Volume 2 – Hospital Flutuante
Capítulo 46: A Praça da Tourada (Parte 1)
— Lá, ele chegou! Me deixa pegar um ângulo melhor!
— Aham...
Rasgando os céus, imerso no barulho estridente que causava, o helicóptero manobrava sobre o perímetro das áreas próximas da instalação de saúde. Um rapaz, que segurava uma câmera robusta fixa ao veículo, apontou para o estacionamento ao notar o alvoroço de cidadãos que acumulavam ao redor de uma van preta.
Antes de assentir ao colega, o piloto viu uma suspeita nuvem de poeira surgir atrás de um telhado; o rastro de algo grande como um caminhão havia nivelado parte da vegetação mais ao fundo do hospital.
— Bora, bora, bora!
— Hm? Aham!
A curiosidade o quase fez permanecer na rota para descobrir se era uma terraplenagem comum, porém seu colega levantou a voz e o fez emergir dos pensamentos.
O helicóptero se redirecionou completamente até o carro. Ao ter a câmera a postos para capturar a abertura da porta da van discreta, uma voz surgiu no comunicador deles:
— Ih, ok. Erm... Temos imagens ao vivo da chegada do prefeito ao Hospital central da Cidade Flutuante. Seus seguranças estão aliviando a pressão e colhendo espaço neste momento. Fiquemos atentos para o posicionamento que virá em instantes.
A repórter descreveu a visão aérea e criou expectativas para os ouvintes. A apreensão na voz destacou uma certa insegurança. Na verdade, não eram só a equipe da imprensa que estava cautelosa quanto o proceder, os seguranças se entreolharam enquanto o suor frio escorria pelas testas.
Enfim, um pé saiu do veículo, seguindo do outro pé lentamente. O prefeito Ernec apareceu em carne e osso perante os cidadãos, que mais se agitaram ao ver o dono do cabelo loiro atrás do vidro escuro.
— Me deixem falar com ele, por favor!
— Foi você que mandou o anjo pra me ajudar?!
— O senhor tem alguma palavra preliminar sobre o ataque da noite de ontem?
— Abram caminho, AGORA!
Enquanto as pessoas buscavam aberturas entre os braços dos seguranças para satisfazer os anseios, o prefeito saiu do carro e manteve a cabeça baixa, tensionando o rosto a cada nova fala que ouvia.
Uma melancolia atingiu o local, câmeras focaram e repórteres cessaram qualquer manobra. Sobre uma lágrima que escorria dos olhos do prefeito, somente o helicóptero era evidente como barulho.
O corredor entre a multidão de abriu e a porta de entrada do hospital estava livre. Caminhou com passos pesados e subiu os degrais, ficando com a completa e absoluta atenção de qualquer um ao redor.
As pontas do cabelo loiro estavam ligeiramente mais relaxadas do que sua aparição no palco do parque, as emoções ausentes de animação ressoavam pelo corpo; ninguém pode respirar direito, pois o momento que queriam havia chegado: o que o prefeito quer fazer agora?
— Concentra! Deixa esse trem parado no ar.
— Mas... João, tem algo de errado por ali!
O brilhante blazer azul marinho resplandecia ao ter os inúmeros microfones apontados para quem tinha a próxima palavra, assim, a transmissão aérea enquadrava o rosto do prefeito no centro da visão até perder o equilíbrio num instante.
O piloto havia se distraído outra vez, direcionou o bico da aeronave para os fundos do hospital, que levavam para o vão vasto dos campos.
— Preciso ser o mais breve e sincero: o ataque de ontem pode ser apenar o começo. Pode ser um estopim que preciso controlar, que preciso...
— Pra traz!
— Ahhhhhh!
O segurança mais próximo forçou o prefeito para o lado, os fazendo desviar por pouco de uma mulher que correu de dentro para fora e tropeçou escadaria abaixo. Foi pega por um rapaz, antes de acertar a cabeça no chão, mas o ignorou e continuou a gritar e correr adiante.
— Gabriel?
— Aquilo são chifres?!
Um estrondo reverberou no ar, a estrutura tremeu e cada pé pode sentir algo colapsar. O helicóptero foi atrás da origem do barulho, e o homem da câmera destacou bem o que havia ao chamar pelo piloto: uma enorme abertura que perfurou inúmeros cômodos adentro do hospital numa linha reta.
Ao enquadrar o vídeo às pressas, o ar escapou.
— Não tá pegando!
— Altera a frequência então!
Cada variação de captura foi testada, cores mudavam, ângulos, alturas, temperaturas... nada foi suficiente para comprovar o monstro metálico e negro logo abaixo.
—Tem alguém lá...
— O quê?
— Tem alguém com aquilo!
O piloto paralisou o veículo no ar e permitiu a rota clara de visão. Portanto, seus olhos viam um enorme touro de quase seis metros no final do túnel criado de repente, mas somente a câmera podia notar o jovem de blusa azul no corredor ao fundo por trás do monstro.
— Ahhhh! Socorro! Ahh... Uhhhhh!
— Senhor prefeito! Venha!
Seguindo a orientação da segurança, o prefeito deu uma olhadela para o interior do hospital. Teve o braço puxado a força e desequilibrou com a velocidade. Os seguranças ficaram em sua volta e o escoltaram em direção do carro.
Porém, o barulho foi insuficiente para causar a posição defensiva, pois foi a quantidade maior de pessoas que vinham dos corredores e gritavam por ajuda, que surgiram da mesma causa da mulher adiantada de segundos anteriores.
Os visitantes do lado de fora se assustaram e não identificaram a causa de imediato do pânico sucinto. Repórteres tentavam persuadir o prefeito, mas falhavam ao ter a visão cortada pela corrida das pessoas desesperadas.
Porém, um último corredor parou perante os degraus da escada e levantou o peito para gritar com toda a força:
— Fujam! Fujam o quanto puderem! Vamos dar um jeito!
Ao escutar a voz forçada gritar em imponência, o prefeito virou e constatou as chuquinhas azuis e terno branco. Seus olhares conectaram. No entanto, a moça se virou quando a aura surgiu pela pele ao ir de volta a origem do ataque.
— O touro...
Anda, pernas. ANDA! Droga! De novo... não consigo mexer. Meus pés começaram a deslizar para trás... Mais rápido. Rápido! Aperte. O. Passo. Eu vou morrer!
O barulho do tênis pela cerâmica incomodou os ouvidos, mas esse é o menor dos problemas agora!
— Ih!
Esse trem começou a me encarar, ele... tá esperando eu correr? Sem chance de eu derrubar essa coisa. Sem. Chance. O arpéu. É. Ele tá aqui, consigo sentir, mesmo sem vê-lo.
— Armar!
Vai! Vai! Virei para o corredor e só lancei o gancho para frente, não consigo lutar com isso. Preciso sair daqui. Preciso mesmo. A corda me puxou e só me lancei pra fugir desse diabo.
Meu corpo tá tremendo todo. Eu. Eu... O quê?
Pisquei várias vezes enquanto era arrastado na maior potência possível pelo gancho. É o fantasma. Ele também tá usando um rope dart? Ele tá na minha frente... me imitando?
A parede chegava mais perto, e não me dei conta. Acertei com tudo de cabeça no fim do corredor e cai no chão. O tempo não me deu trégua, os tremores vinham logo atrás, o touro começou a arrastar os cascos, preparava outra investida com a ponta dos chifres.
O fantasma... invés de bater na parede, aterrissou com pernas e pulou de volta para o chão perfeitamente, começou a correr e seguiu pela direita... A entrada? Ele tá indo pra entrada? Ainda é longe daqui, mas...
— Urghhhh!
Merda! Levantei o corpo e segui o fantasma sem pensar. Ele tá fazendo algo que é diferente de imitar.
— Ah!
O touro apenas seguiu diretamente e ignorou cada parede. Não, não. Não! Não dá tempo de lançar o arpéu. Tenho que... As chamas! O fantasma começou a criar as chamas pelo corpo, e elas eram bancas também que nem ele. E... lançou elas?
Lembro deste diabo sentir dor com elas. Vou fazer que nem ele.
— Ferva!
A eletricidade apareceu, a ignição eu acho, e fez minhas mãos incendiarem. Sacudi os braços como se fosse espantar esse bicho, que freou na hora na direção do touro. O fogo alastrou pelas patas e o vi rodopiar em agonia! É! Funcionou!
Esquerda? Tá bom, agora esquerda... Espero que dê certo, vai ser melhor que correr pelo hospital sem rumo e parar num beco sem saída.
Reto. Esquerda de novo. Pulou sobre a maca no meio. Direita. Reto. Direita? A entrada não fica para o outro lado? Tem sentido nenhum. O fantasma seguiu por um lado e insistiu para o outro completamente fora de rumo com o arpéu. Tenho que cobrir essa distância logo.
Escolhi o lado oposto. Este fantasma tem mais segredos do que parece, ele parece me imitar enquanto não imita, será que ele está me guiando? Então por que foi para a direção errada?
Eu tenho que...
— Urhaah!
— Han?! Ahg! O quê?
Antes de perceber, o touro surgiu certeiramente pela parede. Era como se... soubesse que eu fosse por ali. Como se soubesse que não segui o fantasma.
Sangue... Minha. Ah. Tem sangue escorrendo pela...
— Blegh... Cof.
Minha visão ficou turva e só via um buraco que tinha a minha silhueta. Fui arremessado pra longe. Tenho sorte que essas paredes são de drywall, não sobreviveria por um impacto desses.
Foram umas cinco ou sete? Preciso sair daqui antes que ele me alcance novamente. Quando pensei em levantar o corpo, algo subiu pela garganta. Realmente é sangue. Passei o toque pela barriga e... Ufa. Tem. Nada perfurando dessa vez.
— Não. Esquece. Merda! Dói demais.
A visão ia e voltava, podia dizer que me levantei rápido demais, só que a diferença é que me deitei rápido demais... na base da força bruta mesmo. Beleza, maravilha, ótimo, boa, magnifico, incrível e impressionante. Respirei fundo, tentando recuperar os sentidos e somente uma palavra veio à mente depois dos adjetivos:
— Ferva! Ferva!
Isso! Tô pegando fogo! No sentido bom, óbvio. A dor passava em segundos, mas a fadiga ainda era a última coisa a passar. Apontei o arpéu pra cima e o gancho prendeu no teto. Me puxei o suficiente pra me levantar como uma bengala invertida.
— “Um tapinha não dói”, eu acho.
Olhei em volta e percebi que estava num armazém, havia medicamentos e outros equipamentos, mas o melhor era a placa de saída que via pela janela da porta. No entanto, o touro não estava a vista no outro lado dos buracos em série.
Devagar. É. Eu ainda queimava por um tempo, a pancada foi muito forte para eu me curar em instantes. Arrastei as coisas para o lado e liberei o caminho até a porta. O fantasma, eu o vi correr no corredor mais ao fundo, mas a saída tá apontada para o outro lado...
Não ligo! Vou só sair deste labirinto de uma vez!
Apertei o passo e tentei correr até a bifurcação ao lado.
— Cadê a Luri e o Feites?! Lá vem ele de novo. O touro tá brincando comigo?
Além dos tremores, passos acelerados ecoaram no fim do caminho. Tem alguém fugindo também! Tenho que ajudar.
Corri adiante e... Feites? Ele dobrou a curva na minha direção, a lança dele tá na forma original. Ele a usou pra se apoiar e fazer a curva pelas paredes.
O tremor ficou mais forte. Mas... Tem nada atrás de mim. Quando me virei, o lado que o fantasma corria atrás estava livre. Espera. Me virei lentamente na direção de Feites, o touro estava tentando alcançá-lo feito um gato e rato.
— O arpéu!
— Tá, é...
— AGORA!
Ele estendeu o braço e apontou para o outro lado do corredor. Ótimo e maravilha... Mal tenho adjetivos o suficiente na cabeça pra descrever o quanto as pernas tremiam.
Lacei o gancho o mais longe possível. Eita! Meu corpo foi levado que nem um foguete! Feites me alcançou e segurou na minha perna, o peso dele foi nada para impedir a corda de se mover.
— Ih!
— Foco!
Tentei manobrar para desviar das cadeiras, porém, tinha alguém que não tava facilitando meu desespero. Que negócio que me cutucou? O touro ta chegando perto!
— Recue, besta horrenda!
— SUA LANÇA ATIRA?
O que me cutucou foi o cabo, que foi girado quase com maestria e apontado para a cabeça do touro. A lança brilhou e brilhou, era como aço aquecido, só que era roxo pelo jeito. Um som desagradável e fino apareceu e arcos de energia passavam pelas duas pontas que lembravam um garfo. E... acertou bem a fuça dele!
— Cacetada.
— Permaneça comigo! Ande! Aquilo vai só atrasá-lo.
Assim... eu não queria levantar expectativas. Sei nem como estou pensando direito agora, a adrenalina era tanta que mal percebi que a parede tinha chegado. Acertei a cabeça no concreto e pude jurar que me desenhei nela.
Pra variar, Feites deve ter feito um ato gracioso ou algo assim. Não vi, apenas fui puxado pelo capuz. Eu fui bem quando estava com o fantasma... só com o fantasma.
O monstro ficou desorientado, remexeu o corpo e derrubou parte do pavimento de cima sobre si, a poeira subiu e apagou a visibilidade do corredor. Era claro que não ia matar esse bixo, nem Luri deu conta. Afinal, cadê ela também?
— E a Luri?
— Qual é teu problema, Mark?! Saiu da proximidade e atrapalhou a distração!
— Ei! Vocês tinham sumido!
— Fomos avisar os que estavam no hospital. Acima disto, teve a indescritível ideia de fugir pela entrada? Não conheço esta besta, mas sente atração aos usuários de energia, e queria levar ela para onde estavamos evacuando?
— Eu...
— Permaneça comigo!
Feites ficou tão irritado... Aquela expressão de insatisfação que mostrou pro Réviz. A voz elevou enquanto corríamos e me deixou sem jeito. Droga! O que eu devia ter feito? Por que parece que sou o único errado? Estava correndo pela minha vida!
No segundo que desviei do caminho do fantasma, a situação piorou. Preciso tentar falar com ele quando o ver de novo! Se for possível ou algo assim.
Curvas e curvas até chegarmos numa porta dupla. Estávamos no estacionamento dos fundos do hospital. Feites avançou mais e apontou a lança, outro tiro destruiu o muro gradeado que envolvia o perímetro do hospital.
— Já evacuei o resto.
— Excelente.
— Luri!
Essa biruta aterrizou do meu lado, foi num mortal? Que isso? Tão brincando de circo quando só eu tô brincando de rato? Mesmo assim, tava feliz por ver ela. Ainda é um touro como nosso inimigo, consigo manter a calma logo quando temos a Luri pra proteger a gente... e eu também se olhar dessa forma.
Atravessamos o muro e estávamos em terreno natural. Realmente, vir pra cá era a ideia. Os campos terraplenados eram ótimos para saber exatamente de onde o touro viria.
Tremores não demoraram para ressurgir. A porta que passamos foi obliterada junto as paredes que a seguravam.
Os destroços vieram na nossa direção feito mísseis teleguiados.
— Já tô ficando craque nisso... e é uma reclamação.
A corda continuou a sair pela base do rope dart e balancei. É só fazer a ignição ficar constante que a corda vai se tornar uma arma rígida. Respirei fundo e girei o ombro de cima para baixo.
— Boa, Mark!
— Hm... arpéu deveras intrigante.
O rope dart podia fazer muita coisa, a vantagem da distância é legal, mas é um instrumento de locomoção antes de defesa ou ataque, não consigo fazer isso sem que a corda saia primeiro, não é que nem uma adaga ou sei lá...
Consegui atacar os destroços e desviá-los para longe, não foi muito diferente da torre da ODST ou da roda-gigante.
Pra isso, preciso usar as chamas nesse bixo. O fogo espalhou pelo meu corpo assim que vi o touro depois da nuvem de destroços.
— Ugh! Ugh... Uuuuhg!
— Luri me contou sobre a efetividade reversa de tuas chamas perante esses monstros, mas peço para aguardar.
— Ué, é só nois bater nele sem dó!
— Você não consegue fazer nada contra ele, Luri! E... eu não queria fazer também.
— Não repetirei: vamos extrair o máximo de nossas energias. Mark e Luri, se afastem e escutem meus comandos!
O touro expulsou a poeira nos arredores e ficou bem exposto no estacionamento. Feites levantou uma guarda com a lança a postos e pediu para irmos devagar com os ãnimos. Só se for o da líder aí, eu queria só fugir mesmo.
Luri ficou confusa ao estalar os dedos, porém, a nossa visão foi bloqueada pelas costas dele.
Impediu que a moça avançasse com a mão aberta logo a frente. Tinha muita convicção, e eu não vou negar uma chance de me afastar!
Os chifres foram de um lado para o outro, o touro curvou o corpo e os apontou para nós.
— Mark!
Foguetes? São tão rápidos. Pareceu mais fantasioso que todas aquelas coisas... Mal percebi e já estava no chão. Luri pulou para me tirar da trajetória dos chifres, mas ela... Luri! Um deles a arrastou junto!
A terra dos campos era dilacerada aos poucos por tantos impactos, o rastro se propagou e parou alguns metros atrás. Aquilo não ia acabar com aquela mulher, né? Né?! E Feites não mexeu nem um músculo, não viu que a Luri foi acertada?
— Como deduzi. A besta está a dar prioridade a Mark. Não me resta escolha.
Acho que entendi errado. Parece que Feites estava murmurando para si mesmo. Escutei rapidamente antes de correr até onde o chifre enfincou. No amontoado de solo, um pequenino morro apareceu.
Minhas chamas já estavam preparadas para arder, pena que não precisou... “pena” não, ótimo que não precisou! O chifre estava pendurado na aura de Luri, milímetros de tocar a pele.
— Ninguém bota chifre em mim, nunca serei corna!
Pegou com as mãos livres e jogou no chão o pedaço de osso metálico e enorme. A aura ruiu e estilhaçou como vidro logo em seguida. Quer dizer que o touro não vai matar a gente tão fácil. Esses escudos são uma perfeição mesmo.
— Permaneçam aonde estão! Havemos uma única chance.
Íamos voltar para perto, mas o touro começou a investir da outra ponta da visão. As batidas no chão e cascos de ferro pisando com todo o peso no chão era como um carro de som lotado de grave forte.
Xuxu beleza, incrível e... Indescritível? Meu corpo gelava com a expressão raivosa do mostro, já perdi adjetivos pra acalmar. Feites nos avisou para ficarmos aqui e, então, sua ignição ficou tão imensa que parecia um farol. É roxo demais pra um único dia só...
A eletricidade espalhou pelo chão e o vi desarmar a guarda, segurou a lança de um jeito estranho, invés de apontar para o touro, arrumou a pegada como se movimentasse um mero pano.
Um toque estranho apareceu no meu ombro. Com uma cara estranhamente centrada pra cara deu pau, Luri encarava a cena adiante e simplesmente deixou escapar um diacho de um:
— Let him cook.
EU SOU O ÙNICO COM MEDO, tá confirmadíssimo.
Armei o rope dart de novo só por precação, parece que ninguém entendeu que sou despreparado. Parece que sou quem perdeu o plano que nunca existiu.
— Em ditados tecidos em mistério e luz, no centro da perfeição, onde a vista se conduz. Ilusões dançam no véu do tempo, sem uma vez sequer temer, num reino de espanto, é onde aprendes a... Crer!
Eeee, eita! A voz de Feites pareceu distorcida, parecia muito um encantamento... Palavras ajudam a controlar a ignição, sim. Mas encantamentos? Ele não tá só se exibindo nessa altura do campeonato?
Ah, não... Aquela palavra foi a mesma que o tal general da memória usava? O que vai acontecer? É muita pergunta de uma vez, sinto que vai dar merda.
Uma cúpula começou a se estender, envolveu a gente e o touro junto com uma parte do campo, ficou escuro num instante e... Hãn? Uma espécie de arena começou a distorcer pela visão. Cocei meus olhos e parecia que a realidade estava conflitando.
— Pode ser um monstro e aberração, no entanto, tua parte animal ainda existe. Nisto que eu creio.
Arquibancadas preencheram os arredores e o hospital escafedeu. O céu ainda estava livre, era o mesmo de antes, só que tudo mudou! E como se estivéssemos num lugar totalmente diferente.
O touro parou com o breu surpresa e ficou tão desorientado quanto eu! Então... foi como ontem naquela festa. É tudo uma ilusão. Por que criar um cenário desses numa luta? Não é possível.
O bendito tava com uma roupa de toureiro. E mais: o jeito desengonçado de segurar a lança era porque a, também bendita lança, virou uma muleta, aquele trem que é só um pano vermelho.
— Creio que crê agora.
Ele ajeitou a pose e mostrou o tom de vermelho vívido para o touro, que finalmente tirou os olhos de mim e se encantou, odioso.
— Nossa! Bela jogada, Feites! Muito, muito bom! Te dou nota um. O gingado perdeu sincronia com as falas de efeito.
— Tá levando na brincadeira, Luri? Tem que proteger a gente.
— Nah, ele ganha.
Entrei numa furada. Ser um terceiro nível é um teatro de comédia pelo que parece. E o plot é a minha morte.
Cascos rangeram, pano foi estendido, olhares desproporcionais ficaram fixos. Feites mostrou o objeto de distração para o touro, que começou a contrair cada peça metálica como um cubo mágico vivo.
A silhueta negra era estranha de longe, era como se estivesse encarando uma imagem de duas dimensões. Começaram a traçar o contorno de um círculo, rondando um ao outro.
A distância era ainda grande, uns cinquenta metros talvez, mas bastava o mostro correr de verdade que tocaria Feites num instante, não pode ter vacilos. Estive ainda mais atrás, fora da reta daqueles ossos pontudos de aço.
— Fica esperto, sei o que ele quer fazer.
— Me conta.
— Se liga no seu arpéu que eu te protejo.
Lá vem ela de novo. Ou não. Antes de perceber, minha suposta líder tinha se restabelecido? Luri apontou para meu pulso assim quando a ignição tomou forma. Escudos nos envolveram e fico claro a minha função.
Atraímos o touro para longe das pessoas, fizemos o possível para ficarmos em segurança, apesar de ter me curado uma vez hoje. Vou tentar ficar calmo, tem um vento gelado da manhã aqui e minhas chamas não são do tipo que esquentam... Vai dar tudo certo.
— Uhg?! Ugh... Ughh!
O monstro viu a cor chamativa tremular com o vento e ficou em dúvida até uma veia de ferro saltar pela testa negra. Chifres cresceram e apontaram para Feites, que mantinha a trajetória fixa.
— Vamos criar uma brecha.
Vidro? Um vidro quebrou aqui perto? Impressão minha ou Luri deu um peteleco nela mesma? Só aquilo foi o suficiente pra quebrar a aura? Nossa! Ela conseguiu aumentar a velocidade dela. Como?
Ela correu na direção da besta e sua silhueta ficou tinindo como um carro polido, os escudos tomavam forma física pela aura em volta e ficavam reluzentes num azul escuro. E eu? Vou ficar parado?
Não tinha certeza do que fazer. Os dois guiavam o rumo do conflito e eu... meio que gostei disso, não consegui esconder um sorrisinho de imaginar que não teria que sentir a sensação da morte. Sem contar que isso podia ser um ciclo de bruxa.
— Confia, confia, confia! — repetiu Luri na corrida.
A vi estender as mãos para o focinho do touro, os cabelos balançavam com a velocidade, os pés ficavam saindo parte da ignição feito um velocista que vi num filme um tempo atrás.
— Ahg! Mark! So-sobe nele! MARK! MAARK!
Luri conseguiu segurar a investida que Feites conduziu e desacelerou o mostro, arrastando a terra pelos pés. O bicho se contorcia, preso na pegada das mãos delicadas. Porém, era diferente, o esforço que fazia para manter o bicho parado era propagado em rachaduras pelo escudo.
Um vulto branco nas costas do touro... O meu fantasma apareceu em cima. Minhas sensações ficaram turvas por um momento, aquele ser esquisito apareceu num piscar.
Pelo o que entendi... pelo o que eu... entendi o quê? Esse fantasma estava a fazer o que eu devia fazer. Eu pensei em seguir o comando de Luri e logo o vi montar nas costas do touro.
No mesmo instante, meu avanço paralisou, foi que nem ontem do parque quando fugia das outras criaturas. Naquela galeria estranha, eu queria só achar a maneira mais fácil de fugir e...
O fantasma apareceu agachado.
Eu tinha seguido correndo e fui atingido logo em seguida.
Hoje, eu tomei a decisão contrário após segui-lo e...
Fui atingido logo em seguida.
Esse ser misterioso sempre apareceu para me alertar do pior dos resultados?
Ou ele sempre apareceu para me mostrar o melhor dos resultados?
— Porra! Aaah!
O escudo quebrou. E a moça foi lançada para cima numa chifrada. Não consegui ver se ela ficou bem. Meus olhos não conseguiam sair daquele fantasma montado no touro.
— Uuuuuuugh!
Sem pensar duas vezes, me tornei o próximo alvo. Mas minhas pernas não mexiam, porque eu acho que me lembrei de algo importante:
— É uma visão minha do... futuro?
Impacto ruiu pela minha consciência, meu corpo ficou ligeiramente dormente, embora eu pudesse dizer que algo pontiagudo atravessou meu peito.
O touro havia saído das garras de Luri e avançou em mim.
Escuro, frio na barriga, vômito, vento, chão e, depois, grama.
Meu cérebro parcelou as informações que a vista sussurrava.
Campo aberto. Feites conduzindo o touro. Luri reerguendo da queda, suja e machucada.
Após ume piscada fraca, de algum jeito, eu estava de pé novamente, mesmo apenas com a impressão da minha visão. Era estranho, podia jurar que estava observando os arredores do meu corpo, porém, não sentia me fazer nada. Tinha algo no automático.
Eu virei meu próprio observador em primeira pessoa? Tá tudo tão... calmo.
Um braço se levantou. Abriu e fechou o punho. Encostou no meu peito e minha ignição apareceu.
— Incinere.
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