Pôr do Sol Brasileira

Autor(a): Galimeu


Volume 2 – Lembranças de um Passado Perdido

Capítulo 41: Uma Criança... Esquisita?


 

Dentro do perímetro da Cidade Flutuante, existiam muitas flores a disputar a atenção dos olhares com a lua cheia deste dia. Me chamou a atenção foi a falta de pessoas no local mais para a esquerda, antes de entrar da área urbana de fato: local desprovido de cor e alegria, flores mortas em sentidos distorcidos que contrastavam os arredores animados e povoados. 

— Plantas mortas, grama acinzentada, árvores retorcidas… digno de histórias amaldiçoadas. E… 

Gelo. Os ombros tremeram e meu nariz coçou. Os ventos anunciavam a chegada de tempos gelados, e meus cavalos relincharam. Certo… Larguei de foco o meu egoísmo e tive que propagar os devidos socorros aos animais cansados. Não possuem culpa da minha longa jornada, devo ao menos dá-los uma compensação. 

A carroça entrou finalmente em contato com algo que não fosse madeira ou terra, o serviço de terraplanagem e a engenhosidade dos aditivos usados deram o toque refinado de um asfalto liso e seguro.   

— Estrada em ótimo estado. Parecem que estão se preparando para a chegada de carruagens mais pesadas. 

Olhei em volta e percebi uma hospedagem por perto. Balancei a corda e retomei para lá. Simples, aconchegante. Essa cidade vasta e um tanto básica, embora ainda em desenvolvimento, me davam a nostalgia da minha antiga vila antes de… ser convocado e minha vida ter virado um purgatório profundo. 

— Com licença, como posso ajudá-lo? 

— Uma diária, por favor. Ah. Acredito que algumas frutas iriam ser de imenso auxílio também.  

Antes que pudesse dizer com clareza, um destes animais quadrúpedes e desengonçados da minha carruagem puxaram meu cabelo. Bastou um olhar torto que vi o rosto corado aparecer, não consigo ficar com raiva, mas, ao menos, podia me dar o tempo que…  

— Aqui está. 

— Agradecido. 

Entreguei as maçãs para cada um e logo precisei virar o rosto. Estavam tão esfomeados assim? Foram algumas horas, o jeito que comiam me fez pensar que aquele comerciante estava a fazê-lo passar uma greve de fome até que fossem vendidos.  

Que maneira cruel de cortar gastos. Qualquer remorso que senti ao enganar caiu até o abismo dos confins da terra. 

Limpei meu rosto que tinha uma massa esquisita de fruta mastigadas e reparei o chão sujo pela falta de delicadeza.  

Só que… Uma dúvida apareceu. Este sentimento de aflição e pavor circundou meu corpo.  

— Marcos? 

Havia uma página dobrada do jornal perto dos cascos dos cavalos. A inicial do título em destaque pelo negrito foi a palavra “Marcos”. A agilidade se instalou nos dedos e apanhei o pedaço de papel para tentar sanar a dúvida.  

— “Chefe Marcos desaparecido da ODST da Passagem”. Impossível. 

— Mais uma vez, essa barulheira. 

O demônio desapareceu? Desde quando? Antes que pudesse desapropriar as tensões criadas através jornal, a moça da hospedagem desabafou do meu lado. Pelas janelas da recepção, um vasto grupo de pessoas caminhavam pelo céu noturno das ruas com cartazes e placas em mãos.  

Uma carruagem os guiava a direção do movimento junto a uma mulher de cabelo encaracolado e pele escura. Havia um tipo de letreiro em mãos, que estava com uma imagem desenhada em pedras brilhantes; as mesmas encontradas na exposição do litoral. 

— Companheiros e companheiras de todas as idades, vamos restabelecer nossa força e remanejar nossa sociedade para o bem do desenvolvimento! Hora de dar a nossa virtude de escolha e escolher um destino melhor, uma pessoa melhor, um “general” melhor! 

— Qual o significado disto?! 

— Jovens e suas propagandas políticas. O chefe Marcos deu uma de sumido e deu corda para os bocós fazerem uma eleição nova para a Passagem inteirinha, incluindo a prefeitura daqui. Se-senhor! Aonde vai? 

— Averiguar. 

A jovem, no começo receosa, apontou ao letreiro no discurso e realçou meus temores no rosto.  

O desenho em cor amarela mostrou o símbolo que nunca havia visto: uma estrela que sorria. Estava mais que claro que as ações de Vitrax sobre minha imagem era uma arquitetura em grande escala.  

Fizemos questão de estabelecer um isolamento nas informações de cada setor. Porém, era apenas para os convocados manterem as atualizações em dia. 

As ODSTs eram aliadas uma das outras, somente os generais podiam compartilhar informação entre si para evitar qualquer vazamento que os façam se lembrar da guerra. 

Prefeitos deviam ser extensões das nossas mãos para mudarmos e analisarmos o contexto geral de nossas áreas, assim como tentar controlar quaisquer rastros do sinal de usuários e energia da criação.  

Se não for mentira aquela carta entregue pelo pombo? Estariam todos mortos mesmo? Não. Não. Eu sou o único que tem a menor capacidade de fugir de uma situação que sou encurralado. Uma força de destruir montanhas, portais de conectar pontas do mundo… e as chamas que faziam um demônio praticamente imortal.  

Por que eu, a singela assombração com miragens, ficou a saber disto agora? 

Uma das últimas falas de Vitrax passou pela mente: “já observou o céu estrelado por muito tempo? Sabe… Pode ser que você veja as estrelas sorrirem”.  

Respire muito bem fundo, Felipe. Hora de manter a ansiedade longe e pensar com clareza! Irei prestar atenção no movimento destes cidadãos e deixar afirmações para o fim. Minhas mãos tremiam, olhos tremiam. Estalei os dedos e sacudi os ombros. Mantive a calma e me aproximei com leveza instável. 

 

— Assombração? Alí! Na hospedagem! 

— O quê? 

A multidão ficou desordenada. Após a menção do meu apelido de guerra… Como sabiam dele? A jovem do centro me reconheceu e apontou, centrou as atenções sobre minha ida com somente alguns passos para fora do local que iria dormir. 

Raivosos, curiosos, desentendidos, interessados, enojados, piedosos, caridosos. Quantas reações diferentes para mim num mesmo segundo. Cada desejo e anseio diferente fora atraído pelos braços estendidos que queriam me alcançar. Arrancar minha carne? Um deles quase alcançou meu cabelo. 

Crer! 

A invisibilidade cobriu meu corpo com a transparência não-nítida. Escalei o teto da hospedagem e observei que mais jovens na propaganda eleitoral, que ficou violenta de repente, apareceram a cada canto da cidade.  

Usei o topo das construções para andar seguro. Preciso parar para pensar no que devo fazer. Preciso reagrupar os pensamentos urgentemente. Vou colapsar se não retirar estas dúvidas quanto antes.  

Não devo apenas começar uma luta com pessoas que talvez sejam inocentes, não quero derramar mais nenhum sangue em prol daquela perfeição maldita! 

O único local que não tinha qualquer sinal de algum suspeito que soubesse da minha identidade foi o caminho de aparência monótono e fria, o mesmo lugar da vegetação morta.  

Cada vez mais que me distanciava do perímetro urbano, mais frio e mais neve pareciam cobrir os sentidos em volta. O horizonte faltava clareza e o cansaço acometeu minhas pernas num julgamento final.  

A energia da criação é auto desgastante, pode custar minha vida se me forçar assim sem me recuperar. 

Preciso descansar e planejar novamente o que fazer. O que devo fazer se os convidados realmente morreram? As ODSTs foram tomadas? Qual era a verdadeira… dúvida? 

Assim, pude enxergar uma silhueta de uma cabana logo a frente, no meio, entre as aparências macabras das árvores

Muito ocorreu em pouquíssimo tempo, perdi a influência do meu povo e qualquer noção de segurança dos arredores. Mentiras, um usuário surpresa, a proliferação anormal do significado questionável de uma estrela sorridente. E a suspeita que perfurou minha alma.  

Disperso no meio tênue de certezas, após algumas horas que permiti a calma inspirar direto ao pulmão, a nevasca finalmente se formou com o vigor gritante… junto a uma presença que, convenientemente, continha o potencial de ser a função oposta; uma resposta.  

Aahhh!  

Todavia, cautela havia de ser sólida no meu ser. Puxei a lança e preparei a guarda para uma estocada, a ponta gelada encostou no garoto que apareceu momentos depois de eu chegar nesta cabana. O vi cair para trás, sentado, na neve fofa acumulada na porta. 

Sua silhueta, se estivesse com a atenção perdida, se misturava pelo solo esbranquiçado. Talvez seja uma ilusão, levantar tal possibilidade foi um dever a ser feito antes de sequer ser pensado.  

Não vacilei, o menino permaneceu aterrorizado e lábio trêmulos. A faceta desavisada vinha como um alerta. O cabelo liso e blusa branca realçaram a posição de um alguém que esperou pela neve com exatidão. Não havia necessariamente um calor desejável nesta cabana, apesar de oferecer proteção contra os ventos gelados. Porém… Por quê? 

— Ca-ca-calma, sinhô. Estou aqui só para te aju… 

— Prove. — Avancei a ponta de novo até o nariz. 

— Por-por favor, ihhh! Co-confie! Tenho a impressão de que, se tocar em mim, irá crer na certeza! 

Para obter confiança, precisava imensamente mais do que apenas palavras certas na altura da minha situação. Este garoto tinha um olhar determinado, apesar do pequeno corpo ter contido um contraste impensável.  

O braço mostrou a palma aberta que se aproximava da minha mão. Devia ter me afastado, mas… senti que não devia. A lentidão foi tão hesitante, e ainda tão constante. O garoto queria que eu acreditasse ao se arriscar ser machucado. 

Essa pose. Essa pose me recordou num mesmo instante o que um dia vi nas memórias de Ádnis quando chegou neste planeta e visitou a caverna. Se dois usuários de energia tiverem um contato físico numa primeira vez, um pequeno curto da energia da criação vai aparecer, que, à olho nu, seria um pequeno clarão.  

Ouvi um ligeiro resfolegar de surpresa quando puxei a lança de volta. Bastaram alguns milésimos da ignição para retornar a lança ao estado comum de uma caneta, que coloquei no bolso. O indicador meu veio em resposta. Vagamente, atento, aproximei a unha até encostar o pequeno milímetro de precisão na palma da mão do garoto. 

Parecia que, quanto mais perto, mais fechada ficava a cara do garoto, que tampou o rosto com a outra mão, ansioso pelo que ia acontecer.  

Nada. O toque veio e o meu dedo assentou e nada aconteceu. Esse garoto realmente é só um garoto. Por quê? 

— Viu! Viu! Sabia que ia confiar em mim! 

Então eu… posso mesmo confiar nesta criança? 

Ele ainda pode ser uma ilusão.  

O fluxo prosseguiu vagamente com passos lentos até para se imaginar. O garoto entrou e se acomodou em uma das cadeiras de madeira que restaram. O local foi abandonado há pouco tempo, pois ainda era ligeiramente funcional. Com a chegada da noite, liguei a lâmpada e nada mais.  

Estávamos um na frente do outro, este menino não retirou o foco dos meus olhos, me encarava como se aguardasse precisamente por um gatilho. Apesar de não ser um usuário, era natural, ao menos, crer que não era uma coincidência uma criança perdida acabar na porta de um esconderijo provisório. Bastava organizar as ideias.  

Há momentos, fique aqui e me recordei de cada detalhe que me trouxe a esta conclusão. Contudo, cada detalhe também guardava dúvidas permanentes… que horrível. 

Ele estava realmente bem? Vi os pequenos pés balançarem como uma… bom, uma original criança inquieta. O brilho nos olhos tinha curiosidade, tenacidade e firmeza de um objetivo, parecia apenas agir como uma criança, mas creio que não pensa como uma. 

— Você não veio aqui só por socorro. Explique o porquê de me conhecer. 

— Eu só sei! Tipo, bum! Agora eu sei! Desculpa… 

O milimétrico movimentar dos meus lábios desencadearam uma euforia anormal. O garoto levantou da cadeira e esticou os braços. A explosão mental abrupta quase o derrubou. Fui mais rápido e segurei antes que qualquer lugar próprio para se sentar fosse extinto.  

O local era recente, sim, mas ainda era frágil. Afinal, foi abandonado por um motivo em mente, e não impulsividade. 

— Sei que tem um certo rancor com… com… Qual era a palavra? Ah, sim, sim! “Perfeição”! E que é só isso mesmo, moço. As coisas entram na minha cabeça e bum! 

— Está a me dizer que é só um instinto? Que você, magicamente, percebe assuntos específicos e segredos militares como se soubesse de tudo? 

— É! 

Isso podia ser um absurdo jamais pensado. Vir até onde estou e, ao pensar que fingir seria o suficiente, afirmar informações que seria justo somente os envolvidos ter ciência: qualquer um conectado com aquela estrela sorridente.  

A que nível decaí para ter que desconfiar até de uma pessoa não desenvolvida. E por que tentar contaminar essa inocência? As forças de Édnis tem seus princípios dignos, embora os métodos sejam enojados… mas uma criança? Não. 

— Diga-me quem é. 

— Óia, sinhô general Felipe. A voz da minha cabeça tá dizendo que tá desconfiando de mim ainda e que sou perigo pra você. 

— “Voz da cabeça”? Diga-me logo. Quem é? 

— T-tá… Eu sou órfão, não tenho nome. Tenho apenas andado por aí desde… desde sempre! Fico um tempo de casa em casa, as pessoas cuidam de mim, mas… Na última vez, foi um moço de cabelo amarelo que cuidou de mim. E… só saí da casa dele, porque ouvi a voz dizer “saia” e “Felipe” e fui caminhando sem rumo e ia sabendo mais e a nevasca começou e parei aqui... E olha só! Você é o Felipe, não é? 

Tentei insistir em explicações, e o garoto continuou a abanar os braços como se fosse melhorar a suas tentativas. No fim, tudo se resumia a um acaso estranho que levou ao meu encontro. De qualquer forma, vou esperar a nevasca passar e dar um jeito de retornar meu caminho até Marcos. 

Cuidar de uma criança estava em último lugar na lista de afazeres, seria totalmente imprudente e vil expulsá-lo para manter longe de mim.  

As paredes não bastavam, vasculhei o lugar e encontrei uma lareira no outro extremo. Fui até lá, escutei os passinhos pesados e sem ritmo; acendi e esquentei o lugar. Pude sentir o resfolegar que surgiu pela mudança de temperatura perto ao lado. 

O pequeno ser humano me seguia pela cabana feito uma sombra de um deserto, algo impossível de ignorar. Os meus nervos cresciam. Meus dois indicadores massageiam minha temporã. Me mantive calmo… calmo… Merda! Preciso de silêncio para organizar os fatos novamente! 

— Aí, bum! Me sujei tudin de lama. A sorte que as flores brilhantes levavam a uma torre, que foi o lugar que achei alguém pa cuidar de mim. O pessoal era assustador, fugi no dia seguinte com medo hehehe! Foi tão rapidin que… Ih! 

— Quieto! 

O menino sem nome engoliu a frase com as letras à seco. Minha paciência colapsou. Mais medo rodeava seu rosto ao notar o meu. Bastou uma encarada certeira para fazer uma criança pensar mais de uma vez.  

Na mesma reta, a janela ficou clara e o horizonte estava vagamente nítido, apesar da falta de saturação do verde e marrom, que ainda eram preenchidos pelo branco. 

A nevasca parou. Alívio. suspirei e desviei da frente do garoto. Ventania assobiava pelas janelas, sentia como um sinal para que voltasse à missão. Os sapatos atingiram a neve fofa acumulada na entrada, enfim, ia descobrir definitivamente o que houve e o significado dessa estrela que… 

— Por favor, me escute! 

— Vá para casa. Ou ache uma. Sinceramente, não dou a mínima. 

— Po-por favor! Ah! Sim, sim. Entendi… Sinhô general, se eu dissesse que Marcos foi pro beleléu há três semanas, você me ouviria? 

— Como?! 

Meu pulso foi fixado pela pegada. O garoto me segurou e me interrompeu para que não saísse da cabana. Insistiu em contrariar minhas decisões. Contudo, quando me virei, o menino olhava para cima feito alguém que buscava uma consulta. Essa ação… seria a voz que mencionou. Esta voz sabe de tudo? Tem algum usuário de energia em contato?! Podia ser possível. 

— Com quem está falando? 

— A voz! A voz! Ahhhhh!  

— Quero saber com quem está falando! 

Este projeto de desgraçado está a me testar! Se sabe de tanta coisa por “instinto de araque”, como não pode estar a, simplesmente, receber informações de um inimigo. A história bate, mas eu só… não quero que bata, ainda não aceitei que isto também é fato. 

— É a voz, sinhô! Tenho ela desde que me dou por gente, ninguém acredita nela... É uma voz rouca e assustadora. Me acostumei. Parece com camponeses batendo panelas e gritando desafinados, acho que chamavam de “metal”. 


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