Pôr do Sol Brasileira

Autor(a): Galimeu


Volume 2 – Hospital Flutuante

Capítulo 44: Desentendimento


 

As coisas todas… voltavam.  

Invés de dúvidas num caminho árduo do passado de milênios atrás, a realidade restaurou, no agora, em situações que tinham a ousadia de serem simplificadas como “esquisitas”.  

Mais ao fundo do centro da biblioteca, estavam os irmãos de longa data, quietos por fora. Will e Nirda não tinham respirado mais rápido ou devagar, talvez até o batimento cardíaco tenha acompanhado este fato superficial.  

Era um gradiente de emoções um tanto linear naquela reunião. Perto da parede lisa, onde foi projetada as memórias de um antigo usuário com os poderes ilusórios de Feites; Réviz e Luri se contrastaram em tensão e calma. Quanto mais longe daquele foco, mais o ar ficava pesado, não por uma sensação de medo ou fúria, mas por simplesmente pela ausência de algo. 

Feito o último da fila, Mark estava com os olhares fixos em Feites, os dedos subiram como um ouvinte curioso de uma palestra, porém, encerrou a tentativa ao usar o mesmo movimento para coçar a franja branca.  

Enfim, piscou uma, duas ou três vezes. Era incapaz de saber se piscava por necessidade fisiológica ou nervosismo, ou medo, ou aflição.  

A cabeça inclinou e constou novamente a presença dos irmãos sentados. Só que a coceira insistiu mais, aumentou a força do toque dos dedos na testa e… encarou a mesma mão.  

Era um hábito um tanto previsível de uma mente analítica do real: insistir em achar uma causa para essas coisas todas. Infelizmente, naquela noite, havia achado uma resposta para todas essas coisas, uma resposta para a pergunta que aquela mesma mão criou. 

Situações inteiras vieram e já foram. Estas mãos eram o resumo da inversão da função que descreveu a vida desde o momento que fissurou nelas na primeira vez. Mark havia aprendido a lidar com absurdos, invés do olhar assustado em pânico como no acidente do ônibus, seu rosto guardava uma melancolia de um vazio.  

Faltava algo, e isso pesava a sua mente. 

Se o medo some, coragem viria? Ou um ceticismo? 

Descobriu a verdadeira razão. A razão que sincronizava as memórias que possuía até agora, dos tormentos que viveu e da confusão que se entrou.  

Um acidente com o ônibus num dia conveniente em baixa de alunos, uma adoção tão esperada que foi uma desculpa para perseguir a missão de outra pessoa, fez uma visita de mentira para apresentar o novo fardo com a energia e, por último, uma viagem que selava qualquer compromisso com um real sem tantas complicações. 

— A profecia marcou início, este jovem é a prova disto, da exata maneira que também me tornei prova. 

Feites levantou a voz e ignorou o desconforto que Réviz tinha com aquela situação. Os olhares seguiram o dedo levantado, que apontava para a direção de quem tinha a blusa azul. Deu passos adiante ao chegar na sua frente. 

— Está muito mal explicado para quem se diz ser confiável! O que garante que essa historinha é uma mentira sua... 

— Terá que confiar nas minhas palavras, minha energia não é prova suficiente? Poupe-me. 

Réviz gritou, Luri se assustou com o impulso da voz e soltou o ombro por reflexo. Feites, por outro lado, nem fez a questão de ver quem contestava as decisões; continuou a ir para Mark enquanto mostrava as costas como a total falta de delicadeza. 

— “Mark” é seu nome, correto? Pois bem, Mark, precisamos nos encontrar com o atual prefeito, poderemos marcar o plano assim que termos as memórias evidenciadas plenamente. 

— Memórias? E-eu… devia me lembrar de algo? 

— Vai me contar que não se lembra? 

O cabelo reluzia levemente em um roxo, entretanto, a resposta do jovem fez o brilho apagar numa quebra de expectativa. Feites desviou o olhar, incrédulo com as palavras. Nem por um segundo, chegou a duvidar do que ouvia, pois reconhecia que a reação do jovem não era uma teimosia ou desconfiança. 

Mark havia as mãos na frente do rosto, a ligeira ignição ciana fez uma chama acender e desaparecer quase que em instantâneo. Seja o que de fato queria mostrar, apenas deixou claro a instabilidade mental; detalhe que não devia existir em quem tinha o título de ser um suposto reencarnado de um general de milênios atrás. 

— Luri, arrume os dois! E Mark! Iremos sair desta cidade quanto antes! 

— Será o primeiro a morrer quando pisarem na ODST que vieram! 

— Cala a porra da boca seu… 

— Se, supostamente, sou um farsante, explique-me a razão da minha ciência que levou anos procurando por verdades, porém, as ignora assim que as ouvi. Pois bem! — Feites controlava a postura até se virar para Réviz e dispersar a pressão com volume igual ao vice-líder. — A mulher que chama de “Quiral” foi sequestrada pela estrela sorridente, os responsáveis que lideram as ODSTs são os culpados. 

— Impossível… — Luri soltou a surpresa com as mãos sobre o peito. 

Han?! 

— Criaturas negras, não estou correto? Pois como sei disto?! Pelas histórias escritas em cada página e o contato com o prefeito, que também é um infiltrado assim como aquele que acobertou Felipe. É o único que pode nos confirmar na severa certeza. Precisamos ir ao seu encontro. Ou vão para qualquer outro lugar e arrisquem estar presentes para outra chacina. 

— Não fica perto dele, Mark! Vou cuidar disso! 

— Mas se a gente… 

PAREM! 

A cadeira foi arrastada num salto impetuoso, o ruído incomodou os homens que discutiam, que estavam quase a se chocar numa argumentação que se traduziria a uma ameaça de agressão. No entanto, as falas gritadas foram silenciadas pelo pedido inesperado daquele que ficou calado desde o momento que Mark saiu do quarto. 

Will, imerso numa penumbra que cobria seu rosto, se levantou e derrubou a cadeira. Colocou-se no meio dos dois usuários de energia que tinham nervos à flor da pele. Apesar de sua voz ter ganhado a competição de volume, as mãos inquietas, tremendo em nervosismo, denunciavam a falta de credibilidade naquela vitória. 

O peito erguia e descia, a respiração acelerava como se estivesse a expelir algo do fundo da consciência ao usar sua completa força. Dentes espremeu e o queixo ergueu, embora que por minúsculos milímetros; enquanto as pálpebras tentavam conter os pequenos espasmos. 

Assim, revelou um rosto tanto quanto perturbado, um rosto que fez o folego de Mark se cortar, e continuou: 

— Cada um tem seu motivo pra acertar. MAS quero pedir que nenhum deles a faça chorar! 

Seguiram a direção do menear da cabeça, que guiava até o assento logo ao lado. Nirda ainda estava sentada na poltrona ao lado da cadeira caída, o fato determinante da medida preventiva do irmão era o desenvolvimento do simples ato dela ficar sentada: a menina abraçava os joelhos e apoiava a testa sobre, escondia a tristeza numa total falha. 

A raiva acumulada no local foi dispersada com o novo ruído. Após ter as condições da briga destacadas, o verdadeiro silêncio pode ser instaurado — eram o que começaram a desejar. Mark e Luri foram até a poltrona de imediato, e os causadores de tumulto se arrependeram imensamente ao derreter os olhos intensos num remorso. 

Nirda soluçava devido às lágrimas, tentava conter a voz e não conseguia sempre. As costas gelaram ao sentir o toque do jovem de cabelo hipérbole, que se sentou ao lado para confortá-la.  

Luri fez o mesmo processo, mas os dedos dela não obtiveram o contato físico desejado. Nirda abraçou Mark com tudo que possuía e desviou do alcance da pegada da moça de chuquinhas. 

— Nirda… 

Vamu volta pro orfanato, Mark. Por-por favor! Por favor! Por favor! Por favor! Quero ver a Maria, que-quero ver a Martía! Haaaa! 

A atenção sequestrada pela menina revirou a garganta de Mark, o peso dos bracinhos, que o apertavam constantemente, tornou combustível de uma raiva que cresceu pela espinha. Levantou a irmã e a segurou nos braços, os choros se concentravam nos ombros e não pode aguentar ver esta situação continuar. 

— Chega!  Eu-eu vou acalmar ela. 

— Frederico, mostre o caminho. 

— Sim, senhor. 

Pesados pés correram para a fenda que saia da biblioteca. O vazio incerto que possuiu há pouco pareceu um singelo mal-entendido após acelerar de repente. Will logo o seguiu para retornar para a sala de estar da mansão, conduzido por ele enfurecer do irmão. 

Ao lado da fenda, Frederico estava de prontidão. Recebeu o comando de feites e foi a frente de Mark imediatamente.  

Cabeças curiosas eram avistadas no final do túnel que atravessava o vale branco imerso ao nada. Outros empregados se mostravam preocupados, medrosos e inquietos com o proceder da reunião. 

Feites suspirou ao perceber que havia perdido a postura de um verdadeiro anfitrião de respeito. Passou os dedos pelas sobrancelhas e estalou o pescoço. Descontente com seu desempenho provado, voltou-se a Réviz e disse: 

— Resolveremos posteriormente. Poderei responder as questões seguidamente como desejar amanhã. No entanto, no comprimento da minha função, devo proporcionar um descanso adequado. Meus serviçais os irão auxiliar de todo o necessário. Perdão. Licença… 

E a cerimônia havia se encerrado de vez — sem mais ou menos. O segundo puro esclareceu as últimas pontas e foi embora também da biblioteca. Restou a líder e o vice do terceiro nível do Segundo Setor, que se entreolharam, indecisos em iniciar uma fala ou dar continuidade ao silêncio. 

— Faz quase duas horas desde que saímos do parque, Réviz. Precisamos, mais que qualquer outra coisa, buscar um pouco de cal… 

— Dezoito anos! Dezoito anos. — Réviz balançava a cabeça, como se negasse para si o fato que a mente não engolia. — Dezoito anos que procurei traços da Quiral. E hoje, ouço um desconhecido comentar absurdos como se soubesse da minha vida inteira. 

— Minha irmã não iria querer que se deteriorasse por causa dela. 

— E você fala como se ela estivesse morta! 

Luri foi atingida no coração com o último apontamento. Afastou o rosto e deixou uma lágrima escorrer pelos olhos fechados. Rapidamente limpou a trilha de emoção com a mão e se aproximou de Réviz, engolindo seco. 

— Vamos… vamos descansar, Réviz. É uma ordem dessa vez, por favor. 

Após a ordem disfarçada de um pedido carinhoso, seguiu adiante, apenas passando a pegada no ombro do amigo. O vice abaixou o olhar e não teve coragem de encará-la de fato. Mais e mais distante dele, ficava evidente a postura caída da moça que costuma ser tão animada.  

Réviz respirou fundo, muito, muito e muito fundo — os segundos desaceleraram a cada átomo de oxigênio que inalava. O barulho do ar foi expelido de forma bruta e ergueu o corpo novamente. O tom abatido ainda persistia, mas fez questão de organizar a mente para deixar claro o foco: 

— Seja lá o que os vislumbres me mostrem, sei que será o caminho até você, minha Quiral. 

Finalmente… se juntou como mais um que saiu da biblioteca. Pouco após sair pela fenda, a abertura foi fechada e isolou a biblioteca. Sem exceção, os envolvidos foram abalados psicologicamente, embora que cada um no grau devido e mais apropriado. 

Ninguém tinha um pensamento reto, objetivo, fino ou rápido — como uma estrada de mil quilômetros, condenada por buracos e obstáculos sem fim; mesmo que estivesse em perfeito estado, o caminho ainda seria muito longo.  

Enquanto Réviz, Will, Nirda, Luri e, enfim, Mark iam para os quartos indicados pelos empregados, o cenário anterior ousava a invadir as mentes. 

O simples ato de querer descansar havia um imenso empecilho: digerir o que houve numa única noite. Os cadáveres, os imensos destroços… as criaturas negras, o aparecer do tal guarda dorminhoco e a surpresa de uma mulher mascarada. 

Embora o peso seja igual para todos em ver a quantidade de mortos, cada um possuía algo mais marcante. Para o vice e líder, aqueles monstros eram um certo alívio e, ao mesmo tempo, um pesadelo vivo de um passado distante.  

Ao subirem as escadas já de volta à mansão, nenhuma palavra foi expressa, bastava ver os ombros pesados e sobrancelhas tensas, que realçam que não tinham frases ou orações para realmente se expressarem, havia apenas os punhos mais apertados, os suspiros lentos e olhos marejados.  

No outro lado do mesmo andar, Will seguia por poucos metros atrás de Mark, abraçando a si mesmo. Ver as costas do irmão ressaltava as lembranças recentes: o segundo que viu as chamas de cor ciano surgirem e quando viu o rope dart cortar as ferragens. Os calafrios aumentavam e sua mão foi direto aos cabelos, bagunçando mais os fios.  

— Fiquem à vontade. 

 Logo, as imagens do parque foram interrompidas com o cuidado da empregada, que abriu a porta para que entrassem no quarto onde haviam permanecido horas atrás. Nirda, segurada por Mark, bocejava levemente. A menina foi envolvida e colocada com delicadeza sobre a cama, a coberta encerrou o processo ao cercar  os ângulos pelo sono.  

— Me desculpa, Will. 

— Mark… 

— Tem muitas coisas mudando. Mas amanhã ainda é outro dia, prometo conversar com calma. 

— Mark, tá tudo bem. Mentiu por uma razão certa. Tá-tá tudo bem. 

O quarto não suportava exatamente a ideia de múltiplos visitantes, contudo, a enorme cama era justa para dar um descanso merecido aos órfãos. Will se adiantou em apagar a luz, assim, foram descansar, separados pela pequena irmã já imersa no mundo dos sonhos. 

Agiram normalmente, porém, era mais que compreensível que sucederia o fato que existiram duas pessoas que encaravam o teto, sem qualquer traço de que iriam dormir tão cedo como a pequena no centro. Mark virou para o lado oposto, e Will repetiu o mesmo ato 

O vento invadiu e balançou as cortinas. Se tocaram na janela esbelta, que destacava o caminho morto que antecedia o horizonte da Cidade Flutuante. Uma cidade bonita se não fosse pelas luzes que falhavam na parte mais ao centro, o tal local que saíram horas atrás.   

Mãos em sincronia pegaram cada travesseiro e puseram sobre cada cabeça, haviam pensado da mesma forma e ofuscaram qualquer deixa para que as memórias de cada um retornassem, porém, um deles falhou. 

Até que chegou a vez do jovem de cabelo hipérbole em ter o parque como fantasma principal da noite. Seus dedos apertaram mais o travesseiro contra a testa e prendeu o ar. Apesar de ser capaz de curar ferimentos físicos, a ansiedade ainda era um machucado sem cura instantânea.  

Sofrer uma perseguição de monstros enquanto desvia de corpos sem vida foi o evento que roubou o sono. As pessoas estiradas no chão possuíram uma peculiaridade específica: desmembrados, retorcidos, queimados, amassados. Era óbvio que cada um foi vítima de uma criatura diferente.  

Só que… “E aquele fantasma?” Quando cercado, conseguiu uma abertura forçada e teve a oportunidade de rever aquele ser misterioso. Só que… “Por que parece comigo?” Voltando mais no tempo, lembrou do arrepio que presenciou ao ver a mesma silhueta branca no palco do parque, que devia anunciar o início oficial do festival. Só que… “É como se soubesse o que iria acontecer, ele desviou do monstro que me acertou” E mais no passado, a figura também demonstrou presença na luta com Luri.  

Era quase como fosse dicas do seu real propósito. 

Só que… dormiu, antes de terminar o próprio raciocino. Em segundos, o travesseiro perdeu o atrito dos dedos e foi surpreendido pela gravidade. Barulho surgiu e nenhuma reação de Will pode ser notada, afinal, seu peito já subia e descia no ritmo de alguém já desacordado. 

Mas um remexo apareceu na cama, algo mais fraco e lento, incapaz de acordar os dois mais velhos. 

— Vão se arrepender de fazê-la chorar. 

Cabelo reluziu pela luz que a janela permitia a passagem, um tom esmeralda que ergueu o tronco na cama com uma voz mais ríspida e acelerada. Ao focar a face para a porta fechada, similar a um observador que tinha algo diretamente e além da visão, o tom esmeralda brilhou forte nos olhos. 

— Vão se arrepender amanhã mesmo — sussurrou Não-Nirda. 


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