundo, insatisfeito até hoje com as expectativas quebradas, puxou do bolso de sua blusa um pano estranhamente comum. Estendeu ele sobre à mesa, deixando claro o símbolo que continha.

— E, naquele dia, ela me deixou encarregado deste paninho. Ela disse que veio junto a mim na porta, mas não acredito; só acho que ela disse isso pra me deixar melhor. Já vi simbolos parecidos em outros panos — Deu de ombros. — Martía disse algo muito parecido com o relógio do Will, deve ter sido combinado.

Réviz relaxou ligeiramente. De fato, era o que a diretora havia dito sobre a mesma pergunta. As memórias vinham a mente, colocou as mãos entrelaçadas na frente do nariz e olhou bem para seu filho. Queria descobrir a razão específica dele ter o controle na energia — não descartava a possibilidade dele estar conectado com responsáveis do desaparecimento de sua amada.

O lugar inteiro começou a fazer barulho, a mesa encurtou a distância entre os dois — deixou a impressão que a sala ao redor ficou menor —, e o jovem foi lançado para frente quase acertando a cabeça se não fosse pela força da cadeira que o segurava. Não tinha sossego. No momento em que as coisas pareciam se acalmar, as coisas todas voltavam.

— Muito bem — disse Réviz, em tom seco como se não aceitasse. — O que tem visto nos vislumbres?

Mais dúvidas vinham na cabeça. Estava com a noção de que esses vislumbres eram parte do pacote ultra especial de edição limitada de usuário da energia. Mark inclinou a cabeça, captando somente parte da ideia.

— Mas a gente não tá vendo as mesmas imagens? A Luri também vê isso, não é?

Mais uma vez, sem respostas diretas. A visão de um adulto que parecia não dar a mínima para ele permanecia constantemente, sentia desconforto por estar lá daquela maneira tão horrível. Relaxou os ombros, suspirando. Suspiros e suspiros, era o que definia o garoto. “Agora ele acha que EU estou escondendo algo?”

— Olha, não sei aonde quer chegar, não sei de nada, não sei daquilo, não sei disso, não sei do não sei. E não sei o porquê me trata assim! — disparou enquanto olhava em volta. — Tudo que vi foram coisas aleatórias e…

— Especifique!

Com o olhar arregalado devido ao grito, engoliu seco. Não podia nem argumentar uma ligeira sílaba. O pai era arrogante a ponto de dar desgosto, via um objeto de informações, e somente. Assustado, encolheu a face ao abaixar o queixo, deixando a sombra sobre seu olhar confuso.

— Pedras esquisitas, montanhas geladas e esquisitas, quarto pessoas mais esquisitas que não reconheci por causa de roupas esquisitas, um templo esquisito, uma mulher ruiva esquisita e sinos muito esquisitos, um rapaz de óculos esquisitos e essas chamas esquisitas. Já falei da parte esquisita?

— Não está esquecendo da neve?

Levantou o corpo, surpreso. O cenário gélido no acidente, que quase levou seu irmão, veio atona. Não tinha a menor ou pequena ideia que sei pai adotivo sabia.  “Foi pela energia dele? Se não, por que contínua nesse interrogatório se pode só ler minha mente?” 

— Pelo seu rosto, presumo que percebeu que minha energia não é só isso.

A mesa estreitou e, num mísero de pequeno instante, sumiu; deixou as duas cadeiras de frente a frente. O espaço da sala era maleável como um tecido fino, o garoto não conseguia aguentar a aceleração tão repentina mexer com seu corpo. 

Réviz, com o indicador estendido, deixou a mercê da trajetória que levava até a testa do seu filho. A testa de Mark colidiu sobre o dedo e deu início a outra ignição do seu pai.

— Conversão.

Intenso par de holofotes marrons, breu, ônibus muito agitado, a fria sensação de estar em queda livre, arvores, destroços, ventania, sangue, will… e mais neve.

Eventos sequenciais surgiram no mundo que se reconstruía das memórias. O jovem estava de volta ao cenário que causou todas aquelas coisas de joelhos, vidrado com a ferida aberta que pulsava de Will.

— Ei, ei, ei… Ei! — Levantou, atônito.

Ainda ficou ajoelhado. Na verdade, levantou. Emergiu de outro Mark, havia outro jovem de cabelo hipérbole, com o rosto desesperado ainda processando o resultado do acidente, o Mark das memórias. Ele lançou a mão na cabeça do seu outro eu, que terminou em atravessar como se fosse apenas ar.

— Agrh! Beleza, Réviz! — Olhou para seu irmão, entretanto, não conseguiu, desviou o olhar com a mão no rosto. — Pelo amor de deus! Eu não tô escondendo nada! NADA!

Retirando sua atenção das reclamações sinceras, as chamas apareceram no antigo Mark, relutante para tocar o machucado. Nada aconteceu, a chama apagou instantaneamente, dando lugar para a ventania que aumentava sua força a cada segundo. “Não curei ele? Ugh! Pare de me testar!”

— Não é um teste, é a simplória sensação… 

Eita!

Réviz emergiu do chão como uma bola dentro do fundo de uma piscina, apareceu atrás, tomando presença no mundo irreal do passado. O jovem se virou com o susto. Estava ainda mais claro o responsável por isso.

— Se lembra das chamas desde o início, porém não de como o salvou.

Incrédulo com afirmação, Mark não conseguiu negar, passou a mão pela franja e tentou trazer os eventos do que realmente lembrava. Apenas a imagem das mãos em chamas e a ferida que parou de existir. Franzindo o cenho, tocou na neve, que um dia jurou esquecer como uma simples mentira, e notou o tão verdadeira era. Réviz era muito mais poderoso do que imaginava.

— Quero que veja o que, verdadeiramente, salvou seu irão.

Ventania cessou em um ar abafado, tingindo o céu nublado com o azul bombardeado por sol. O corpo de Mark — daquele mundo — ergueu momentaneamente de jeito diferente. Outra ignição, chamas e uma confiança inigualável surgiram sem prestar sinais de origem.

Curou Will e se deixou pela gravidade em uma queda brusca.

— Puro?

— Me dirá que é esquisito também?

Antes de reagir, o mundo derreteu em uma escuridão de agonia que dava enjoo. A transição entre a ativação e desativação da energia de Réviz era brusca para quem não era familiarizado.

— Minha energia pode manipular memórias… em muitos sentidos, apenas fiz questão de mostrar meu ponto.

Esfregou os olhos, arrepiado e ansioso. As definições da energia não paravam de serem atualizadas: incrível e assustador.

— Precisava mesmo ter me feito passar por tudo isso quando podia só ler minha mente? — Levantou da cadeira.

Deixou de perceber que tudo havia voltado ao normal, a cadeira não o trancou, a sala se abriu em uma casa comum, luzes calmas e uma mulher desajeitada, que comia biscoitos ao lado da geladeira. Ela limpou seus beiços com velocidade ao notar o olhar do líder.

— Não duvido de você, Mark. Você duvida de si… e isso é intrigante.

— Por que fez tudo isso se apenas podia…

— Vamos viajar amanhã para a cidade flutuante.

 

 

Skin desbloqueada:

(Mark véspera de Natal)

 

FELIZ NATAL, GENTE!

 



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